Impressões de O Silêncio do Rio Comprido e entrevista com o autor
Ana Cristina D’Ângelo entrevista o escritor Lélio Fabiano dos Santos que lançou o livro "O silêncio do Rio Comprido"
Por Ana Cristina DÂngelo
De: Ana
Para: Lélio Fabiano
Querido Lélio!
Salve, salve! Te escrevo desde a varanda da casa paterna, contemplando o final do dia, céu rosa de inverno, a impressionante vista do céu sem edifícios. “Como vim parar aqui? Por que fui parar lá?”. O livro eu li no Rio mesmo, imaginando putarias e homilias.
Foi com muita alegria que recebi seu primeiro romance. Com muitas outras sensações terminei sua leitura. Acho que você escreveu o livro de uma geração formada no caldo católico apostólico romano de nossas cidades do interior. Sua Alegre tem mar? Imagino que não porque seria uma referência forte demais pra não ser citada. E tenho pra mim que o catolicismo não vinga majoritário onde tem um bracinho de mar. Olha, eu ouvi sua voz muitas vez, e faz tempo não te vejo. Pretensamente entendi um pouco o tom professoral – ninguém passa impune ao latim – e a fome de falar e de viver que acaba comendo um pedacinho das palavras.
Guardadas as diferenças geracionais, são tantas referências que me falaram ao coração que nem sei pontuar. Mas o medo, angústia, alguma raiva e uma certa microrevolução – porque no final tende-se a sobreviver – reverberaram aqui. A infância, a adolescência, a formação do caráter junto com paus, bucetas, suores, desejos, pentelhos e o véu religioso, coroinhas, batinas, incenso, entra e sai de missa. Não vou esquecer a definição do cheiro das igrejas. Minhas narinas infantis. Sobretudo o medo, esse raio de inferno e céu que hoje meu filho tira onda e desmonta com uma pergunta suave na minha primeira investida-reza: mas o anjo não me responde, por que devo falar com ele?
São tantas histórias. E lembranças que andavam adormecidas. Dos sete aos quinze mais ou menos me lembro de ir confessar semanalmente: cuidava de começar com falei palavrão, desobedeci meus pais e enrolava a língua pra desviar do principal: pequei contra a castidade sozinha hahahaha. Muita análise depois, podemos rir e até se gabar de não ter virado uma coisa pior com tanta repressão. Quanta exigência e castigo pra começo de vida. Eu realmente tive pânico de pensar sobre isso durante muito tempo, mas hoje tento tratar com humor as cenas das missas em casa, aquela hóstia gigante que era a do padre, algumas vezes engastalhada, pedindo vinho. As risadas no meio da ´prática ´ que nos obrigavam a fugir pro quarto dos fundos. Meu tio era bispo e tinha a prerrogativa da missa em casa. Coisa ilustre. Minhas tias cantavam no coral da orquestra Ribeiro Bastos com um longo laranja. Coisa fina. Também tento relevar os dogmas caretas quando penso no canto gregoriano, nas pinturas, arquitetura das igrejas, nas orquestras e na doidera do ser humano de buscar uma transcendência por medo da morte.
Muito interessante o capítulo dedicado à cultura, um legado inegável dos seminários. Um apreço pela língua, cinema, literatura. Acho formidável que muitos padres de fato sabiam o que era fodástico no mundo das artes acatando tantos silêncios na direção oposta. E aí você se agarrou e foi por aí criando uma vida, seus filhos tão queridos, Leila e Robertinho, belezuras. Além da escola de comunicação onde estudei e que você teve papel importante na criação.
Aproveitei seu livro, como você pode ver, pra fazer mais uma vez minha catarse. Obrigada! Vou aproveitar agora a carta grande pra fazer, juntos, o jornalismo nosso de cada dia, nossa escolha de vida e tábua de salvação hehe Dar outros vôos pro Silêncio do Rio Comprido, pra outros reconhecimentos e reverberações por aí.
Seguem algumas perguntas, se puder responder, agradeço, pra gente publicar no site O Beltrano. Grande abraço, grande livro, aguardando o próximo, fincado no erotismo rs
beijos
De: Lélio Fabiano
Para: Ana
Ana querida, pra responder depressinha digo-lhe que seu e-mail entra nos top, não sei se dez, se cinco ou quantos… Tenho recebido muitas respostas/avaliações e a sua me tocou, profundamente, pela idade, pelo gênero e pela memória do cheiro dos véus desgastados e guardados em gavetas… Até agora, era mais de meninos que passaram por internatos… Mas são sempre respostas que me tocam, me recompensam, me sensibilizam e por aí vai…
Obrigado demais e meu beijo. Vamos lá nas respostas, na sequência das perguntas, abaixo:
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Dos personagens do livro acusados dos assédios narrados – o cardeal do Rio na década de 50, Dom Jaime de Barros Câmara, o padre responsável pelo alojamento e outro do alisamento barrigal, imagino que todos já tenham morrido. Você teve notícia deles ao longo da vida? Fez algum movimento de denúncia? Por que não citou todos os nomes?
O cardeal Câmara, que não passou daquela conversa, já era velho… Os dois padres referidos também já passaram desta para o nada… Não citei nomes pelo próprio estilo literário instintivo adotado e, no próximo, já começado, também será assim com personagens bem outros. O livro não foi escrito para denunciar pessoas, mas, sim, uma situação penosa da Igreja católica que, hoje, é bravamente encarada pelo “hermano” papa Francisco, que enfrenta uma série de vicissitudes com a Cúria romana.
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Perdão, virtude cristã, você nutre depois de tudo vivido?
Um dos elogios que me têm gratificado é que o meu livro não tem rancor. Perdão é coisa da igreja e eu saí dessa…
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A opção da terceira pessoa te deu afastamento necessário para revirar as memórias?
Comecei a escrita – literalmente, quando a iniciei – na primeira pessoa. No entanto, havia passagens que, literariamente, eu achava melhor a terceira pessoa. Depois, ficou a primeira pessoa só para o autor- protagonista-narrador-analisante psicanalítico contando, diretamente, para o leitor suas aventuras eróticas… Enfim, uma transgressão meio minha e que o leitor acaba acatando, sei lá!
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Como descreveria seu livro, memória-ficção, memórias, romance de formação, quais fronteiras e gêneros dizem respeito a ele?
Um colega jornalista iniciado nas lides literárias, um dia, me rotulou o livro como romance fragmentário; eu acrescento memorialístico, sem ser, stricto sensu, autobiográfico.
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Acompanha os movimentos no Brasil para esclarecimento dos crimes da Igreja em relação a assédio sexual e acobertamento dos responsáveis?
É importante se diga que eu quis fazer Literatura, escrevendo um romance. Um Autor deve querer dizer alguma coisa. Como jornalista eu quis cobrir uma pauta contemporânea que é o acobertamento dos assédios sexuais na Igreja e os próprios assédios; e eu fui testemunha e vítima. Contei sob um prisma mesmo de autoridade e estão lá o Latim e outras informações filosófico-tomistas que não deixam que duvidem…
SERVIÇO: O Silêncio do Rio Comprido – Lélio Fabiano dos Santos
Onde comprar em BH: Livraria da Rua, Leitura do Bulevar Shopping e do Pátio Savassi.
Editora: pedidos@mazzaedicoes.com.br
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