Jogo não é feito pra nós, não é feito por nós

Áurea Carolina, do Psol e do coletivo Muitas pela Cidade, explica ao O Beltrano como pretende colocar em marcha sua agenda progressista na Câmara de BH


Por Clarissa Carvalhaes

Divulgação

No gabinete (chamado pelas vereadoras de ‘gabinetona’) que divide com a vereadora Cida Falabella (PSOL), Áurea Carolina, também do Partido Socialismo e Liberdade, compartilha com seus pares vivências, projetos e expectativas. Moradora da regional Noroeste de Belo Horizonte, a cientista social e política pela Universidade Federal de Minas Gerais conhece bem os desafios de quem mora na periferia e as necessidades das muitas minorias que ocupam a capital mineira.

Áurea levanta as bandeiras da participação popular, da convivência democrática, do feminismo e da comunidade LGBT. Luta pela inclusão das mulheres (dentro da movimentação “Muitas pela Cidade que Queremos”), dos jovens (fundou o “Fórum das Juventudes da Grande BH”) e da população negra (pelo coletivo “Pretas em Movimento”).

E é, portanto, em nome dos seus mais de 17 mil eleitores, que dá os primeiros passos dentro da Câmara de Vereadores da cidade. Lá, onde assumiu o posto há pouco mais de um mês, Áurea já faz aliados na tentativa de tirar do papel audaciosos planos de campanha.

Em entrevista a O Beltrano, a vereadora de 33 anos fala sobre as perspectivavas diante da nova esquerda, os desafios do mandato e as mais diversas resistências que não tardaram em encontrá-la na Casa.

Qual foi a primeira impressão da senhora na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte?

Existe uma cultura de distanciamento da cidade. A lógica de trabalho, em geral, dos trabalhadores, não é de promover participação popular. Por mais que os vereadores circulem, que tenham suas referências de comunidade, isso não tem impacto de fora pra dentro.

Quer trabalhar para mudar isso?

O que a gente quer construir é essa abertura real. Das pessoas entenderem como isso aqui dentro funciona, porque é muito difícil. Nós ainda estamos decifrando essa vida institucional, as burocracias. E essa abertura como uma exigência é o que a gente tem como compromisso. Não é só como uma boa prática, isso tem que acontecer e por isso já encontramos resistências.

Em que momento a senhora decidiu entrar na Câmara?

Não teve uma virada de chave, um dia marcante, sabe? Foi processual mesmo. Eu fui me dando conta da necessidade, de que nas lutas a gente busca representatividade. Eu fui me convencendo de que poderia me candidatar, fui entendendo que tinha uma contribuição real a dar e que tinha que ser gente como eu. A gente tem o hábito de dizer que precisamos de mais mulheres na política, mais negras e periféricas, mas quem vai ser essa figura se não partir de nós mesmas? A minha decisão foi uma resposta a uma chamada de responsabilidade. Não adianta falar que tem que ter, a gente precisa se colocar nesse lugar.

E como tem se sentido nesses dois meses aqui na Casa?

É muito difícil porque o jogo não é feito pra nós, não é feito por nós, não é feito pra gente permanecer nele. Então é muito sacrificante em alguns momentos. O tempo inteiro a gente falou na campanha “queremos fazer” e agora tem uma realização. Tem dia que eu saio exausta daqui porque é muito difícil: a forma de funcionamento de plenário, a quantidade de demanda, precisamos processar o volume de informações e tudo isso é muito exaustivo.

É mais complicado do que a senhora supunha?

Imaginávamos que seria puxado, mas é só vivendo para realmente entender a carga. O impacto emocional, como a gente constrói posicionamento, como a gente se relaciona com as forças políticas, como criamos interlocução com a cidade para além do desejo, como é que todo dia vamos dando forma para o que sonhamos, para aquilo que a gente já experimentou em outros espaços, mas aqui é diferente de tudo. Não precisava ser diferente do que construímos nas lutas, mas é…

Essa sensação é por que demanda muito mais jogo de cintura, de política?

Sim, só que é um político no sentido que a gente critica. Não da política que a gente defende, que é democrática e inclusiva. É político porque é um jogo hierárquico, desigual. Um jogo em que as pessoas estão interessadas em tirar proveito e não em fazer justiça social. Isso pode até ser residual, mas o que determina são outras variáveis. Percebemos isso o tempo inteiro.

Apesar disso, já conseguiu identificar alguns pares?

Sim, têm pessoas que são próximas, como as que fazem parte do Grupo Progressista, como nós chamamos, que inclui os vereadores Arnaldo Godoy (PT), Pedro Patrus (PT) e Gilson Reis (PC do B). Tem ainda vereador Branco (Edmar, do PT do B), que é de luta no Ribeiro de Abreu. Também estamos construindo a bancada feminina, em parceria com as vereadoras Nely (PMN) e Marilda Portela (PRB). Aos poucos, vamos construindo conexões, mas a lógica geral é muito afastada dessas parcerias.

Qual a sensação de ter sido a vereadora mais votada de Belo Horizonte (Áurea foi eleita com 17.420 votos)?

Foi a confirmação de um trabalho. Eu tinha confiança de que era possível ganhar, óbvio que não tinha a ideia da grandeza do que seria o resultado, embora pudesse imaginar, mas foi surpreendente o número de votos. Muitas pessoas não estavam botando muita fé, mas o nosso coletivo acreditava. A gente trabalhou muito pra fazer dar certo, sabe? E foi um trabalho árduo, de mais de um ano de encontros, de articulações, de entendimento, de formulação. Chegamos para a disputa com muita consistência, por isso eu tinha convicção de que era possível. Essa votação estrondosa é só um sinal de que esse campo tem um potencial muito grande, de que a gente pode ir muito além, ainda mais nessa conjuntura de destruição de processos históricos de política inclusiva, de golpe…

O que fazer para mudar esse cenário de empresários assumindo a política?

Esse discurso de que a política é lugar de corrupto é ideológico e contribui para o afastamento da população da política formal, do sistema político. Apesar disso é reflexo de um desgaste da política tradicional. Nós precisamos recuperar o sentido da política como algo que vai nos emancipar como sociedade e não tem outro caminho se não for por esse. Só a política democrática é uma mediação universalizável. Logo, se nos afastamos da política, e isso tem acontecido, isso permite que os grupos que sempre dominaram os espaços de poder continuem lá. O que nos cabe é fazer com que as pessoas se sintam agentes da política, no melhor sentido possível da política, mas para isso a gente precisa transformar nossa cultura.

E isso deve ser feito nas escolas, com os pequenos, ou é preciso mudar agora?

Tem que ser (agora). A gente não pode se dar ao luxo de esperar uma nova geração. E olha, é na contradição que a política acontece, então temos que operar em vários espaços simultaneamente: na educação formal e na não formal, na cultura e na própria política institucional, que é um espaço de experimentação. É isso que estamos tentando construir a partir do mandato coletivo e da gabinetona (termo criado por Áurea e a vereadora Cida Falabella, porque dividem o mesmo gabinete e os mesmos projetos políticos).

Hoje a senhora é vista como a cara da nova esquerda em Belo Horizonte. Poderia me descrever, então, o que é essa nova esquerda?

Essas esquerdas em transformação que estão emergindo no nosso país e no mundo inteiro são uma confluência de lutas por justiça. É o encontro de todas as lutas: das mulheres, dos negros, da população LGBT. As lutas têm referências compartilhadas, mas têm suas especificidades. Veja bem, eu sou uma feminista, negra, interseccional e eu entendo que as opressões se combinam de uma forma que não dá para separar em gênero, raça, classe ou território. Eu percebo que essas novas esquerdas tratam de uma complexidade que em outros tempos não era percebível. Durante muito tempo, a esquerda tradicional foi criando facções ou tendências que competiam muito entre si, mas hoje não é mais possível ter um único movimento, uma única tendência de pensamento que queira trazer para si uma resposta universal. Isso até já existiu, mas não é mais possível. A política é esse território múltiplo e as soluções são sempre parciais, provisórias, incompletas, mas existe uma ordem de enfrentamento, e o que o credencia são as esquerdas. Porque a essa nova esquerda é a pura indignação contra a ordem vigente: riqueza e prosperidade para alguns poucos em detrimento da miséria e adoecimento da maioria. O que a esquerda faz é o enfrentamento de um sistema capitalista e do machismo, mas sabendo que essas coisas estão em nós também. Essas novas esquerdas têm uma conexão cada vez mais profunda entre o fazer político e a vivência. Sabemos que a minha experiência de vida precisa pautar a minha ação no mundo. Para que haja transformação daquilo que eu acho injusto, eu preciso considerar o que as pessoas pensam e sentem.

A pretexto disso que a senhora falou, como se fazer ouvir pelos seus colegas a ponto de conseguir adesões?

Nós não podemos ter ingenuidade. Evidentemente a gente não pode desistir de uma pegada educativa, isso tem que ser o nosso ponto de partida e a nossa linha de trabalho permanente. No entanto, existe um jogo competitivo, opaco, que já está aí e só com a boa vontade vamos aprender a fazer isso. Para tanto, temos que partir para as estratégias de luta mais acirradas e ter uma correspondência com a radicalidade dos movimentos. Não vai ter mudança no sistema de transporte público, por exemplo, só porque a gente está conversando. Então, alguns enfrentamos serão na rua sim; desde julho de 2013 isso está muito presente no Brasil.

Como os vereadores reagem sobre alguns projetos de campanha, em especial sobre o que prevê redução dos salários?

Já houve manifestação de vereadores que são super contrários e até tentam justificar os gastos. Algumas justificativas até são plausíveis, outras não. O que a gente propôs na campanha é que a política profissional não deve ter uma distância tão grande do cotidiano da população. Então, um salário de R$ 16 mil é uma afronta. Olha, eu não preciso de um salário tão alto. Não precisa ser um salário de miséria, mas tem que ser um salário que reduza essa discrepância entre o salário da maioria das pessoas, dos políticos e dos agentes do judiciário, por exemplo. Isso é simplesmente uma questão de justiça social.

E se o projeto de redução não passar?

Nós já estamos reservando metade do nosso salário de vereadora para construir um fundo de iniciativas sociais. A gente não sabe ainda como vai ser essa gestão desse fundo, os critérios, mas independentemente da aprovação da redução de salário na Câmara já uma atitude nossa. É o que a gente acha que precisa ser feito.

Mas a senhora acredita que esse projeto passa?

É muito difícil. Eu diria improvável até.

Acredita que outros vereadores podem aderir?

Outros sim, mas a maioria não. A não ser que mude bastante o cenário político aqui dentro e tenha uma pressão popular. Só se ficar indefensável manter esse salário.

Dito isso, qual a sua prioridade na Câmara?

É uma pergunta difícil. Nós operamos sempre num marco muito mais abrangente. Construímos um espaço chamado LabPop Experimental. É um laboratório popular de leis. Agora estamos fazendo análise de leis que estão em tramitação na Câmara e que nós consideramos críticos. Dentro do LabPop a gente convida colaboradoras das lutas para serem formuladoras conosco e a ideia é transformar o LabPop em um espaço propositivo. Nesse momento é reativo porque a gente tem uma demanda de centenas de projetos que vieram da legislatura anterior, a sequencia, a ideia é que esses laboratórios sejam de elaboração de projetos e a gente pretende ter uma atuação mais complexa. Ao invés de propor projetos pontuais, que é como funciona aqui, a gente pensa em ter uma contribuição mais efetiva. Por exemplo, apresentar um plano municipal de juventude; ou uma lei de cultura viva. Não queremos corrigir probleminhas, mas mudar a lógica de atuação do poder público. Agora, aprovar coisas desse tipo, é uma façanha. Nem sempre será possível e é aí que a gente volta para a força da luta. Afinal, o que nos traz até aqui é essa força e o que vai nos manter também.