Guaicurus: de dentro pra fora

A revitalização que trabalhadoras do sexo, donos de hotéis e comerciantes desejam para a tradicional rua de prostituição de BH


Por Joana Suarez

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Denise Souza é belo-horizontina, mas só pisou na rua dos Guaicurus, no baixo-centro da capital mineira, recentemente, aos 39 anos de idade. Acabou conhecendo a região porque conseguiu trabalho por lá. Quem sabe da fama da rua deve supor que ela se tornou prostituta. Nenhum problema com isso, mas Denise é gerente de três hotéis “sobe e desce”. Aos que desconhecem a expressão, ela vem de uma característica comum da rede hoteleira da rua: as longas e gastas escadarias, nas quais homens enfileirados sobem e descem o dia inteiro, de segunda a segunda, à procura de sexo. O valor do programa começa por R$ 15 e alguns duram menos de 10 minutos.

Para trabalhar nesse ramo, Denise teve que quebrar barreiras pessoais e preconceitos que vinham dos funcionários (em sua maioria homens) e das garotas que fazem programas, acostumadas apenas com o sexo masculino rondando pelos corredores. “No início, havia muita resistência, todo mundo se assustava quando me via. Agora gosto de trabalhar com as meninas. Mas fico chateada por não conseguir fazer muita coisa por elas”, afirma Denise, que gerencia cerca de 60 mulheres.

Os trabalhadores e amantes da Guaicurus buscam, hoje, essa mudança que a gerente precisou trilhar: desmistificar a zona, iniciando pelo fim da ideia de que somente homens à procura de sexo são bem-vindos.

 

Flávio Dornas herdou hotel Magnífico, um Sobe e Desce fundado pela bisavó dele há 70 anos Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

O dono do Hotel Magnífico, um dos três mais tradicionais da rua, Flávio Dornas, criou o movimento “Distrito Guaicurus”, que busca abrir a região ao turismo, à gastronomia e aos eventos, antes que políticas higienistas acabem com uma tradição de 80 anos. “Há uma visão equivocada daqui”, diz ele no seu escritório dentro do hotel. Nos quartos, as profissionais do sexo querem exercer seu trabalho com dignidade, não têm ‘vida fácil’, não aceitam ser ‘coitadas’, afirmam e mostram que é possível ser mulher, mãe de família, prostituta e feminista.

A Prefeitura já tem um projeto de revitalização para a área, mas não divulga detalhes, nem mesmo se tem o intuito de ouvir e atender demandas de quem trabalha e vive lá. A reforma de um conjunto de prédios antigos para abrigar a Justiça do Trabalho, próximo aos hotéis, também preocupa. As tratativas que já surgiram para restaurar a região sempre ventilaram o apagamento da prostituição.

O que será feito das ruas onde cerca de 5 mil mulheres sustentam a si e suas famílias como profissionais do sexo, distribuídas em 25 hotéis (mais de mil quartos), além de todos os empregados dessa rede e do comércio do entorno? Para eles, qualquer plano de melhoria precisa ser traçado ouvindo as vozes da região. A reportagem de O Beltrano passou três dias na Guaicurus para saber dessas pessoas qual a revitalização que elas desejam – se é que a desejam -, numa visão de dentro para fora.

 

Escândalos Bar no Hotel Concord. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Acima de qualquer demanda, o pedido maior em comum é pelo fim do preconceito e que a cidade e a população olhem para essa rua sem discriminação, que enxergue a todos como trabalhadores, sexuais ou não. O baixo-centro, onde está a rodoviária, ficou abandonado ao longo de anos e isso contribuiu para que faltassem ali limpeza, serviços sociais, infraestrutura e, principalmente, segurança – os batedores de carteira fazem parte da urbe local.

É como se funcionasse um pacto velado entre a sociedade belo-horizontina conservadora e a rua dos Guaicurus para que o chamado baixo meretrício (a zona de prostituição barata) permaneça como está, às escondidas, sem escândalo, mas também sem direitos básicos. Finge-se que não existem as prostitutas e apaga-se a rua do mapa urbano.

 

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Patrimônio histórico e cultural

Os cinco quarteirões da Guaicurus e as ruas adjacentes tem muito mais histórias do que a de Hilda Furacão, prostituta fantasiada pelo escritor Roberto Drummond. Trata-se de uma das maiores zonas de prostituição do país, mas com atrativos para se visitar dentro e fora dos hotéis. E oferece muito mais prazeres além do sexo. A começar pela comida caseira deliciosa da Nice, que foi “garota” – conta – por 35 anos e trabalha já há quase 20 anos como cozinheira. Uma mineira de Itabira que tem dedicados 50 anos de vida à Guaicurus, cheia de casos e um tempero mineiro impecável. O almoço de Eunice Perpétua do Coto, 64, pode ser saboreado de segunda à sábado, das 12h às 14h, diretamente do fogão que ela mantém dentro de um “sobe e desce”.

É preciso subir três andares para chegar à cozinha de Nice, no hotel Stylus, na rua São Paulo, 190, esquina com a dos Guaicurus. Basta avisar na portaria que vai lá, lavar as mãos e servir à vontade: arroz, feijão, carne do dia, acompanhamentos caprichados e salada, por R$ 14. A clientela fiel são as meninas dos hotéis, porque poucos sabem que se trata de um restaurante aberto ao público. Se chegar sem amarras, com jeitinho e educação, será muito bem recebido por Nice, que é ‘mãe da zona’, uma verdadeira mãezona.

 

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Ela é uma personalidade local, que circula entre o alimento sagrado e o mito profano da prostituição. A “Santa da Luz Vermelha”, uma mulher de véu grafitada em um muro da rua dos Guaicurus, tomou Nice por modelo. Um grafiteiro de Manaus que participou de uma intervenção do projeto Museu do Sexo, no ano passado, e almoçava todos os dias no restaurante, resolveu fazer a homenagem. “Tenho que mandar consertar meu rosto. Os carrinhos de catadores passam e machucam (a pintura)”, comentou Nice, com discreto orgulho pelo grafite.

 

Nice já foi garota de programa por 30 anos, é cozinheira em um Sobe e Desce e hoje gosta de pintar Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

“Cheguei aqui (na Guaicurus) com 16 anos, e fui trabalhar como garota. Naquele tempo era muito bom, tinha muito caminhoneiro, não precisava ficar o dia inteiro para ganhar dinheiro. Mas eu era muito briguenta”, lembra Nice. Quando ela encrencava com algum cliente, tinha que juntar quatro pessoas para tirá-la de cima do homem. “Vem um dia aqui tomar uma cerveja para eu te contar os casos”, diz ela focada em terminar o almoço.

Como trabalhou muito tempo no hotel, Nice ‘ganhou’ a cozinha de lá para continuar fazendo dinheiro, quando deixou de fazer programa.

“Eu cozinhava no quarto para mim e para as meninas. Um dia, o dono sentiu o cheiro, comeu e viu que a comida era boa. Aí mandou eu parar (com a prostituição) pra ficar no boteco, mas eu não queria ter parado”, lembra.

Hoje, Nice trabalha sozinha no restaurante e continua morando em um dos quartos. Não teve filhos nem marido, “não dava tempo de se apaixonar”, diz. À noite, ela vai para o EJA (Educação de Jovens e Adultos) e nas horas vagas revela que gosta mesmo é de pintar. Faz questão de mostrar seus desenhos. Já até vendeu alguns. Em maio próximo, está planejando uma feijoada para comemorar seu aniversário de 65 anos.

 

Artista de Manaus que almoçava com Nice fez homenagem a ela com pintura da santa no muro da Guaicurus Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Profissionais empoderadas

A profissão de prostituta já foi reconhecida pelo Ministério do Trabalho, mas ainda não regulamentada, o que faz com que o entorno dela ainda seja criminalizado. O projeto de lei 4.211, de 2012, conhecido como projeto Gabriela Leite (que foi uma das maiores ativistas da causa), propõe essa regulamentação modificando alguns conceitos no Código Penal e diferenciando a prostituição da exploração sexual.

O tema gera polêmica, inclusive entre feministas. Mas muitas que estão trabalhando com o sexo querem ter voz, não gostam de ser vistas como vítimas, mas como protagonistas de suas escolhas, e lançam-se num feminismo que atenda a elas.

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Jade* não gosta do termo ‘puta’, por ser usado para desqualificar qualquer mulher, independentemente de ser ou não uma ‘profissional do sexo’, como Jade prefere ser chamada. “Quando você fala: essa mulher é uma puta, você está dizendo que ela é vagabunda, à toa. Eu sai do meu Estado (Ceará) para vir trabalhar, me adaptei. Minha vida é correria. Pago diária e acordo às 6h para me arrumar. Se eu falo com o cliente que sou profissional do sexo, ele sabe que estou trabalhando”, enfatiza Jade, de 50 anos. Desde os 18 anos nessa correria, o sexo sustenta toda a família dela (mãe, pai, irmãos e filho). Ela não tem o que esconder. Não fala o nome verdadeiro por discrição: os familiares não perguntam sobre seu trabalho.

Já a presidenta da Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig), Cida Vieira, defende que o termo ‘puta’ seja usado a favor delas. “Tem um movimento político por trás disso, não é para desvalorizar”, afirma. Santuzza Alves, 37, também não vê problema com o ‘puta’, que até acha bonito. “Eu não me importo. Porque seria ruim? Ficaria chateada se alguém me chamasse de ladra, golpista, desonesta”, disse ela, que trabalha há três anos na Guaicurus e decidiu não esconder o que faz. Antes trabalhava em boates, mas o dinheiro não era tão certo como nos hotéis.

Ela se considera uma “puta feminista” e acredita que o machismo aumenta intencionalmente o preconceito contra a profissão. “Temos um sistema patriarcal, no qual a mulher é criada para realizar os desejos do homem, a hora que ele quiser. A mulher independente, que cobra pelo sexo, assusta. Colocar o nosso trabalho como o pior lugar para uma mulher estar é essencial para que esse sistema se mantenha. Quem lavaria as roupas, cuidaria da casa? As mulheres não se submeteriam (às tarefas domésticas) se não fosse o preconceito”.

Se existem mulheres prostitutas há séculos, as trabalhadoras sexuais ativistas defendem que isso significa que a profissão não seja o ‘pior lugar do mundo para estar’, a não ser pelo esforço da sociedade em querer torná-la ruim.

 

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Discursos

Santuzza acaba brigando com algumas vertentes do feminismo. “Cismam em apontar o dedo, dizendo que a gente precisa ser libertada. Mas se forem na Guaicurus e conversar com dez meninas, não é isso que ouvirão. Para falar sobre a gente, tem que ir lá, passar um dia inteiro e ver como funciona”, diz ela. Para Santuzza, vertentes feministas contrárias à prostituição reforçam o estigma que inviabiliza progressos individuais e de classe. “Muitas têm medo de ir ao ginecologista, de falar que é profissional do sexo, por causa do preconceito”, exemplifica.

Moradora de Belo Horizonte, Santuzza dorme com seus três filhos todas as noites. Ela afirma que resolveu dar a ‘cara a tapa’ por achar importante frisar que prostitutas são “trabalhadoras, mães, que dependem do trabalho, que formam seus filhos com esse dinheiro, que cuidam dos pais…”.

Isso não significa que a prostituição seja unicamente uma questão de opção, ou que as trabalhadoras estejam satisfeitas com a realidade da profissão. Entre trabalhar com sexo ou em outra função precária, em um subemprego, com ganhos menores, muitas decidem pela prostituição justamente por falta de alternativa.

Santuzza considera ainda que, como prostituta, pode fazer seu próprio horário, trabalhar sem chefe e alcançar uma renda em torno de três salários mínimos, o que lhe dá a possibilidade de criar os filhos como deseja. “Tem pessoas que não gostam de limpar fossa, mas precisam trabalhar. Estão ali não por escolha, mas por necessidade”, compara.

Capitu*, 40, deixou o “sobe e desce” para ser massagista tântrica em busca de melhores rendimentos. “Não acho que estar na prostituição seja um problema. Não estou preocupada com a moral, mas com o dinheiro. Tenho aluguel caro para pagar, e (a prostituição) é trabalho honesto. Na Alemanha, a profissão é regulamentada, gera imposto e renda. Elas (as prostitutas) comem em restaurantes, vão ao banco, a manicure”, diz Capitu.

Na condição de trabalhadoras sexuais, muitas se orgulham do protagonismo que exercem como mulheres. “A gente não se vê como objeto, a gente presta um serviço como outro qualquer. Estabelecemos valores e os limites do que aceitamos ou não. Por que a gente não pode cobrar por aquilo que o homem acha que tem que ser de graça? Quebramos o poder do homem”, defende Santuzza, consciente do feminismo que a empodera na linha do ‘meu corpo, minhas regras’.

“A maioria das mulheres (na zona) são feministas e nem sabem, às vezes mais do que aquelas que falam que são”, aponta Santuzza. Ela diz que entre as prostitutas há sororidade quando elas criam uma rede para se protegerem e ajudar quando estão doentes. “Raramente você vai ver uma menina sendo agredida. Se uma pedir socorro, todas vão pra cima. Os assassinatos que já aconteceram foram por maridos ou namorados que descobriram a mulher aqui”.

Santuzza também convida todas as “manas” a conhecerem a região. “Quando não trabalhava aqui, tinha uma outra ideia do lugar. Todos acham que só tem gente se drogando, meninas loucas, mas a maioria está trabalhando”. Em comum, Santuzza e Jade opinam que só se desmistifica algo conhecendo-o.

 

Escritos na parede de bar com dialeto LGBT são melhores lidos por quem já tomou uns drink. Dolly and Piecings – Show “Um grito de estrelas” Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Tour guiado

O movimento Distrito Guaicurus começa a oferecer periodicamente um roteiro turístico na região, que inclui entre outros pontos a cozinha da Nice (saiba mais em https://www.facebook.com/distritoguaicurus/). Flávio Dornas fez um primeiro passeio piloto com cerca de 20 mulheres e acredita que tem tudo para dar certo. “Inicio com uma palestra em um bar na laje de um dos hotéis para explicar a história do lugar e como funciona a zona. A última coisa que quero é promover uma espécie de ‘zoológico humano’. Por isso faço essa explicação antes. É um universo que tem seus pudores”, afirma ele, ressaltando que o grupo adorou, depois quis ajudar e se envolver com o lugar. Mas as visitantes acabaram sendo assediadas pelos clientes do “sobe e desce” durante o tour. A dica preciosa é não cruzar olhares.

Apenas três hotéis estão incluídos na rota e, para entrar, as pessoas são separadas em grupo menores. No Magníficos – que está na família de Dornas há quatro gerações –, há uma exposição de fotos antigas da Guaicurus nos corredores de luzes vermelhas, com textos com as histórias e desenhos de Hilda Furacão e Cintura Fina, dois personagens que marcaram época na região. “É legal ver os homens (clientes) parando para ler”, observa Dornas.

Por fora do hotel, o dono pendurou tecidos de chita e pinturas de namoradeiras nas janelas para a decoração de Carnaval. A rua dos Guaicurus é ponto de início da folia na capital mineira, de onde sai um dos maiores blocos, o Então, Brilha!, na madrugada de sábado, de frente para o hotel Brilhante.

 

Hotel Magnífico decorado com namoradeiras para o carnaval de 2018, na rua dos Guaicurus passa um dos maiores blocos, o Então, Brilha! Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Brilho todo o ano

A ideia do Distrito Guaicurus é a de que uma revitalização da área possa levar museus, bares, restaurantes, casas de teatro, cinema e shows, a serem frequentados por toda a população da cidade e por turistas, e preservando a tradição dos hotéis. “Pode ser uma nova Savassi, (o objetivo) é trazer a noite para onde a cidade começa. O distrito de Hamburgo (na Alemanha) conseguiu sair da crise abrigando teatros, bares… dia e noite. Claro que tem alguns locais que filhos e mulheres não vão ter acesso”, diz Dornas.

Assim como existem totens explicativos em locais históricos de Belo Horizonte, Dornas defende também alguns contando a história dos hotéis da Guaicurus. “Adoraria que tivesse um na porta do Montanhês, que foi uma casa de dança famosíssima, outro no hotel Maravilhoso, onde a Hilda trabalhou, um no meu hotel, projetado pelo mesmo arquiteto do Minas Tênis clube”, diz o dono do Magnífico.

Nos tempos de ouro da Guaicurus, alguns hotéis tinham música, comida e bebida nos corredores entre os quartos. Agora, o que se vê são centenas de homens trançando, muitos deles ‘piolhos’, como são conhecidos os que olham, conversam, mas não transam; e que as meninas odeiam.

Ainda existem alguns bares dentro dos “sobe e desce” abertos ao público. O Escândalos Bar, onde Dornas começa o passeio, também é um lugar a se conhecer. Fica na laje do Hotel Concord, na rua Curitiba, 248. Foi reformado, recebeu grafites que retratam o centro da cidade, tem uma Jukebox de respeito e pode ser chamado de “rooftop”, ou mesmo “bar da laje”. O lugar também pode ser alugado para eventos, como as rodas de debates sobre saúde, feminismo. “Quero trazer blocos de Carnaval para tocar, já tem pagode toda quinta-feira”, revela o dono do Magnífico.

Meninas penduram toalhas na porta dos quartos para marcar o ponto delas; ao lado a foto de Hilda furacão. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Zona de herança

Flávio Dornas assumiu o hotel na rua Guaicurus, 601, com 54 quartos, há dois anos. Ele herdou da família o ponto no ‘baixo meretrício’ e, com ele, toda uma carga de tabus e preconceitos. Sua bisavó fundou o hotel há 70 anos. A mãe de Flávio assumiu o negócio cinco anos antes de falecer. Foi então que Flávio Dornas entrou no negócio com a irmã, responsável pelo financeiro. Mas são, ao todo, 18 herdeiros.

Hoje, ele tenta humanizar as relações entre funcionários, clientes, trabalhadoras sexuais e sociedade, assim como fortalecer a identidade do local para que a história de gerações não se perca. “Dizem que o Getúlio (Vargas) ajudou minha bisavó a alugar esse hotel. Ela era analfabeta e camareira do Grande Hotel, onde hoje é o edifício Maletta. De lá, ela veio para a Guaicurus. Onde tem lenda, tem um pouco de verdade”, narra Dornas.

Como já trabalhava com hotelaria convencional e gastronomia, ele chegou querendo transformar a zona em um hotel “de verdade”, até perceber que teria enormes desafios pela frente e que as hóspedes dali queriam apenas a diária mais barata o possível e uma boa rede wifi. Enquanto esperam clientes, elas usam a internet para interagir com o mundo de fora e falar com familiares e amigos pelo Whatsapp.

Ao se ver como dono de hotel de prostituição, Dornas se colocou como antagonista de muitas práticas da Guaicurus. “Aqui não tem imposição de valores de programas, seleção de mulheres por idade, aspecto físico”. Alguns hotéis da rua são conhecidos por terem só ‘novinhas’. A diária do Magnífico é uma das mais baratas, R$ 140, mas oferece quartos bem simples, em que o banheiro (apenas uma privada) é separado por uma meia parede. Outros cobram até R$ 200, o que significa que as garotas precisam fazer pelo menos 10 programas, por R$ 20, apenas para pagar a diária.

“Por R$15 reais a gente faz o básico, só para o homem entrar, fazer um paparico, mostrar um peitinho…. Fora isso, cada uma combina direto com o cliente. Tem mulher que faz completo, anal, ai já fica mais caro”, conta Jade, fixa no Magnífico há dois anos.

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Ponto comercial

O preço alto das diárias de quartos precários é uma das reclamações delas, pois o programa não aumenta na mesma proporção. Se ficarem 30 dias a R$ 100, elas pagarão R$ 3 mil por mês aos donos dos hotéis. Por R$ 200, pagarão R$ 6 mil. Dornas justifica que a herança da família é só o ponto e a marca do hotel. Ele paga o aluguel do prédio para outra família de herdeiros. E as profissionais do sexo, que não querem se expor aos riscos de quem fica na rua ou na internet, pagam pelo ponto comercial, que existe há 70 anos, onde sempre tem cliente sem precisar de propaganda.

“Aqui não é muito diferente do comércio popular da região, é quase um ‘feira shopping’ do sexo”, brinca Dornas. Não por acaso, o Shopping Uai cogita entrar nesse ramo. 

Nos hotéis existentes, para marcar o ponto, as mulheres penduram toalhinhas na porta com seus apelidos e os serviços oferecidos. “Isso aqui é negócio, pago a diária e faço meu ponto. Se você trata o cliente bem ele sempre volta. A gente chama esses de ‘retorno’. Mineiro é muito carente, vira cliente”, diz Jade. À pedido de Dornas, ela assumiu a função de ‘bibliotecária’ do Magnífico, que tem, por enquanto, apenas um armarinho de livros. “Μas já tem sete emprestados com as meninas. Tá bom, né?”

Jade tem 50 anos e está desde os 18 anos na Guaicurus, mora no hotel e da janela ela observa o movimento da rua Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Tem mulheres que ficam meses, outras dias, algumas saem por uma semana e voltam. As que ficam direto fazem do quarto sua casa. Limpam e colocam móveis. Muitas não se dão descanso, mesmo que o dono do Magnífico ofereça uma diária mais barata, de R$ 50, para quem não for trabalhar. Essa é uma das mudanças que Dornas está começando a implantar no hotel, para que as garotas possam planejar dias de descanso. E tem ainda plano de construir uma área de convivência para visitas e serviços voluntários. Mas a maior luta, nas palavras dele, é com os funcionários machistas. “Eu não consigo outro perfil para trabalhar nessa região”.

Entre machos e carências

Os homens que são ‘escrotos’, Jade diz que elas os ignoram, mandam embora, sem criar confusão. “Não estrago meu dia escutando eles. A gente se impõe”. Já Verônica*, 38, há seis anos no ramo, ainda não se adaptou por inteiro. “Os homens estressam a gente demais. Eu era empregada doméstica, mas aí veio a crise”.

O sexo é o ponto principal no trabalho delas. Mas o mais complicado, dizem, é saber lidar com os clientes, conversar. Por isso, as experientes são mais requisitadas e ajudam as novatas a entender o lado humano e prático da profissão, como colocar uma camisinha.

E elas acabam servindo de ouvidos para os clientes carentes, que vão só para desabafar, algumas vezes nem querem transar. “O homem que vem aqui está cheio de problemas, estressado. A gente tem que ser psicóloga. Tem uns que pagam pra falar, não fazem mais nada. Já salvei muito casamento”, conta Jade, que aprendeu a ‘ler’ o cliente. “Uns gostam que a gente grite, outros, se gritar, broxam. Isso é ser profissional, não é só chegar e pá pá”, ensina agora.

Jade não quer saber de outro tipo de relacionamento. “Aqui na zona é complicado, qualquer problema que tiver na relação o homem joga na cara. Já vi mulher voltar arrasada”. Ela recebe um mesmo cliente há 18 anos, e diz ter outro que só vai para massagem, toda semana.

A concorrência entre as garotas vai do que cada uma oferece. “Eu não faço anal, já é um ponto contra mim. Faço espanhola, sou boa no chaveco (papo no ouvido), mas tenho antipatia de bunda”, admite Jade. “Tem uma (garota) que tem 50 ‘consolos’ e fatura mais”. Elas usam vibradores para concorrer com os hotéis de travestis. “É presepada demais”, brinca.

 

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Sem pudor, Jade fica de meias sete oitavos e fio dental. Deita com a bunda para cima na cama para demonstrar como aguarda os clientes. Bem diferente da moça de 19 anos que casou na igreja, no Ceará, virgem – lembra ela. “Tem mulher que gozou a primeira vez na zona”, diz Jade, revelando o quanto a sexualidade da mulher é algo clandestino.

Pastoral e o sexo

Ligada à igreja Católica, a Pastoral da Mulher atua há 35 anos com prostitutas e está há 18 na rua dos Guaicurus, no número 669. Toda a equipe entende que o problema ali não é o sexo, mas o preconceito em torno dessa profissão. O grupo trabalha para dar alternativas às mulheres que queiram deixar a função, oferecendo acolhida, cursos de cuidadora de idosos e cabeleireira, mas, sobretudo, busca dar qualidade de vida à trabalhadora sexual. A pastoral oferece um espaço perto delas para descanso, uso de internet e atendimento psicológico e outros serviços.

“A gente não precisa só de camisinha. Precisa de amparo, assistência médica, oftalmologista, dentista, ginecologista. Às vezes, a gente deixa de fazer uma prevenção porque tem que ir mais longe. E a pastoral ajuda, fornece apoio, lanches, parece pouco mas é importante”, afirma Jade.

Quando as mulheres adoecem é um drama, porque a maioria delas não tem família em Belo Horizonte. Muitas nem conhecem a cidade fora do baixo-centro. Uma pesquisa da Pastoral, feita em 2011, mostrou que apenas 6% delas são nascidas em BH. Por isso, ter um posto de saúde perto dos hotéis seria o ideal. A Secretaria Municipal de Saúde está construindo uma unidade no último piso do Shopping Uai, “mas ainda está em fase de estudo para definição do tipo de serviço que será oferecido lá”, informou a pasta por meio de nota.

Existem mulheres de 18 a 70 anos de idade trabalhando na Guaicurus, e a família de muitas delas não as acolhe quando deixam de trabalhar e mandar dinheiro. Por isso, um lar para abrigar prostitutas idosas é também um sonho.

 

Bar na Laje ou Rooftop da Guaicurus foi reformado para receber show e eventos dentro de um dos hotéis da zona Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Prevenção

O comércio em torno das mulheres da Guaicurus é muito forte, com isso muitas não juntam dinheiro. Até a camisinha, que deveria ser distribuída gratuitamente, é usada como moeda de troca, vendida clandestinamente. “Eu consegui que a secretaria de saúde passasse diretamente para mim uma caixa por mês (com 7.200 unidades) e estou distribuindo entre elas no hotel”, afirmou Dornas.

A região chega a recolher quase 300 mil camisinhas mensalmente, e não há coleta de lixo seletiva, nem treinamento para faxineiras, que mal recebem por insalubridade. A Superintendência de Limpeza Urbana (SLU) informou que os serviços são regulares na área, onde recolhem 700 quilos de resíduos por dia. “Sobre a eliminação de preservativos, a recomendação é que esses resíduos sejam devidamente acondicionados ao lixo domiciliar para a coleta rotineira”, diz a nota.

Muitos hotéis não são administrados diretamente pelos proprietários, mas por gerentes. Há ainda problemas com drogas. Não é raro garotas se tornarem viciadas e se envolvem com traficantes. “Elas precisam de apoio psicológico para largar o vício”, destacou a gerente Denise.

Ainda nesse contexto de ilegalidade consentida, mas sem proteção, as profissionais ficam sujeitas a violência. A Aprosmig colocou detectores de metais nas entradas dos hotéis para tentar coibir a entrada de armas, mas os porteiros não são treinados sobre como agir, apesar da cara de bravos. Flávio Dornas e a pastoral pensam em estabelecer um protocolo de condutas, uma espécie de regulamentação interna, com regras para proteção contra violência.

 

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Projetos

A associação das prostitutas recebeu em forma de doação um casarão na rua dos Guaicurus, onde planeja instalar o Museu do Sexo – projeto que foi itinerante no ano passado. “Estamos buscando parcerias para revitalizar a casa. Vamos contar quem são essas mulheres, o dia a dia na Guaicurus. Já existe um discurso de que as histórias têm que ser contadas por elas. A realidade só vai mudar levando cultura, cidadania e direitos humanos para essas mulheres”, afirma Cida Vieira, presidente da Aprosmig.

A pastoral pretende começar neste ano um projeto piloto em cinco hotéis e 50 mulheres que serão acompanhadas durante um ano. O foco é saúde física (uso de camisinha, exames preventivos, médicos), e emocional (psicologia, descanso mínimo e terapias), e informações sobre direitos no exercício da atividade.

“A prostituição está no sistema, não vai acabar. A maioria delas sustenta a família inteira. Temos que minimamente melhorar a vida dessas mulheres, as condições de trabalho. O que elas mais reclamam é humilhação por conta da profissão”, afirma o coordenador da pastoral José Manuel Lázaro Uriol.

Há muitos segredos a desvendar na região, casos de propinas por alvarás de hotéis, tráfico de drogas, máfia das camisinhas e a identidade dos verdadeiros donos dos “sobe e desce”. “Precisamos pensar a Guaicurus como espaço cidadão, não só como um negócio lucrativo”, defende o coordenador da pastoral.

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Chinatown mineira

A região do baixo-centro de Belo Horizonte não sobrevive só de sexo. Misturado à zona, estão os lojistas de produtos importados de todo tipo. Até viagra genérico ouve-se sendo oferecido pelo auto-falante de uma farmácia na rua.

E falta pouco para a rua se transformar numa Chinatown mineira e ganhar um portal igual ao do bairro Liberdade, em São Paulo. Os chineses tomaram a maior parte das bancas dos shoppings populares e avançam sobre as lojas de rua. Em alguns lugares, escuta-se mais o mandarim que o mineirês. Escondido na escadaria de um dos prédios antigos da Guaicurus funciona um restaurante de comida chinesa “de raiz”.

Mas, pela região circulam também angolanos e haitianos, vendendo bugiganga. Estes, segundo as profissionais do sexo, ficam deslumbrados quando chegam e vêem mulheres oferecendo prazer por pouco dinheiro. “Eles são cheirosos e educados”, comenta Jade.

 

Especial/Distrito Guaicurus. Foto: Flavio Tavares/O Beltrano

Parada “sobe e desce”

A crise econômica abalou a todos na região, inclusive aqueles que vivem de sexo. “Nosso cliente principal é o assalariado, que foi o mais prejudicado com essa crise. Antes, vinham ônibus cheios de trabalhadores da construção. Saiam do interior (do Estado), os patrões mandavam. Chegavam aqui, nem perguntavam quanto era e já entravam no quarto”, recorda Jade.

Também contribuiu para a queda do movimento a instalação de pontos do Move (transporte coletivo) em frente às entradas dos “sobe e desce”, quebrando a rotina e a privacidade da rua dos Guaicurus, e demonstrando total insensibilidade da Prefeitura e da BHTrans para com o local.

A prostituição no baixo-centro funciona em horário comercial, das 8h às 23h. Eles brincam que se trata de um “puteiro de família”. Mas, na verdade, o sexo não se estende noite à dentro por questões de segurança. Depois que o comércio fecha, a rua vira um breu, com pouco policiamento. A região nem mais pode ser caracterizada como ‘zona boêmia’, já que apenas um ou outro boteco  se encontram abertos à noite.

Ainda assim, um bar novo aportou recentemente na região, apostando na localização exótica. O Pajubar instalou-se em plena avenida Santos Dumont, uma das poucas iluminadas pelas estações do Move. O lugar super transado, com shows, drinks e tira-gostos, foi considerado revelação no ano passado. Com esse nome, que faz referência ao dialeto das travestis e da comunidade LGBT, o bar tem sido mais frequentado por esse público, mas abre as portas para todos das 18h às 1h, menos para o preconceito.

*Nomes de guerra