Gastronomia do morro

O 1º Circuito Gastronômico de Favelas, que chega ao Alto Vera Cruz neste domingo, é um passo autoafirmativo das comunidades


por Lucas Simões

Foto: Wir Caetano

Enquanto o DJ colocava a gravação do Exaltasamba repetindo o refrão “favela ô / favela que me viu nascer / só quem te conhece por dentro pode te entender”, o ‘corre’ da produção era para organizar as barracas, checar a finalização do molho e “arrumar um fogãozinho portátil de duas bocas pra já”, como alguém pediu a um morador desavisado que adentrou a rua Marco Antônio, no Morro das Pedras. “Vou ver com os meninos do bar e dou ideia”, ele respondeu com prontidão. Em menos de meia hora, estava lá o fogãozinho emprestado, mesas e cadeiras na rua, e todos os quitutes prontos para o pontapé do 1º Circuito Gastronômico de Favelas em Belo Horizonte.

A cena aconteceu no último domingo (20/08), com a realização da inédita feira gastronômica no Morro das Pedras, em Belo Horizonte. O evento vai se estender, a cada semana, por outras três favelas da cidade até setembro — Alto Vera Cruz, Barragem Santa Lúcia e Serra. Antes do Morro das Pedras, passou pela Vila São Vicente, em Contagem, e Jardim Teresópolis, em Betim. A parada deste domingo (27/08) é no Alto Vera Cruz, com feira montada na Praça Dona Valdete, antiga Praça Flamengo, na rua Fernão Dias, entre 10h e 18h. Em todas as feiras, a tarde é animada pela competente banda Samba do Vera, idealizada por Flávio Renegado e Thiago Delegado.

Longe do raio gourmetizador e dos preços contestáveis praticados por food trucks em muitas das chamadas “experiências gastronômicas artesanais”, o Circuito Gastronômico de Favelas nasceu a partir das receitas tradicionais dos próprios moradores das comunidades. E ao preço acessível de R$ 5 a R$ 15 por prato. São cerca de 50 opções durante o festival, desde feijoada vegetariana, costelinha com orapronobis, arroz de forno, o clássico sanduíche de pernil e até a inovadora flor de jiló empanada com frango.

Vander (Barragem Santa Lúcia) – Galopé

A proposta de reunir essa variedade típica dos botecos veio da produtora Danusa Carvalho, através da Casulo Cultura e da ONG Arebeldia, gerida por ela junto com o músico Flávio Renegado, nascido e criado no Alto Vera Cruz. “A principal ideia é provocar reflexão. Não é só comida. Por que todo mundo faz eventos lindos na zona sul e a gente não tem evento para pessoas que moram em comunidade. Além disso, a gastronomia ficou muito elitizada, o raio gourmetizador está em tudo, inflacionando a alimentação. E muitas das pessoas aqui são cozinheiros ou já trabalharam em restaurantes chics, nos fundos, sem aparecer. Agora, eles são protagonistas”, diz Danusa.

Um protagonismo fácil de encontrar ao enveredar por becos e vielas dos aglomerados, segundo Danusa. “Não tivemos um critério para escolher os participantes e nem dificuldade em ‘achá-los’. Por que na favela não funciona assim. Fomos chegando, as pessoas vão comentando, um vizinho já é conhecido por fazer um pastel, a outra pelo sanduíche, outro pela carne. Alguns tinham bar ou restaurante em condições ruins, outros estavam desempregados. Fomos juntando tudo isso”, completa Danusa.

Durante um mês, em dez encontros imersivos, um grupo de 30 pessoas interessadas na proposta do circuito passou por uma curso com o chefe de cozinha Eudes da Silva Japoline, do Restaurante Marmitaria Família Daniel. Mas não para incrementar ou modificar as receitas. “Não mexemos em nada nos pratos deles. Foi um toque ou outro sobre quantidades de ingredientes, manuseio de carnes, algo que eles pediam, e também sobre apresentação visual do prato. O foco do curso foi a questão sanitária. Instruímos todos quanto a manipulação correta de alimentos e também a relação de compra, orçamento, estoque”, diz Eudes.

Incentivo que a própria mãe do chef de cozinha, Maria Raquel da Silva, reconheceu de imediato. Ela é uma das cozinheiras contempladas no circuito após propor preparar uma flor de jiló empanada com iscas de frango, acompanhada de geleia de abacaxi picante e alho. Só não esperava que o sucesso instantâneo do prato fosse gerar uma mobilização de amigos para que ela abrisse um bar na comunidade Vila Estrela, no Morro do Papagaio, onde morou por anos.

Maria Raquel (Barragem Santa Lúcia) – Flor de jiló com iscas de frango com molho de abacaxi picante

“Eu nunca pensei em viver do que cozinho. Sempre cozinhei só para os amigos, inclusive jiló, que eles amam. Mas, a única vez que vendi comida foi por necessidade. Fazia bolinho de espinafre, que por sinal, matou muito a fome da minha família também, e ajudava nas despesas. Mas, hoje, eu vejo que é uma conquista estar perto de abrir meu bar. A Danusa Carvalho, da organização, ofereceu doar a mobília e temos um espaço bom na Vila Estrela. Vai chamar Flor de Jiló, em homenagem a minha criação”, diz Maria Raquel.

No mesmo caminho, o cozinheiro Wander Álvaro Cordeiro, mais conhecido como Deco, encontrou no circuito uma possibilidade de transformar os encontros semanais em casa, numa proposta ainda incipiente de restaurante. Nascido e criado na Barragem Santa Lúcia, Deco inventou o seu próprio Galopé, uma mistura de pé de porco, galo, rabo de boi, linguiça calabresa e bacon, há mais de 20 anos. “No início, a gente fazia reuniões no aniversário da minha mãe, no meu, essas festas de família. E eu sempre fazia uma comida, ou feijoada ou o galopé, que era o que todo mundo gostava mais”, diz Deco.

Somente neste ano, porém, ao participar da feira no Morro das Pedras, ele teve a primeira experiência em vender o famoso Galopé. “Eu nunca achei que pudesse virar negócio. Agora eu tenho pensado em abrir meu restaurante, um fundo de quintal, como sempre foi lá em casa. Vai chamar Senzala de Preto, porque nas festas a gente reúne é mais preto mesmo. E isso não significa que outras pessoas não sejam convidadas. Lá em casa já foram dois médicos, que eu convidei, e eles sempre voltam. Então, acho que o restaurante vai dar certo. Por que, na verdade, a comida feita com carinho, com tratamento, caseira, não se compara a nenhuma outra. Eu não troco um Galopé por nenhum sanduíche de shopping”, afirma Deco.

Samba da Vera (crédito Beth Freitas)

Análise

Uma visão similar a do crítico gastronômico Daniel Neto, mais conhecido como Nenel, do recomendado blog Baixa Gastronomia. Ele é um caçador das porções de boteco “legítimas”, aquelas conservadas nas tradicionais estufas dos bares. E foi justamente essa tradição viva que ele reconheceu no Circuito Gastronômico de Favelas, ao traçar um paralelo com a industrialização cada vez maior da alimentação, aliada à cultura dos “fast foods de asfalto”.

“Hoje, a gente tem uma cultura do espeto, o famoso espetinho. Nada contra, claro. Mas, no Belvedere e no Barreiro, você come o mesmo medalhão de frango, com o mesmo gosto. Isso acontece porque o fornecedor é terceirizado, são dois ou três para atender os bares de espetinho. Então, vira uma comida homogenizada, igual, e que pode variar muito o preço pela gourmetização. Rodando pelas comunidades do circuito, você encontra coisas que são muito raras no asfalto. Você não acha mais pé de porco, língua, moela, em qualquer lugar, com facilidade. E aqui, no Morro das Pedras, tinha uma senhora que fazia a própria linguiça de lombo cortado, sem ser moído. Isso é interessante de notar porque fica de aprendizado para a alimentação contemporânea cada vez mais industrializada. Hoje, fala-se muito do hambúrguer artesanal, como se fosse melhor ou mais saudável por ser artesanal, diferente, único. Mas isso devia ser comum, não uma regra exótica de um ou outro lugar cool, como é propagado por aí”, avalia.

Foto: Wir Caetano

Projeto

O Circuito Gastronômico das Favalas é a primeira experiência de um projeto maior idealizado por Danusa Carvalho, da ONG Arebeldia. Logo após a realização da feira no Alto Vera Cruz, será iniciada a pintura de 15 casas da comunidade, em uma parceria com a Suvinil. A proposta visual para transformar a fachada das residências é inspirada nas pinturas do Caminito, rua-museu de Buenos Aires repleta de pinturas, gravuras e desenhos vibrantes, rodeada por comércios típicos locais e presença constante de turistas.

“Tivemos a inspiração visual na Argentina, mas nosso objetivo é um pouco diferente. Sabemos que uma pessoa na favela não pinta a casa porque está preocupada em comer. Queremos atuar nisso. E junto a esses pequenos movimentos, uma feira gastronômica agora, uma pintura daqui a pouco, inaugurar um circuito turístico, onde há movimento natural e próprio da comunidade criando, se desenvolvendo, fazendo renda para si própria e se afirmando”, justifica Danusa.

Circuito Vila São Vicente: Foto: Wir Caetano

Confira a programação e as delícias das próximas paradas do Circuito Gastronômico de Favelas:

27 de agosto (domingo)

Comunidade: ALTO VERA CRUZ

Local do evento: Praça Dona Valdete (antiga Praça do Flamengo, localizada na Rua Fernão Dias).

Horário: de 10h as 18h.

Cardápio:

Kely Cristina: batata no cone (batata palito frita e servida no cone com frango desfiado e queijo derretido).

O Fundo do Bar: costelinha com ora-pró-nobis (acompanha angu).

Bar do Jânio: feijão tropeiro (servido com arroz, couve e ovo frito).

Juliana de Assis: escondidinho de carne seca com queijo (apresentado no formato bolinho de mandioca recheado com carne seca e requeijão cremoso).

Maria Dirce de Aquina: feijão senzala (feijoada mineira, servida com arroz branco, couve, vinagrete, farofa e laranja).

Railani Lemos: pizzas diversas (de massa fina e de vários sabores).

Heliane Ferreira Santos: yakisoba (feito com talharim, legumes e molho de soja).

Dayselane de Souza: palha italiana (feita com chocolate, biscoito e raspas de laranja).

3 de setembro (domingo)

Comunidade: SANTA LÚCIA.

Local do evento: Avenida Arthur Bernardes (em frente ao número 3912).

Horário: de 10h as 18h.

Cardápio:

Vander Álvaro Cordeiro: galopé (junção de galo caipira e pé de porco cozidos, com verduras e tempero caseiro).

Amélia Aparecida Correia Pereira: frango com pó de quiabo.

Kelly Cristina Moreira Souza: surpresa de carne seca (empadão caseiro numa versão inusitada recheada com carne seca).

Wanusa Aparecida da Silva: porco na lama (mix de lingüiça defumada, pé de porco e bacon, refogado com inhame e coberto com cheiro verde).

Maria da Consolação Souza “Lia”: língua recheada (língua de boi recheada com calabresa cozida e acompanhada de arroz do campo).

Maria de Fátima da Silva Colares: arroz de forno (versão do prato servida com legumes, palmito e queijo na finalização).

10 de setembro (domingo)

Comunidade: SERRA.

Local do evento: Rua da Passagem (esquina com Avenida Jeferson Silva).

Horário: de 10h as 18h.

Cardápio:

Lucilene Soares da Silva: bolo no pote (sobremesa leve, composta de bolo caseiro recheado com creme de frutas ou chocolate).

Durcelei Alves Lopes “Durce”: hambúrguer artesanal (em versão X-tudo, com queijo, bacon, ovos e molho especial).

Bar do Dão: tilápia com salada tropical (filé de tilápia com uma salada que mistura frutas a uma maionese com toque especial).

Bar do Zé Pretinho: mexidão (feito com arroz, feijão, legumes, ovos, torresmo e pimenta biquinho).

Barranku: mix barranku (petisco que une carne de boi, costelinha e linguiça, aliados a um molho picante).

Festa de encerramento:

Local do evento: PRAÇA DA ESTAÇÃO.

Datas: 16 e 17 de setembro.

Horário: 10h as 22h.