Filosofia do 'pega e faz'

Centro Cultural Lá da Favelinha completa três anos de atividade no aglomerado da Serra. O Beltrano conversou com Kdu dos Anjos, idealizador do projeto que oferece oficinas artísticas gratuitas e promove shows de rap e bailes funk ferventes


Por Lucas Simões

Foto: A Quarta Parede

O “Lá da Favelinha” nasceu do sentimento de pertencimento, como explica Kdu. “Sempre que alguém da área pergunta de onde você é, a gente acostumou a dizer ‘lá da favelinha’. É uma identificação, todo mundo conhece e isso deu nome e vida ao centro cultural. O mais importante aqui é o sentimento de pertencimento, de poder fazer”, desembola Kdu.

Há três anos em atividade, o que começou como uma biblioteca e uma oficina de rap para jovens, hoje tem marca de moda, projeto de empreendedorismo em parceria com empresas e uma intensa agenda de shows de funk e rap país afora. Além de reunir milhares de pessoas nos bailes da rua Argerimo Diniz, na altura do número 191, na porta do centro cultural. Ali é onde acontece uma catarse que já atraiu a curiosidade de Karol Conka e BNegão (Planet Hemp), por exemplo.

Na primeira edição deste ano, numa quinta-feira, Kdu abriu as portas de casa para esta entrevista às 18h, uma hora antes da rua ferver com o tradicional Rap da Favelinha. Olhando a comunidade de cinco mil moradores da Vila Novo São Lucas do terraço de casa, ele é direto ao responder se é possível mensurar a influência do centro cultural na vida das pessoas. “Hoje à noite, vamos atingir pelo menos 2 mil pessoas aí na rua. É mais ou menos a estimativa. Mas, diretamente (em todos os programas e ações) não tem como saber. É muito além”.

Foto: A Quarta Parede

De fato, o absurdo e hipnotizante show de Djonga, das maiores revelações do rap nacional — elogiado até por Mano Brown —, levou uma multidão à rua Argemiro Rezende Costa. Com estrutura de três ou quatro caixas de som ao lado da mesa do DJ, latão de Brahma a R$ 5 e muita gente feliz cantando coisas como “não queremos ser o futuro, somos o presente / na chamada a professora diz: Pantera Negra; e eu respondo: Presente”. Identificação, como enfatiza Kdu. “A festa é de graça e na rua, a cerveja é barata… A gente não vende álcool, mas o bar do outro lado da rua vende. Ou seja, é um rolê acessível. A gente mesmo pega e faz”, completa Kdu.

Muito além de uma expressão corriqueira, “pega e faz” é a filosofia básica de Kdu dos Anjos e do Lá da Favelinha. Isso fica nítido na montagem da festa, quando todo mundo que passa pela rua vai ajudando de alguma forma: ajeitando caixotes para o bazar de moda, ligando as caixas de som, parando na esquina para a primeira cerveja da noite e o tradicional “precisa de alguma coisa aí?”.

“A minha inspiração maior é o funk. Os funkeiros são muito pega e faz, sem enrolação e sem estrutura. Muitos deles não têm técnica vocal, não tem formação de músico, muitos nunca estudaram nada, mas eles fazem sua música, fazem seu trabalho e sustentam suas famílias. O Lá da Favelinha é isso”, diz Kdu.

Foto: Mauro Figa

Filho de pai taxista e mãe confeiteira, Kdu é um misto de empreendedor, funkeiro, dançarino, compositor, ator, costureiro, mas, acima de um tudo, um agitador nato. Cria dos projetos sociais Fica Vivo e Jovens Com Uma Missão (Jocum), Kdu também é membro do grupo teatral Giramundo. Ele começou o Lá da Favelinha em 2015, ao propor alugar a loja da mãe, embaixo de casa, e transformá-la numa biblioteca pública.

“Onde é o centro cultural hoje era uma lanchonete da minha família. Minha mãe fazia comidas, mas meu pai tentou arrendar porque o negócio não ia muito bem, só que não conseguiu. Aí eu planejei abrir uma biblioteca e comecei reunindo livros onde podia. Eu tinha verba do Giramundo, trabalhava como oficineiro do Fica Vivo, tinha acabado de lançar meu primeiro CD, estava fazendo shows. Então, as coisas iam bem, dava para pagar o aluguel para o meu pai e manter as primeiras oficinas de rap”, conta Kdu.

Em 2016, com um ano de existência do Lá da Favelinha, Kdu teve que reinventar a roda, ao perder o emprego no Fica Vivo e deixar de cantar profissionalmente, após lançar o primeiro disco de rap, “Azul”, de 2015. “Houve cortes no governo, no Fica Vivo, eu saí do programa. Também deixei de cantar porque achei que o que eu fazia não dialogava mais com a comunidade. E eu não queria tanto me promover, mas fazer algo para criar oportunidades. Só que meu pai falou assim: ‘é bonito o que você está fazendo, mas se você não pagar o aluguel, não posso fazer nada por você’. Eu tive muitas ideias para manter o centro cultural e foi quando resolvi fazer o primeiro financiamento coletivo para bancar as contas”.

No primeiro ano, o Lá da Favelinha arrecadou, de cara, R$ 15.500 apenas com doações, o suficiente para pagar as contas de água, luz, aluguel, limpeza, manutenção e lanches para as oficinas durante um ano. “Aquilo me deu um gás para continuar. Por que a comunidade já tinha abraçado o centro cultural e muita gente de fora começava a frequentar. E a gente já tinha entendido que era maior que uma biblioteca ou que uma oficina só de rap. Era um mundo de oportunidades”, completa Kdu.

Com as contas em dia, o Lá da Favelinha apresentou a Belo Horizonte um universo de potencialidades artísticas e econômicas – e não apenas com as mais de 20 oficinas gratuitas a jovens e adultos, entre elas violão, capoeira, inglês, acroyoga (um tipo de yoga acrobática), ritmo e poesia. Além do Tiro dos MCs, evento de apresentação e duelo de rap que leva milhares de pessoas à Vila Novo São Lucas, o centro cultural também explodiu ao inaugurar na capital a contagiante Disputa Nervosa do Passinho.

Até então um movimento que parecia ser exclusivo dos bailes do eixo Rio-São Paulo, o Passinho, aquele jeito frenético que os lekes cariocas inventaram para dançar o funk, ganhou corpo também nas ruas da Vila Novo São Lucas. Tudo por causa das aulas do fera Johnathan Dancy, criador do grupo Passistas Dancy, o primeiro grupo de passinho em Belo Horizonte.

Foto: A Quarta Parede

“Já era uma sacada dos moleques aqui da Favelinha, todo mundo dançava pelas ruas do seu jeito, via os moleques dançando pelo Youtube. O negócio começou a ficar mais sério depois que o Johnathan Dancy começou a dar aulas de passinho em 2015, em uma oficina que até então não tinha. E aí a gente descobriu uma molecada que mandava bem demais”, lembra Kdu.

Apesar do Rap da Favelinha ser o carro forte do centro cultural, o Passinho virou febre há dois anos e é uma das principais marcas do Lá da Favelinha, estampando o funk em eventos como Festival Internacional de Teatro (FIT) e o aniversário de 120 anos de Belo Horizonte. O que também ajudou na renda de dançarinos. “Teve dançarino tirando R$ 2 mil num mês, ralando pra caramba, acordando 4h para fazer show em escola, depois em festa da Prefeitura, formatura de faculdade, tudo. Os eventos começaram a surgir e a arte da comunidade foi se espalhando, sendo reconhecida”, diz Kdu.

A fama do Lá da Favelinha também atraiu a atenção de parceiros como o Sebrae, que ministrou um curso com 24 costureiras da comunidade para confecção de roupas, bolsas e acessórios a partir de vestuários usados. Quem costurou o apoio foi Kdu dos Anjos. “Quando o Sebrae se interessou pelo que a gente fazia, pra mim foi uma oportunidade de ajudar. Eu fiz curso de empreendedorismo, fui entender de negócios, prestar contas, planilhas, ser sustentável financeiramente. A gente não tava ganhando dinheiro, mas aprendendo a ganhar. Hoje, aonde eu vou na cidade o pessoal pede indicação da Carla, minha costureira. Ela ficou famosa depois dessa parceria com o Sebrae”, diz Kdu.

A parceria deu origem ao “Favelinha Fashion Week”, desfile de moda organizado pelos moradores, e também fez nascer a grife Remexe, que lançou a primeira coleção própria ano passado e lançará a segunda em parceria com a grife Re-Roupa, de São Paulo, ainda neste ano. Junto a confecção dos produtos, o centro cultural inaugurou o evento “Fica Ryca Favelinha”, que reúne uma vasta produção de artesanato, moda e utilidades domésticas confeccionadas pelos moradores.

Apesar de ter fechado parcerias bem sucedidas com empresas como o Sebrae, a Fiat e a Arcelor Mittal, que está bancando parte da reforma do centro cultural, Kdu dos Anjos também reconhece limites e aprendizados nas relações empresariais. Em novembro de 2016, ele foi um dos convidados do festival MECA Inhotim, a experiência hype que cobrou R$ 490 por dois dias de show com direito a acampamento à base de lama e chuva no estacionamento do museu. Nesse contexto, apesar de ter comparecido com dezenas de dançarinos do Lá da Favelinha, Kdu denunciou a segregação disposta pela produção do evento.

Foto: Bárbara Maria

“Eu encarei o MECA como um susto e ao mesmo tempo um aprendizado ou e uma espécie de ‘dorme com essa’. E descobri que nem tudo está num contrato, como segregar pessoas. Se for para fazer um rolê separado, do tipo que quer a periferia aqui ou ali, casa grande e senzala, acabou. Escravidão acabou. A gente anda de bermuda e chinelo, mas temos contador, advogado, produtora cultural, damos lanche nas oficinas, pagamos a limpeza em dia. Nosso negócio é honesto e o contratante é quem deve se adaptar, não a gente”, desabafa Kdu.

Ao todo, são cerca de 100 pessoas envolvidas diretamente com o Lá da Favelinha, incluindo 40 alunos em oficinas, além de seis funcionários dedicados ao centro cultural, como um advogado e uma técnica em projetos culturais. Para pagar as contas do espaço, que giram entorno de R$ 1.800, Kdu dos Anjos mantém um financiamento coletivo permanente, com assinaturas digitais em débito automático. “É uma forma meio Netflix de fazer a coisa. A pessoa paga por mês R$ 10 e fica no débito automático. Ela tira quando e se quiser. Às vezes eu preciso completar a grana, R$ 200, coisa assim, mas isso é o de menos porque hoje conseguimos sobreviver graças aos colaboradores e parcerias”, diz Kdu.

Para este ano, a nova parceira do Lá da Favelinha é com a produtora Macaco Prego na montagem do bloco “Já É Sensação”, inteiramente dedicado ao funk e, claro, regado a muito passinho. Além disso, Kdu também ensaia uma parceria com a Skol, que tem investido pesado na carnaval belo-horizontino. “Eu sou bem flexível na questão de negociações. Se beneficiam a comunidade, a gente tá dentro, com respeito e dignidade. Aprendi aqui na Favelinha que é assim: a gente conversa de igual para igual com todo mundo e, se alguém se interessa no nosso trampo, vamos nessa. Mas que dancem conforme a nossa música”, diz Kdu.

Para colaborar com R$ 10 mensais para o Lá da Favelinha, acesse a campanha de financiamento coletivo permanente do centro cultural: www.evoecultural.com/ladafavelinha/.