Henrique*: uma vítima do Brasil pós-golpe


Por Luana Tolentino

Há oito anos leciono em um dos municípios mais pobres de toda Minas Gerais. Dos meus alunos, cotidianamente ouço relatos de abusos, de abandono afetivo, de mães e pais encarcerados, e, sobretudo, da violência provocada pelo tráfico de drogas. Ainda que eu me esforce, não consigo lembrar quantos alunos foram assassinados em episódios de “acerto de contas”. Não que eu seja indiferente a isso. A questão é que foram tantos que já perdi a conta.

Para a minha alegria e satisfação, em meio a esse cenário perverso, me acostumei a ouvir depoimentos de alunos que ao deixar o ensino médio, ingressaram no mercado de trabalho e em instituições de ensino técnico ou superior.

Vanessa é estudante do curso de Agronomia da Federal de Viçosa. Aline faz Ciências Biológicas na UFMG. Amanda cursa Engenharia no IFMG. Sabrina e Marcos formam em Administração no próximo semestre em uma faculdade particular. Natalino fez um curso técnico e se tornou um exímios designer gráfico. Michele é aluna da UEMG. Matheus, atualmente professor de informática, ingressou no curso de Direito. Em breve a Stefanie será minha colega de profissão. Ela é estudante do curso de História na mesma instituição em que formei.

Todos são filhos de pais com baixa escolaridade. Diariamente enfrentam barreiras sociais, econômicas e geográficas, de modo que permaneçam no local historicamente destinados a eles: o da exclusão social. As políticas públicas de acesso à educação implementadas nos últimos treze anos, como a expansão do número de vagas nas universidades públicas, as cotas, o Pronatec, o Prouni e o Fies foram primordiais para que eles tivessem a possibilidade de trilhar novos caminhos e consequentemente galgar melhores condições de vida, o que era praticamente impossível há alguns anos, uma vez que o Brasil “se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela”.

Na manhã de hoje tive a sensação de ter acordado de um verdadeiro sonho. Encontrei com o Henrique* em uma das avenidas mais movimentadas da região em que moro. Depois de um longo abraço, disse ao meu ex-aluno:

-Você está aí na luta, né?

– É, professora. A gente não acha emprego então tem que vender água na rua.

Senti um nó na garganta. Ao vê-lo debaixo de um sol escaldante, fui exposta a um país bem diferente do que eu estava acostumada, com oportunidades e perspectivas, principalmente para a juventude periférica.

Henrique*, a exemplo de milhares de jovens, já é vítima do Brasil pós-golpe, marcado pelo desemprego, pela recessão, pelo empobrecimento, pelos cortes de investimentos nas áreas de educação e saúde como política de governo. Se antes tínhamos nas mãos a possibilidade de construir uma sociedade minimamente justa, o que temos hoje é a retomada sem o menor pudor de um país que vê como natural “a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes.”

Em entrevista ao programa “Espaço Público”, da EBC, a ativista negra norte-americana Angela Davis afirmou que a função da escola é “estimular as pessoas a se imaginar no futuro em uma condição diferente”. Há alguns dias essa assertiva me atordoa. Tenho pensado de qual futuro falarei para os meus alunos. Gostaria que eles, assim como tantos outros, tivessem uma trajetória marcada pela certeza de uma vida melhor, ao contrário da situação em que o Henrique* está inserido: o emprego informal, com baixo rendimento, sem qualquer proteção e expectativa de mudança.

Nessa mesma entrevista, Angela Davis lembrou que apesar de toda injustiça, de todas as mazelas, não podemos achar que vai ser sempre assim. Acreditar nessas palavras exigirá muito esforço nos próximos anos. Henrique* é prova disso. No que depender do atual governo, representante fiel da elite que domina esse país há mais de 500 anos, histórias como a do meu ex-aluno passarão a ser regra.

Ainda assim, é preciso ter alguma esperança. E lutar.

Crônica

Luana Tolentino

Luana Tolentino é professora e historiadora. É ativista dos movimentos Negro e Feminista.