Fundamentalismo contra a cultura negra
Agressões alertam para a falácia da democracia racial e religiosa no Brasil
Por Janaina Cunha
Foi no ano passado. A atriz e arte-educadora Carlandreia Ribeiro propôs a montagem do espetáculo Auto do Bumba Meu Boi, numa ação educativa em projeto social na periferia de Ibirité, na Grande BH. A intenção era oferecer aos alunos uma experiência reflexiva e estética em torno de uma referência importante do folclore brasileiro. Para a surpresa da professora, boa parte dos estudantes foi impedida pelos pais de participar da atividade. Dos ausentes, todos eram evangélicos, segundo constatou Carlandreia, e desistiram de atuar por esta razão. Apesar do ocorrido ter se dado há menos de um ano, era como se a professora estivesse em pleno século XVIII, incensando o movimento abolicionista em defesa do povo negro e de seu direito à memória e às tradições.
Negra, mulher e ativista cultural, a artista lembra que esta não foi a única, “nem será a última”, situação de constrangimento em sua trajetória. Para ela, trata-se de caso típico de intolerância religiosa, que se repete cotidianamente e com mais intensidade a cada dia. Os sinais são de alerta para uma tensão social que impacta a fé, a memória e a matriz identitária da cultura brasileira: destruição pública de símbolos de devoção, intimidações contra artistas, rechaço de atividades culturais como os cortejos de tambores. “Estamos vivendo um momento de acirramento muito grande dessa tensão”, afirma Carlandréia.
O Beltrano escutou artistas, pesquisadores e gestores atuantes na cena mineira sobre intolerância. Em uníssono, eles afirmam que a cultura popular e as religiões de matriz africana vem sendo hostilizadas nos espaços públicos, inclusive nas periferias, berço de um dos mais potentes patrimônios imateriais do país: o samba. E, embora não haja registro organizado destas ocorrências, são inúmeros os relatos de atividades interrompidas e da divulgação de interpretações distorcidas acerca destas manifestações.
Para os que já se viram no meio do fogo cruzado, o que se evidencia é um “projeto de poder” calcado em preceitos definidores de uma conduta social e moral a ser seguida hegemonicamente. Reforçam o fundamentalismo religioso que fere não apenas o cidadão na sua individualidade, mas, sobretudo, os princípios constitucionais de liberdade de credo e de expressão.
Sendo assim, para cada ação, eles afirmam, há que haver uma reação firme, igualmente contundente e consciente do papel da cultura como território do livre pensamento. Apesar dos pontos de concordância, a reflexão dos agentes culturais não é linear. Para uns, o que se revela é um tempo de afronta, em que se avolumam as tentativas de aniquilação da memória histórica do país. Para outros, há que se considerar que boa parte dos grupos mais conservadores é constituída pela população negra e de baixa renda, que não deve ser responsabilizada pela tormenta. Turbulência complexa, agravada por evidentes contradições.
“É um absurdo os estudantes quererem participar da montagem de um espetáculo enraizado na cultura popular e serem proibidos, por motivos religiosos, como se fosse uma ofensa lidar com a matriz africana ou como se a crença pudesse ser algo que se transmita por osmose. Não havia convicção da parte deles nesta recusa”, lamenta Carlandréia Ribeiro. Ela avalia que este é um acirramento que se estende para a violência efetiva, com a destruição dos terreiros de candomblé e a invasão de festas abertas à comunidade. “Já presenciei situação em que grupos religiosos conservadores se organizaram pelas redes sociais para aterrorizar as pessoas em uma festa de Preto Velho. Eles chegaram gritando, agredindo os participantes, dizendo que estavam ali para ‘expulsar o demônio’”, descreve a artista.
No início deste ano, ela passou por outra situação inusitada. Notou que um dos seus alunos tinha dificuldade de se aproximar, até que se deu a oportunidade de conversarem fora da sala de aula, a caminho de uma atividade extracurricular. “Professora, tem um monte de gente que fala que a senhora é macumbeira. Mas eu gosto demais da senhora, independente de ser ou não”, foi o que ela ouviu do adolescente. A raiz destas interpretações, afirma Carlandréia, está no preconceito contra toda manifestação que apresente elementos da cultura negra.
Na outra ponta da trama educacional, a educadora também identifica problemas recorrentes, como acordos tácitos das práticas religiosas predominantes no país – o que repercute negativamente na formação dos alunos, segundo ela avalia. A educação formal, nos parâmetros aplicados na atualidade, diz a artista, não dá conta dessa discussão. “Professores evangélicos se sentem no direito de levar músicas de louvor para as salas de aula. E boa parte das escolas ainda insiste em ter ali um lugar reservado para imagens católicas e seus ritos, com uma idéia soberana. Tenho conversado muito com os diretores, levando a reflexão sobre a necessidade de educar também os educadores”, ela pontua, ancorada em metodologia da pedagogia crítica de Paulo Freire. E sinaliza que é fundamental a consolidação de uma escola laica, aberta a todas as possibilidades, como caminho para que as idiossincrasias étnico-raciais sejam respeitadas. Para ela, esta é senha para a superação do fundamentalismo religioso que impregna as relações sociais na contemporaneidade.
Diretor e fundador do Centro Cultural Lá da Favelinha, no Aglomerado Serra, Carlos Eduardo Costa dos Anjos, o Kdu dos Anjos, conta que o enfrentamento é constante na instituição que há dois anos aposta na inserção social por meio da arte e da cultura. Ele observa na prática o reflexo de dados oferecidos pelo Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontou crescimento do número de evangélicos no Brasil em 61,4% em 10 anos. Os dados mais recentes são de pesquisa realizada em 2010, quando se constatou salto de 26,2 milhões para 42,3 milhões de fiéis. “No morro, a cada cinco casas temos um bar, um salão e uma igreja. E a questão não é a fé em si, mas a predominância de um pensamento conservador, que distorce a realidade”, diz Kdu.
Em busca de caminhos para uma convivência possível, Kdu acredita que os tempos não são de declaração de guerra. Cantarola trecho da música Vida Loka, clássico do grupo de rap Racionais MCs, que se consolidou como hino de boa parte da juventude nas periferias: Ore por nós pastor, lembra da gente I No culto dessa noite, firmão segue quente I Admiro os crente, dá lincença aqui I Mó função, mó tabela pow! Desculpa aí. Mas, em seguida, adverte: “Tem pastor que tem o flow e sei que as igrejas tem um papel social importante para muita gente, mas sem essa de que eles são os certos e o resto do mundo está errado. Não vamos aceitar que nos faltem com respeito. Enfrentamos sempre”.
Entre outras situações, Kdu dos Anjos relata as acusações disseminadas na vizinhança de que a instituição seria “casa de macumba”, com a intenção de afastar o interesse dos jovens pelas inúmeras atividades oferecidas pela associação Lá na Favelinha. “Eles se aproveitavam do fato de termos um grafite que remete à cultura afro”, lembra. O reforço dos estereótipos também acentua o ambiente ofensivo. “A gente tem a fama de macumbeiro, maconheiro e ‘viado’. Essa visão da nossa presença no morro é disseminada pelos grupos evangélicos”, afirma.
A instituição, que atende a dezenas de jovens e crianças do aglomerado a maior favela de Minas Gerais e a segunda maior do país, com quase 50 mil habitantes , oferece gratuitamente oficinas de inglês, balé, capoeira, artesanato, rap, funk e danças da cultura hip hop, entre outras atividades. A Lá da Favelinha também realiza eventos como o Favelinha Fashion Week, de moda, e o Fika Ryca Favelinha, voltado para o empreendedorismo. Em março, a instituição participou do Festival Nômade, no Parque Municipal, com a Disputa Nervosa de Passinhos.
“Fazemos um trabalho muito sério e difícil, desconstruindo o preconceito contra a cultura da periferia, fortalecendo a auto-estima, o protagonismo da juventude negra, estimulando o cuidado com o corpo e com a saúde. Não podemos ter nossa imagem associada à idéia de que somos os que protegem o ‘funkeiro filho do capeta’”, refuta Kdu.
Para a antropóloga Clarice Libânio, criadora da ONG Favela É Isso Aí – referência na realização de projetos culturais nas periferias de Belo Horizonte há 15 anos –, o preconceito de origem religiosa repercute no empobrecimento dos espaços e das relações que neles se estabelecem. “É gravíssimo todo tipo de eliminação das diferenças. Uma comunidade tem muitas facetas e pressupõe uma convivência plural. Seja por questão religiosa ou pela massificação dos costumes, tudo que desconsidera a pluralidade acaba eliminando parte importante da memória”, afirma.
Em março deste ano, ela participou, no Rio de Janeiro, do seminário internacional “O que é a periferia afinal, o que é o seu lugar na cidade” onde, durante uma semana, se reuniram cerca de 120 articuladores de favelas de 15 países. O processo de recrudescimento do preconceito contra as religiões de matriz africana foi um dos destaques da pauta. “O poder evangélico é uma reação puxada pelos pastores que impacta inclusive num aumento considerável do número de cargos na política. Este é um dado da atual conjuntura”, afirma a pesquisadora.
Ela observa que os movimentos religiosos, de um modo geral, também estão no contexto de criminalização dos movimentos sociais, partindo da perspectiva de que a diferença de crença justifica intolerância, violência, repúdio e ataque. Na avaliação da pesquisadora, a intolerância religiosa aponta para o campo ideológico de conquista de espaços de poder na sociedade.
Artista, pesquisador e gestor cultural, há 40 anos em atividade, o veterano Gil Amâncio observa que são rotineiras as interferências das igrejas nas práticas da cultura popular. Para ele, esta é uma situação complexa, que coloca a defesa de um estado laico em contraposição ao crescente fortalecimento político das bancadas evangélicas. A questão, ele observa, passa ainda pelo acesso e controle dos meios de comunicação de massa. “A conjuntura é de um pensamento conservador que ocupa espaços de decisão política cada vez maiores e de maior reverberação. No Brasil, não temos como enfrentar o racismo institucional porque a cultura negra não tem representatividade na política nem na comunicação como deveria ter”, analisa.
Ele compara a realidade brasileira com a norte-americana, onde proporcionalmente a população negra é significativamente menor que no Brasil e, no entanto, protege de maneira mais efetiva seus valores identitários. “Nos Estados Unidos, a população negra produz cinema, arte, dança, tem universidades. São caminhos de consolidação da identidade. Aqui, não temos sequer um canal de expressão cotidiano com a população. Entre a exibição de missas e cultos pela televisão todos os dias, a cultura afro é apresentada como maldita o tempo todo. Sem igualdade de poder de fala, não temos como mudar a imagem racista construída historicamente e preservada até hoje”.
Gil Amâncio reconhece, e elogia, o esforço de diferentes grupos culturais e ativistas sociais, que apostam em mídias alternativas. Mas reafirma a necessidade de mudanças estruturais para correção das desigualdades. “A condição de realização e o alcance são muito desproporcionais, por mais efetivos que sejam”.
Para o artista que se fundamenta em pesquisa realizada nos terreiros de candomblé de Minas Gerais e se orgulha do percurso de mais de quatro décadas dedicadas à projeção e difusão da arte negra, é notável o “massacre” a um bem cultural do país. “O pior é que as pessoas convivem com essa situação de extermínio da cultura negra de maneira natural. Não tem nenhuma instância política, social, cultural ou econômica que trate disso com respeito. A abolição não acabou com o pensamento escravocrata das instituições. E assim se funda o racismo institucional que impacta todas as relações sociais no país”, diz o pesquisador, fazendo referência ao sociólogo Jessé de Souza.
Racismo virtual
O massacre à cultura popular e às religiões de matriz africana, a que Gil Amâncio se refere, repercute também nas redes sociais, com requintes de agressividade que tem impulsionado as mais diferentes reações de artistas, grupos e instituições. Depois de comentários racistas em perfis de atrizes como Taís Araújo, Cris Vianna, Sheron Menezes, e a jornalista Maria Júlia Coutinho, o cantor Arlindo Cruz, que passou por cirurgia em 17 de março em razão de um AVC, sofreu graves ofensas raciais e de caráter religioso na Internet.
Em carta de repúdio publicada em site oficial, a Comunidade Caxuté do Baixo Sul da Bahia reproduziu alguns dos comentários como “Cadê os demônios disfarçados de orixás que não lhe protegem?” e “… Espero que ele tenha outra chance de fôlego de vida, para se arrepender das mentiras da macumba e umbanda, espiritismo em geral em que vivia, chances que teve antes do AVC e as desperdiçou, e se converta agora ao Senhor Jesus Cristo!”.
O documento, assinado por Tata Luangomina, gestor da Escola Caxuté, declara: “Sangra no céu e na terra o ódio de fundamentalistas cristãos que querem nos demonizar a cada dia. Nosso cotidiano não é fácil num país da falsa democracia racial e religiosa”.