Hiperrealismo na cena

Teatro mineiro leva ao espectador a informação crítica que os noticiários sonegam


Por Janaina Cunha

Benjamin Abras e Victor Alves Vick, em O Caldeirão – Foto: Kika Antunes

O espetáculo ‘O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto’, concebido pela jovem atriz mineira Bruna Chiaradia, foi apresentado em abril para mais de 8 mil famílias da ocupação Izidora, em Santa Luzia, na Grande Belo Horizonte, e sintetiza a radicalização da idéia de transposição da realidade para a arte. Uma caminhoneta com adereços, oito atores que transitam por diferentes linguagens, e a vontade de recuperar uma das mais emblemáticas ocupações rurais do país compõem a peça.

Se no final dos anos de 1960 o hiperrealismo foi compreendido como a capacidade de se obter em pinturas e esculturas efeito semelhante ao da fotografia, o que nas artes cênicas se busca hoje é trazer para a cena a agudeza da percepção crítica e o conteúdo que os noticiários habituais não oferecem.

Dividido em três momentos, o espetáculo tem como ponto de partida uma comunidade que, na década de 1930, reuniu romeiros e imigrantes, na região do Cariri, no Ceará. Conhecida como Caldeirão, contava com mais de dois mil moradores liderados pelo paraibano beato José Lourenço, e foi uma das primeiras ocupações de que se tem notícia no país. Os indivíduos, relata Bruna a partir das pesquisas que realizou, vivam em condição de extrema horizontalidade e vivenciavam forma alternativa de vida. Todos trabalhavam em favor da comunidade e recebiam uma cota da produção. A “acusação” de comunismo foi a justificativa oficial para a invasão da fazenda, destruída por latifundiários e agentes do governo Getúlio Vargas.

“Eles incomodaram o poder local de tal modo que foram exterminados. Nunca se assumiu, mas o que houve ali foi um bombardeio, que aconteceu num período entre guerras e, portanto, com muitas possibilidades de justificativas”, argumenta a pesquisadora. A passagem histórica, grave e desconhecida, levou aos estudos e ao desejo de conceber o espetáculo. “Diferente do que ocorreu em Canudos, quando as pessoas se posicionaram, resistiram e lutaram até não poderem mais, no Caldeirão não houve sequer possibilidade de luta. Houve muitas mortes em condição de extermínio. E toda essa memória foi apagada”.

Bruna Chiaradia (a direita), em O Caldeirão – cred. Kika Antunes

Depois de retratar a ocupação, o espetáculo aborda o deslocamento dos sobreviventes para o sítio União e, no terceiro ato, conecta o fato histórico com acontecimentos atuais da vida política no país. “Estamos em um novo momento de intenso questionamento do papel social da terra, do mercado imobiliário e da propriedade privada, e de busca por parâmetros mais justos”, avalia a atriz. E com essa narrativa cênica, conduz o espectador a refletir sobre o modo como as ocupações se consolidaram como uma ferramenta dos movimentos sociais, utilizadas como propulsoras de aceleração da reforma agrária, mas também, e sobretudo, como estratégia de resistência, no campo e na cidade. “Precisamos dar voz à história para que as pessoas não sejam massacradas de novo”.

Contemplado com o Prêmio Funarte Myriam Muniz 2016, o projeto do espetáculo O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foi escrito por Bruna Chiaradia em parceria com o produtor Marcelo Carrusca e o diretor Zé Walter Albinati. Entre os atores, estão profissionais com diferentes experiências nas artes cênicas, incluindo cultura popular e religiosidade. Entre eles, a atriz Kátia Aracelle, cujo trabalho tem influências dos festejos do congado, o multiartista e performer Benjamim Abras e a atriz e cenógrafa Elaine Freitas. Mais que um espetáculo de rua, o Caldeirão mergulha no ambiente das ocupações urbanas, em diálogo com seus moradores e o pensamento ideológico que se organiza no interior das comunidades. Deste modo, o chão se faz tablado e o papel do espectador ganha resignificações fundamentais para o desenvolvimento das cenas.

“Coisas terríveis do ponto de vista social, econômico e político estão esfregadas na nossa cara de uma maneira tão absurda que perdemos a capacidade de entendê-las. O teatro retratando simbolicamente fatos de outros tempos talvez nos ajude a refletir sobre tudo o que está acontecendo agora”, argumenta a atriz, amparada em estudos brechitianos sobre o sentido social do fazer teatral.

Além deste projeto, que tem perspectivas de continuar em circulação, Bruna Chiaradia também participa, como professora de teatro, do processo criativo do espetáculo Escombros da Babilônia, dirigido por Manu Pessoa, no contexto da ocupação Luiz Estrela. O trabalho, viabilizado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura, estréia neste mês (junho), e coloca no front um elenco com 60 integrantes, organizados em 5 núcleos que desenvolvem cenas diferentes. Ao final do processo, elas serão alinhavadas pela dramaturgia.

Pela natureza dos temas que abordam, reconhece Bruna, muito do que fazem acaba sendo interpretado pejorativamente como uma iniciativa panfletária. Este é um estigma que a atriz recusa, pela associação indesejada que vulgariza a experiência artística. Mas também não se intimida por ele. “A gente tenta ser poético, simbólico, elaborando de uma maneira prazerosa para o espectador. Mas, se ao final soar panfletário, é porque diante do que estamos vivendo não há como fugir disso. Afinal, essa é a própria realidade com que precisamos lidar”.

Integrante de um dos mais potentes grupos teatrais da cena contemporânea, a Cia Luna Lunera, o ator e diretor Zé Walter Albinati apoiou O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto desde o período de gestação do projeto. Sua participação como diretor reforça a trajetória calcada na investigação e processos intensos de pesquisa das possibilidades da prática teatral em conexão com o tempo presente. É fato, ele diz, que o teatro, e as artes de um modo geral, sempre foram lugar de resistência. Espaço dado, ou permanentemente reivindicado, de contraposição de idéias, enfrentamento de ordem estabelecida, território generoso de acolhida de conflitos, sejam eles políticos, sociais, ideológicos, enfim, existenciais de toda sorte.

“Historicamente, muitos movimentos importantes, incluindo as releituras de Brecht realizadas por inúmeros coletivos no Brasil, propuseram um recorte de não se nutrir a ilusão do teatro romântico. Hoje, estamos novamente todos muito sensíveis à realidade, pensando na arte como ferramenta de deslocamento das versões que nos estão sendo apresentadas pelas estruturas políticas e de governo”, afirma Zé Walter.

Ze Walter Albinati, em Urgente, do Luna Lunera. Cred. Raquel Carneiro

Em circulação estadual, nacional e internacional de diferentes montagens do Luna Lunera, como Aqueles Dois, apresentado recentemente no México, Argentina, Colômbia e Venezuela, ele também integra elenco da peça Urgente, que o grupo descreve como uma junção de “cotidianos ordinários num espaço condensado”. Generoso na densidade poética, provocativo e intenso, como é próprio ao repertório do grupo, o novo espetáculo trata das implicações do tempo presente.

“No caso do Urgente, não estamos lidando com as chamadas grandes tragédias, mas com as rotinas de todos os dias e com as questões desta vida que pode se interromper a qualquer tempo”, descreve o ator. E neste ambiente, permite ao espectador transitar por caminhos mais ou menos objetivos, com liberdade.

Resultado de parceria entre a Companhia Luna Lunera e o Areas Coletivo da Arte, que assina a direção da peça, Urgente contou com a interlocução dramatúrgica do escritor Carlos de Brito e Mello, que realizou uma conexão entre a literatura, a filosofia e a poética das cenas. Inúmeras reflexões fizeram parte do processo criativo. Entre eles, fluidez e perversão do tempo, manipulação política e ideológica do sentido da produtividade, e como os projetos pessoais podem estar a serviço, conscientemente ou não, de projetos de poder. “Estamos atravessados por um momento de muitas ingerências políticas. Isso nos altera e nos mobiliza”.

No mesmo percurso de investimento na potência máxima da percepção crítica, o Teatro Espanca! também se fixa na abordagem do cotidiano, com o que de mais agudo ele oferece. Integrado por Alexandre de Sena, Aline Vila Real, Gustavo Bones e Marcelo Castro, o grupo tem sede no baixo centro de Belo Horizonte e estreou neste mês (junho), o novo espetáculo Passarão – um estudo cênico sobre a rua Aarão Reis. “A realidade tem sido a nossa linguagem, nossa estética. A criação é em si misteriosa, tem seu percurso, mas há um tempo resolvemos declarar essa inspiração, com os desafios éticos e políticos que ela oferece”, afirma Gustavo Bones.

Cena do espetáculo Real do Espanca Foto: Guto-Muniz

Em 2015, o Espanca! estreou o espetáculo Real, que leva ao palco quatro peças de curta duração, sobre um linchamento, um atropelamento, um movimento grevista e uma chacina policial. A criação foi selecionada pelo programa Rumos Itaú Cultural 2013-2015 e desde então arrebata público pelo país. Com direção assina por Marcelo Bones e Marcelo Castro, e textos de Diogo Liberano, Marcio Abreu e Roberto Alvim, Real é uma experiência desconcertante para o público. Rompe a fronteira do imaginário, para fazer do espectador um cúmplice de acontecimentos sociais que marcam este tempo.

“Assumimos um compromisso com a história, com o objetivo de fazer com que as pessoas se realizem no real. Só com a elaboração estética é possível se ver no que acontece socialmente. Essa chave do simbólico é muito importante para assimilar o que se vive”, diz o ator e diretor, ressaltando a importância do trabalho apresentado em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, interior de Santa Catarina, e com agenda confirmada em Porto Alegre ano que vem.

Em março deste ano, foi a vez do diretor João das Neves fazer o público sair da zona de letargia no Teatro Francisco Nunes. Com sua versão contemporânea do clássico Lazarillo de Tormes, do século 16, o dramaturgo assumiu o papel-título da obra para escarnecer as inquietações da atualidade. Passou recibo, exibindo em alto e bom som o noticiário televisivo ao final do espetáculo. Para João das Neves, em sua brilhante, corajosa e enérgica trajetória, não há verdade ou vergonha que o teatro não possa escancarar.