Goma, pixo e cultura de rua

Ludmila Zago fala do Goma, do pixo e da relação com a sociedade


Estampa de camiseta da Real Grapixo
Goma é uma referência de valores muito preciosos da cultura de rua. Respeito, humildade, união, para citar alguns. Goma se tornou uma referência na pixação. Nela, começou em tempos nos quais não tinha nenhuma opção. Nem lazer, nem cultura, nem amigos. Goma chegou à juventude sem outro meio de ampliação de sua rede social, de circulação pela cidade. Foi torcedor organizado, e depois se tornou pixador. O pixo se tornou vício, com dedicação extrema de tempo, de grana, de vida. Mais ainda depois de ter sido preso como um dos integrantes de uma suposta quadrilha, os Piores de Belô. Goma é um nome, um pixo, um cara conhecido desde então.
 
O pixo lhe tirou a liberdade duas vezes. O pixo, que sempre fez com toda liberdade. Goma pediu justiça, questionou o prefeito, o presidente, a educação, a Copa. Preso pela primeira vez como um dos Piores de Belô, Goma era o principal alvo da política de Márcio Lacerda de combate ao pixo de BH.
 
O primeiro processo vale ser relembrado. Lá o nome de Goma, seu vulgo, está trocado. Lá não tem foto de pixo de Goma no prédio da Imprensa Oficial. Os ‘combinados’ entre os pixadores chancelaram uma interpretação jurídica extrema e punitivista: formação de quadrilha. A quadrilha, já associação criminosa, voltaria a ser o modo de leitura do pixo pelo judiciário e o poder público em 2016, ano da segunda prisão preventiva de Goma, e de outros, como GG, Maru e Morrou. A operação Argos Panopte, com todo seu estardalhaço, rendeu prisões decretadas de até mais de oito anos e tornozeleiras para 17 pessoas pelo suposto dano causado por um risco que foi apagado com sabão na Biblioteca Pública.
 
Goma sempre apoiou a conversa, a pesquisa. Sempre cuidou de ser autêntico, assim como cuidava de suas letras e do seu rolê, que atravessou BH e foi longe: Recife, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Salvador… Uruguai, Portugal, Barcelona, Madri… Quem não conhece o Goma? Um nome que se confunde com o pixo, com sua essência libertária, sua soma constituída de singularidades. Um visgo, uma cola, doce para tantos, incômodo demais para outros.
 
Goma foi preso duas vezes. Não delatou conhecidos em nenhuma delas. Goma fez do pixo, que por lei não tem tão alto teor ofensivo, uma escrita, um diálogo que ofendeu demais.
 
Goma nunca pixou igrejas, sempre respeitou a fé das pessoas. Goma, desde a Imprensa Oficial, se afastou de patrimônios tombados. Não quis destruir, mas construir o Goma. Uma pessoa, um cidadão, uma referência que tem lugar no pixo, na vida, na rua.
 
Goma foi preso, em 2016, por um pixo que não fez, num local onde não pixaria. Além da sua liberdade, levaram seu trabalho construído na Real Grapixo (a loja de materiais para grapixo e grafite). Goma nos faz perguntar, porque também representa outros pixadores encarcerados sob a mesma ótica, da quadrilha, de criminosos em associação: quanto vale uma vida? Quanto vale uma parede? Por que sofrermos tanto por tinta em cima de tinta, por uma estética que não agrada a todos? Por que a sujeira para tantos é também imoralidade? Por que são alguns juristas que decidem qual o padrão estético de uma cidade, espaço vivido e compartilhado por tantos?
 
A grade, a cela, tantas indagações da promotoria, são o modo como a cidade quer expulsar os pixadores de suas noites, de suas fachadas e de sua convivência. Mas não olham para o que o pixo chega a construir na vida de quem o faz.
 
Fruto da violência e da desigualdade social, o pixo é soco na cara. Mas também é uma inscrição popular, brasileira complexa, repleta de questões a serem debatidas. Nos leva a questionar o investimento em punir, em destruir o movimento. Por que? Será justo o que vemos acontecer aqui? Por fachadas, por moralidade?
 
Goma se ergueu de uma situação injusta tornando-se pixador, afirmando o pixador que já era, desenvolvendo seu rolê, dedicando-se a ele. Sabemos do destino que a cadeia representa. Talvez saibamos o que acontece, na maioria das vezes, aos que saem de detenções em cadeias brasileiras. Há proporcionalidade nisso, entre ação e reação? Ainda se considerarmos que o que mais está em jogo é um padrão estético? BH pune mais quem pixa do que quem mata. Tá tranquilo?
 
Depois de oito meses de uma nova prisão preventiva, agora em prisão domiciliar, Goma segue tentando renascer e fazer renascer seus projetos e sonhos. O amor pela vida, pelas pessoas, os amigos, o filho, seguem. Uma sorte. No sistema, isso tá pra ser perdido, esmagado, oprimido.
 
Poeta de sua vida, de sua trajetória e de todos os seus riscos, Goma segue a vida, e nos faz pensar sobre pixo, sobre justiça, sobre a desigualdade social desse país, mas também sobre todo o potencial que preferimos encarcerar. O que isso diz de nossas cidades, de nossa mentalidade? O que é nossa justiça? Estará também comprimida, encarcerada? Valerá alguma fachada, algum muro, mais que algum destino, alguma vida? O que estamos fazendo para minimamente convivermos com a alteridade, com o que não fazemos, nem queremos, nem gostamos?
 
De todo modo, a rua de Belo Horizonte passou de 2016 para 2017 com o alívio de ver Goma em casa. Toda a complexidade cai por terra, encarcerada pela lógica da criminalização. Mas é preciso lembrar que estamos falando de estética, de vida, de cultura. O que estamos valorizando, para onde nossos olhos se dirigem e o que deixam de olhar?
 
Goma tem muito a dizer. O debate é escasso, a leitura sempre a mesma. Importante saber de quem viveu, de quem vive, já que esse fio constrói tantos autores, mais, talvez, que “bandidos”.