Jornadas de Junho
Há exatos quatro anos, o Brasil fervia nas ruas
O jornalista João Gualberto Jr. e os acadêmicos Regina Helena Alves da Silva e Rudá Ricci vivenciaram e se debruçaram sobre aquele levante inédito no país, talvez o mais impactante da história do Brasil e certamente o principal desde a redemocratização, batizado como “Jornadas de Junho” de 2013. Gualberto acompanhou as jornadas como jornalista. Regina e Rudá são autores de obras que buscam interpretar e conectar os fios das jornadas.
Para marcar os quatro anos da eclosão das manifestações, O Beltrano convidou os três para olharem pelo retrovisor e descreverem o que veem.
Corrupção ‘padrão-Fifa’
Por João Gualberto Jr.
O principal legado da Copa no Brasil é inquestionável: a corrupção “padrão Fifa”. O megashow futebolístico mundial continua rendendo notícias por estas paragens, com figurões da política e dos negócios escalados como titulares da seleção do xilindró ou sentados no banco de reservas dos réus. A lama esparramada pela operação Lava Jato respingou nas obras de quase todas as 12 arenas e nas melhorias viárias e aeroportuárias das cidades-sede. Não poderia ser diferente. Afinal, quem armou o circo foi o mesmo colonial conluio entre elites políticas e empresariais.
Como a translação política brasileira se contabiliza em quadriênios, lembremos agora daquele mês, há quatro anos, em que o país se convulsionou de Norte a Sul. Não há consenso nem facilidade de compreensão do que foram os protestos, ou as jornadas, de junho de 2013. Exatamente no dia 17, as manifestações ganhavam dimensões nacionais pela primeira vez, com atos simultâneos em várias capitais, uma semana depois da eclosão em São Paulo.
O primeiro gatilho foi o aumento das passagens de ônibus na capital paulista, mas a realização da Copa das Confederações num contexto de “Estado de exceção Fifa” tornou-se o detonador. O “imagina na Copa” e o “não vai ter Copa” inflamaram milhões de brasileiros. A escolha do Brasil para realizar os torneios de futebol, assim como os Jogos Olímpicos dois anos depois, foram símbolos das aspirações do governo de então por emergência no cenário internacional. E a população soube ler esse esforço muito bem, confrontando-o com a cara arruinada do Estado que sorria para ela todos os dias nos postos de saúde, nas escolas e nas ruas esburacadas e mal iluminadas. Se era para fazer graça para o mundo, o povão exigiu padrão Fifa também nas políticas públicas.
Quatro anos depois de tudo aquilo, e aí? Uma das poucas certezas, em uma perspectiva histórica linear, é que os atos de junho de 2013 contribuíram decisivamente para as eleições de 2014 serem como foram… e a sequência não carece de relato. Somos hoje o que vivemos ontem.
As arenas
A conjunção historicamente viciada entre as corporações do segmento de construção pesada e a elite partidária sequiosa por recursos para financiamento de campanhas, é claro, aproveitou a realização das Copas para operar e faturar. As delações dos dirigentes do cartel das empreiteiras nos desdobramentos da operação Lava Jato jogaram sob suspeitas nada menos do que dez das 12 arenas que sediaram a Copa. Apenas o Beira Rio, em Porto Alegre, e a da Baixada, em Curitiba – casas do Internacional e do Atlético Paranaense, respectivamente –, não são focos de investigação de superfaturamento e desvios de recursos públicos.
A BBC Brasil apurou que das 12 arenas, cinco registram prejuízos operacionais milionários. A situação era previsível, uma vez que os mercados de futebol onde estão localizadas estão anos-luz aquém do “padrão gourmet” que a Fifa determinou e o conluio público-privado bancou. A Arena Pantanal, em Cuiabá, cujo resultado operacional anual é de R$ 8,3 milhões negativos, virou escola pública: os camarotes foram adaptados em salas de aula para atender cerca de 300 alunos.
No caso do Mineirão, em julho de 2016, a Polícia Federal prendeu temporariamente o presidente do consórcio construtor e do conselho de administração da arena. A suspeita, naquela que foi a 31ª fase da Lava Jato, era de que o gestor beneficiou-se de superfaturamento e fraude no processo de licitação. No dia seguinte, após coleta de depoimento pelo Ministério Público Federal, o suspeito foi liberado pelo juiz Sérgio Moro.
O mais interessantes, contudo, é que ex-executivos da Andrade Gutierrez informaram às autoridades que a reforma do Mineirão foi um esquema de corrupção em potencial que não deu certo. Isso porque as empreiteiras ficariam responsáveis pelo projeto, mas foram desestimuladas depois que o Estado estabeleceu para ele o formato de parceria público-privada. Na Assembleia Legislativa mineira, uma CPI da Minas Arena não vingou, ainda durante as gestões Antonio Anastasia e Alberto Pinto Coelho.
Até o Maracanã, templo mundial do ludopédio e palco das finais da Copa do Mundo e da das Confederações, foi sucateado tempos depois de o circo levantar sua lona. O imbróglio jurídico envolvendo o consórcio privado de administração, o do Comitê Organizador da Rio 2016 e o governo fluminense levou a um quadro triste de abandono e até de saques a materiais. Com passivos e débitos, virou filho sem pai, já que a Odebrecht (que surpresa!) era a administradora principal.
O estádio Mario Filho ainda aguarda novo certame para abertura de concessão. A última empresa interessada, uma francesa, desistiu do elefante em maio. Enquanto isso, os órgãos de controle apuram a denúncia do TCE do Rio de Janeiro de que houve superfaturamento de R$ 211 milhões nas obras do Maracanã, ou cerca de 18% dos custos de contratação.
A arena mais cara foi a de Brasília, cujas adaptações custaram R$ 1,8 bilhão. E o campeonato candango, quanto movimenta por edição? Pois bem, o déficit do Mané Garrincha é de R$ 6,4 milhões. No fim de maio, foram presos os ex-governadores do DF, José Roberto Arruda e Agnelo Queiroz, e o ex-vice-governador e assessor de Michel Temer Tadeu Filippelli. São suspeitos de se beneficiarem do esquema de superfaturamento da construção da arena de Brasília, estimado em R$ 900 milhões, ou seja, 50% das despesas da obra.
Destino e razão iguais teve o ex-presidente da Câmara e ex-ministro do Turismo Henrique Eduardo Alves (PMDB). A detenção dele, no começo deste mês, deveu-se à denúncia de sobrepreço na construção da Arena das Dunas, em Natal. O sucessor dele no comando da “Casa do Povo”, Eduardo Cunha (PMDB), também estaria no esquema e, já preso em Curitiba, foi contemplado com novo mandado de prisão. O estádio potiguar absorveu R$ 423 milhões em investimentos, dos quais R$ 77 milhões teriam sido superfaturados, segundo as investigações.
A Arena das Dunas, juntamente com a do Pantanal, a da Amazônia e a da Baixada, foi a que recebeu menos partidas em 2014, quatro. A tomar por base os 360 minutos de bola em jogo pela Copa em Natal, é como se cada um justificasse o desvio de R$ 213,9 mil. Pois esse valor médio seria o bastante para arcar com os custos de quase cem alunos da rede pública… por um ano.
Pontos finais
Quatro anos depois das Jornadas de Junho, continua entornando o caldo do desmazelo para com a coisa pública em jogadas relacionadas às Copas. Na cadeia da corrupção, quantos ramos menores não couberam nesse pequeno balanço em contratações para reformas de aeroportos, em projetos de melhorias viárias, de construção de modais de transporte, no estímulo aos setores de hotéis e restaurantes. É o modus operandi do país do futebol? Se é esse o padrão Fifa legado, é direito dos brasileiros reivindicarem coisa muito mais correta e benéfica.
Ironicamente, dois pontos finais: a camisa da CBF, vendida aos milhões em 2015 e 2016, tornou-se vestimenta-símbolo dos movimentos pró-impeachment; e o país receber a maior competição do planeta foi o maior estímulo para este jornalista desenvolver aversão ao futebol, não pelo que ele tem de esporte, mas por todo o resto.
Destino dos principais protagonistas de 2013
Dilma Rousseff
Sofreu impeachment e está em casa, em Porto Alegre. Foi indiciada pela Polícia Federal por suposta tentativa de obstrução à Lava Jato.
Joseph Blatter
Acusado de corrupção na cartolagem global, renunciou à presidência da Fifa e foi banido do futebol por oito anos.
José Maria Marin
Presidia à CBF, foi preso na Suíça em 2015 e, hoje, cumpre prisão domiciliar em um castelo de marfim em Manhattan, mas não sem ostentar uma tornozeleira eletrônica
Felipão
Foi prestar seus serviços técnicos na China na tentativa de quebrar a maldição contábil dos sete a um.
A diversidade tragada pelo simplório “fla-flu”
Por Regina Helena Alves da Silva*
Quatro anos depois prosseguem intensas as controvérsias sobre os sentidos das chamadas “Jornadas de Junho” de 2013 no Brasil. Daquele momento até hoje, foi se agravando uma intensa crise política e econômica que tomou a todos de assalto e tem transtornado a normalidade democrática do país.
Um ano antes da Copa do Mundo, em 2013, o Brasil realizou a Copa das Confederações e, naquele momento, a dinâmica dos megaeventos se linkou às novas possibilidades de manifestações populares que já vinham tomando conta de vários lugares no mundo. Os chamados “novos movimentos populares” ou “novas formas da política”, que tomaram as ruas de vários países, emergiram com força nas cidades brasileiras.
Segundo Manuel Castells, as novas formas de mobilização política evitam recorrer às instituições tradicionais. Esse fenômeno, também chamado de movimentos sociais em rede, comprometem, uma vez mais, as categorias dualistas que procuram diferenciar sociedade organizada e não organizada, politizada e não politizada, entre outras categorias de análise social do mundo político.
Também é comum entre eles o papel das redes sociais na comunicação e na visibilidade, servindo de ferramentas de organização, mobilização e difusão dos protestos. Por outro lado, as redes contribuem para uma rápida expansão territorial das ações e uma descentralização da luta. Estes são espaços importantes e que se interagem, e as redes oferecem a oportunidade de as pessoas, que nunca se movimentaram nesse sentindo, terem participação ativa nos processos de mobilização e ação no espaço urbano.
A ausência de uma liderança única e formal, assim como uma autonomia política e ideológica, também caracterizam esses protestos, e a espontaneidade e a liberdade ideológica são forças destes movimentos.
Os atos de 2013 já indicavam que o Brasil entrava na era da “globalização dos de baixo”, e o que para muitos, até hoje, é visto como manifestações da classe média já indicava a descrença política dos “de baixo” com as formas como as condições de vida urbana e de trabalho precário vinham sendo – e continuam sendo – tratadas pelas políticas públicas municipais, estaduais e federais.
Vários e diversos movimentos que há muito tempo já tomavam as ruas das cidades somaram-se a novas formas de organização e a uma grande diversidade de reivindicações. A onda de protestos que acometeu o Brasil em 2013 teve início no dia 10 de junho, na cidade de São Paulo. A manifestação, que inicialmente era em protesto ao aumento de R$ 0,20 no valor da passagem do transporte público urbano na capital paulista, foi a pedra de toque para levar as pessoas às ruas.
Ao aumento das passagens, somaram-se diversas outras reivindicações, tanto políticas quanto econômicas, e os atos assumiram ainda uma diretriz de luta por direitos civis. Foram incluídos nas reivindicações dos protestos a não aprovação das Propostas de Emenda Constitucional (PEC 33, 37 e, principalmente, 99), do “estatuto do nascituro”, do projeto de lei apelidado de “Cura Gay”, e a defesa dos direitos de ir e vir, da livre manifestação, por fim, a Saúde e Educação Padrão FIFA, entre outros.
Os protestos que agitaram o país naquele período ocorreram em diferentes tempos, espaços e dinâmicas: na forma de passeatas que caminhavam por pontos estratégicos da cidade; na mobilização ocorrida através das redes sociais pela internet; ou nas ocupações que expressavam e marcavam no espaço, tanto físico quanto simbólico, a tensão presente entre os interesses dos megaeventos e os interesses dos habitantes da cidade.
Aquelas reivindicações, hoje, são discutidas em meio a uma intensa polarização política que procura obscurecer as questões que estavam em cena naquele momento. Uma visão distorcida das jornadas levam a inúmeros ativistas e militantes partidários trocarem farpas, condicionando a imensa multiplicidade de questões colocas pelas jornadas a serem ações de “direita” ou de “esquerda alternativa”, ou mesmo de “isentões” (termo criado para se referir a ativistas que não se reconhecem nas disputas partidárias brasileiras).
Essas formas de entender 2013 foram agravadas com a campanha presidencial de 2014, quando a polarização entre as candidaturas de Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) tomou proporções alarmantes no ataque entre os apoiadores de cada lado. Essa polarização tensa, que foi tomada como uma luta entre a direita e a esquerda, fez com que nos esquecêssemos dos problemas que vieram à tona em 2013 e ficaram sem respostas – a não ser por meio de repressão e demonização das formas de luta que passaram a ter visibilidade midiática naquele momento.
Em pesquisas que procuravam entender a continuidade dos movimentos de 2013, identificamos a atuação dos movimentos de luta por moradia e pela mobilidade urbana como sendo os que continuam a atuar localmente, até os dias de hoje, na busca por melhores condições de vida urbana.
Este foi o detonador do rastilho da pólvora que se alastrou por todo o país em junho de 2013: a percepção de que não existiria legado dos megaeventos e que os transtornos causados nas cidades não seriam para a população e, sim, para negócios de determinados setores que, agora, aparecem no noticiário na forma de denúncias de órgãos públicos como sendo atos de corrupção ligados a interesses políticos e econômicos. Indicadores dessa crise eram os gritos dos manifestantes que denunciavam a “compra” do país pela FIFA e a forma como a cidade tinha voltado as costas aos seus cidadãos.
Hoje, quatro anos depois, em meio ao turbilhão do que uns chamam de golpe e outros de “normalidade institucional”, vemos as denúncias sobre as atuações dos grupos econômicos ligados aos megaeventos virem à tona com o sucateamentos de estádios e a falência de suas formas público-privadas de gestão; vemos os megaprojetos de infraestrutura como portos e aeroportos serem tragados por denúncias de superfaturamento; as estruturas urbanas de mobilidade inconsistentes e sem funcionalidade para as cidades; e a imagem síntese do que foi denunciado em 2013: a promessa de transformação do Rio de Janeiro em uma megacidade global de turismo ser transformada em um pesadelo de violência, abandono e desrespeito aos direitos humanos.
*Coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias UFMG
Uma expectativa política frustrada
Por Rudá Ricci*
As manifestações de 2013 fizeram confluir diversas forças sociais, quase todas imbuídas de valores autonomistas, ou seja, uma cultura pela organização horizontalizada, crítica feroz ao papel de lideranças e organizações hierarquizadas, tomada dos espaços públicos para auto-organização e cogestão e valorização suprema da individualidade. As diversas forças – MPL, anarquistas, autonomistas, Comitês das Copas, alguns sindicatos e partidos de esquerda – compuseram um mosaico heterogêneo e desarticulado entre si. Os 12 Comitês da Copa forjaram, talvez, a estrutura mais organizada e fundamentada de todas, embora sem destaque no “carnaval político” que tomou as ruas durantes as três semanas que abalaram o Brasil.
Com efeito, os Comitês da Copa se estruturaram muito antes das manifestações de 2013, construídos a partir de seminários acadêmicos organizados em São Paulo, tendo Raquel Rolnik como referência teórica e citada por diversos militantes dos Comitês. Daí a clareza política – e de informações – sobre o impacto social negativo e os gastos excessivos com a construção de arenas construídas para a Copa do Mundo de 2014.
Ocorre que, em 2013, os Comitês tiveram um papel político mais relevante do que durante a Copa do Mundo propriamente dita, dada a reação desproporcional de governos estaduais e federal, identificando qualquer oposição ao evento futebolístico como terrorismo.
Pouco antes do início da Copa, os 12 Comitês se reuniram em Belo Horizonte e se concentraram numa escola estadual da capital mineira. Esperava-se que, deste encontro, saíssem ações mais articuladas e se preparasse uma reação organizativa mais madura ao confronto e às táticas que as PMs já esboçavam. Mas não foi isso o que se viu nos meses seguintes. Ao contrário, a reação esboçada pelos comitês ficou na lógica defensiva e numa vitimização típica da cultura das redes sociais.
Os Comitês revelaram, afinal, uma ingenuidade política que indicava que as mobilizações de 2013 estavam aquém do papel político que o Brasil vislumbrou. Moto contínuo, o método foi tomado, a partir do segundo semestre de 2014 e ao longo dos dois anos seguintes, por forças políticas que, em princípio, eram rejeitadas pelos manifestantes de 2013.
*Sociólogo e diretor-geral do Instituto Cultiva