Kalil, Pimentel e a ocupação da Izidora

Reviravolta num dos maiores conflitos fundiários da América Latina


por Juliana Afonso e Lucas Simões
 

Não se viu, nos quatro anos da ocupação da Izidora, avanço tão significativo como o registrado no último dia 20 de março, quando o prefeito Alexandre Kalil (PHS) desistiu da ação de reintegração de posse de uma pequena parte da Rosa Leão (uma das três ocupações que compõem a Izidora). A medida não é definitiva e sequer garante a moradia para parte das 30 mil pessoas residentes em toda a área de 933 hectares ocupada em 2013. Mesmo assim, a decisão da prefeitura provocou uma reviravolta nas negociações relativas às outras três ações de despejo ainda vigentes.

A PBH não fez barulho. Se limitou a informar, por meio de nota à imprensa, que a Procuradoria Geral do Município encaminhou à Justiça petições de desistência de duas ações de despejo na região da Izidora. Apesar da prefeitura não confirmar o tamanho do terreno, as ações dizem respeito a uma pequena parte da ocupação Rosa Leão, de área total de 26.000 m², e da comunidade Zilah Sposito-Helena Greco, de 25.106 m², segundo dados do relatório elaborado pelo grupo de pesquisa Praxis, da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ainda assim, a decisão da Prefeitura só garante o afastamento provisório do risco de despejo.

“Essa não é uma decisão definitiva, não. A PBH apenas desistiu da ação de despejo relativa à área pertencente ao município, que é muito pequena, correspondente a 3% da região da Izidora. O restante é da família Werneck e de outros empresários. A gente tem a promessa do Kalil de que ele vai fazer de tudo para urbanizar e regularizar a área. Mas, em termos jurídicos, a qualquer momento eles podem entrar com nova ação, porque a área ainda é da prefeitura. Ainda não foi formalizada uma doação”, diz a advogada Taís Clark, do Coletivo Margarida Alves, que atua na defesa jurídica das ocupações da Izidora. As organizações políticas e a assessoria jurídica popular que acompanham o processo e os moradores das ocupações pleiteiam a regularização de todo o terreno, que inclui não só a titulação da terra, mas também o acesso a todos os direitos fundamentais previstos pela Constituição, como água, esgoto, saneamento, educação e saúde.

Em campanha eleitoral, Kalil frisou diversas vezes que a sua gestão elaboraria um plano para regularizar as ocupações da Izidora, mas sem mencionar como isso seria feito na prática ou se o terreno poderia ser doado aos moradores. No dia 2 de abril, um domingo, o prefeito esteve na região da Izidora, reafirmando o compromisso de urbanizar a área. Porém, procurado pela reportagem d’O Beltrano, Kalil não quis comentar o assunto e nem as próximas medidas da PBH. Contudo, o chefe da assessoria de imprensa da prefeitura, Chico Maia, disse que o poder público vai manter as reuniões com os movimentos populares – desde o início do mandado de Kalil, em janeiro, foram dois encontros –, mas que depende dos outros atores envolvidos.

“A Prefeitura já retirou a ação de reintegração de posse, mas os desdobramentos disso, não sabemos. Porque serão conversações que vão durar bastante ainda, tem muita gente envolvida, o Governo do Estado, outros empresários. O que será feito no futuro, quais serão os passos jurídicos da PBH, ainda é muito cedo. Vamos manter o diálogo e ajudar para que o diálogo não pare. Isso, vamos fazer”, diz Chico.

Apesar disso, a coordenadora da Defensoria Pública de Direitos Humanos, Cleide Nepomuceno, diz que, inicialmente, a tendência é que haja uma revisão nos três processos de integração de posse restantes. Atualmente, tramitam no judiciário mineiro ações de despejo movidas pelos empresários Paulo Henrique e Ângela Werneck e pela sociedade Granja Werneck S.A, que têm planos de erguer um empreendimento do “Minha Casa, Minha Vida” na Izidora, com 8.996 apartamentos construídos pela Direcional Engenharia. Os processos, ainda em análise pelo juiz Rinaldo Kennedy Silva, da 4ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública de Belo Horizonte, afetam parte da ocupação Rosa Leão, além das ocupações Esperança e Vitória, totalizando uma área de 927,9 hectares ­ toda a região da Izidora, excluindo os 5,1 hectares pertencentes à PBH.

“Uma vez que a ação do município foi extinta, uma mudança na competência do juízo deve ocorrer. Hoje, todos os processos estão reunidos, juntos, por juízo fazendário, porque o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que eles têm familiaridade. Mas, agora, com a desistência da ação da PBH, o juiz deverá reavaliar a condição de cada processo de reintegração de posse, chamar as partes para conversar. A Defensoria Pública ainda não teve acesso às vistas do processo, inclusive porque pedimos para o juiz considerar uma série de demandas básicas da Izidora antes de devolvê-lo, como saneamento e educação. Vamos aguardar o juiz disponibilizar o processo de volta. E também vamos continuar acompanhando as negociações entre as partes”, analisa Cleide.

Fora isso, uma mudança no Código de Processo Civil (CPC) de 2015 altera a forma como as reintegrações de posse podem ser cumpridas em solo nacional. Antes de uma ordem de despejo ser executada pela Polícia Militar é obrigatório que seja realizada audiência de conciliação entre as partes. No caso das ocupações da Izidora, o pedido de realização da audiência foi feito pela defensora pública Cleide Nepomuceno, em 13 de dezembro do ano passado, mas ainda sem resposta do juiz.

“É uma tese com fundamento no artigo 565 do primeiro parágrafo do CPC. Esse artigo fala que nos casos de ações de reintegração de posse com mandato expedido há mais de um ano e ainda não cumprido, o juiz deveria fazer uma audiência de conciliação, em que ele pode convidar outros atores envolvidos. É uma tentativa para evitar o uso de forças policiais. Já fiz o pedido ao juiz Rinaldo, vamos aguardar”, completa Cleide.

Foto: Mídia Ninja

Futuro

Mesmo com os recentes avanços, o futuro das ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, que constituem a região da Izidora, ainda depende de negociações com o Governo do Estado, que faz a mediação entre os moradores da Izidora e os empresários com ações de reintegração de posse na Justiça. Depois de dois anos e três meses sem receber movimentos sociais presencialmente, o governador Fernando Pimentel (PT) convocou uma reunião com os movimentos populares, mas cancelou o encontro marcado para às 17h da última terça-feira (21), no Palácio da Liberdade, com a Comissão das Ocupações da Izidora, as Brigadas Populares, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e o Coletivo Margarida Alves.

Presente no encontro, a advogada Taís Clark, do Coletivo Margarida Alves, disse que o governador teria vetado a participação de Leonardo Péricles, do MLB, e do Pastor Alberto, coordenador da ocupação Vitória. “Eles já haviam reduzido a nossa comitiva a quase metade. Depois de uma hora e meia de negociação para fechar nossos representantes, não deixaram o Leonardo e o pastor Alberto participarem. Isso revoltou várias pessoas presentes porque os dois são lideranças nesse processo e é um absurdo que o governo escolha quem são as lideranças dos movimentos. Mas o governo não cedeu”, diz Taís.

Em nota, os movimentos informaram que o impedimento foi feito sem alegações plausíveis, a não ser perseguição política. “O MLB não aceitou entrar para a reunião e os demais movimentos e coordenações não aceitaram também”, afirma Leonardo Péricles.

A reportagem tentou contato com o Governo de Minas, mas a assessoria de imprensa da Secretaria de Planejamento e Gestão, responsável pelas negociações da Izidora, não disponibilizou nenhuma fonte para comentar o cancelamento da reunião e nem confirmou se há interesse em remarcá-la

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Negociação

A mesa de negociação entre as ocupações da Izidora e o governo do Estado foi aberta em novembro de 2013, após uma manifestação que se transformou em um acampamento na entrada da Cidade Administrativa. A abertura da mesa, porém, não freou as ações de desocupação e, em 2014, as famílias viveram a iminência de um despejo forçado. Naquele momento, organizações políticas, movimentos sociais, ativistas e moradores de outras ocupações criaram uma rede de apoio para pressionar pela permanência das comunidades. No dia 12 de agosto, após um mês de intensa movimentação, uma decisão judicial impediu a ação da Polícia Militar com a justificativa de que a reintegração de posse não poderia ser feita enquanto o governo do Estado não apresentasse alternativas de acesso à educação para as crianças e adolescentes para o pós-desocupação.

Os moradores da Izidora viveram o ápice da tensão em 19 de junho de 2015, quando a Polícia Militar anunciou que a Justiça havia autorizado a reintegração de posse e poderia efetivar o despejo a qualquer momento. No mesmo dia, os moradores realizaram uma marcha até a Cidade Administrativa e foram reprimidos violentamente pela Polícia Militar que utilizou bombas de efeito moral e balas de borracha contra os manifestantes, entre os quais havia crianças, idosos e portadores de necessidades especiais. “Várias pessoas ficaram feriadas, outras foram presas. Caiu uma bomba dentro do carrinho de uma criança da ocupação Esperança. Se a mãe não tivesse tirado ela de lá nós teríamos perdido a criança”, rememora Nilce Helena de Paula, moradora e uma das coordenadoras da ocupação Vitória.

Os abusos foram descritos em um relatório que serviu como fundamento jurídico para demonstrar o risco de morte que as famílias corriam com a atuação da Polícia Militar. O Coletivo Margarida Alves apresentou essas violações ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ). “Não se estava discutindo se as ocupações eram certas ou erradas, mas sim o fato de que a ordem do governador e do comandante da PM era ilegal porque eles não comprovaram os meios para fazer o despejo, não comprovaram que davam conta de despejar as pessoas sem causar morte”, afirma a advogada popular Júlia Franzoni, membro da Rede do Coletivo Margarida Alves e pesquisadora do grupo de pesquisas Indisciplinar, da UFMG.

No dia 29 de junho de 2015, o ministro Og Fernandes concedeu medida liminar que suspendeu o cumprimento dos mandados de reintegração de posse. A medida declarava que “a desocupação da área, à força, não acabará bem, sendo muito provável a ocorrência de vítimas fatais. Uma ordem judicial não pode valer uma vida humana. Na ponderação entre a vida e a propriedade, a primeira deve se sobrepor”. A decisão abriu um precedente no que diz respeito aos conflitos fundiários em território nacional. A ocupação Vila Soma, em Sumaré (SP), usou argumento semelhante e também teve a reintegração de posse suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 14 de janeiro de 2016.

Foto: Mídia Ninja

Reviravolta

Após a decisão do STJ, o caso das ocupações da Izidora agora teria de ser julgado pela Corte Superior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O julgamento aconteceu no dia 28 de setembro de 2016. Os moradores fizeram nova marcha, dessa vez de quase 30 quilômetros, desde a ocupação da Izidora até o centro de Belo Horizonte. Mesmo assim, 18 desembargadores votaram pelo despejo, e apenas um contra. “Falaram de forma raivosa. Um dos desembargadores inclusive falou ‘se tiver morte, vou dormir com minha consciência tranquila porque cumpri com meu dever legal’”, conta o advogado popular Luiz Fernando Vasconcelos, militante das Brigadas Populares, uma das organizações que acompanha as ocupações da Izidora.

A partir de então, a mesa de negociação, que tinha deixado de se encontrar desde a decisão do STJ, em 2015, foi restabelecida e as manifestações e atos de resistência se intensificaram. A política fervia com o recente impeachment da presidente Dilma Rousseff e o congelamento de gastos em áreas sociais anunciado por Michel Temer, inclusive para o programa Minha Casa, Minha Vida. O contexto local também era de mudanças, com as eleições municipais e a entrada do atual prefeito Alexandre Kalil, que havia prometido durante sua campanha eleitoral a regularização das ocupações da Izidora.

Com a posse de Kalil, a Prefeitura, que nunca havia participado da mesa de negociação, começa a se encontrar com as organizações, movimentos e moradores da Izidora. “Isso é importante porque a competência pela ordenação do território é do município e não do Estado. Ainda que a Prefeitura não seja dona da maior parte dos terrenos, ela pode resolver a situação, pode desapropriar, pode transformar o local em área de interesse social, pode dar uma solução através de ferramentas urbanas para regularizar as ocupações”, afirma Júlia.

Prefeitura, Estado e a construtora Direcional apresentaram uma proposta para as ocupações no dia 19 de janeiro, que prevê a urbanização e regularização integral das ocupações Rosa Leão e Esperança e de parte da ocupação Vitória e a implantação do “Minha Casa, Minha Vida” em parte da ocupação Vitória, com remoção dos moradores da área destinada ao empreendimento e auxílio financeiro aos mesmos. A proposta foi analisada com uma série de ressalvas. “A gente não sabe a quantidade de famílias que serão removidas, uma vez que não foi feito cadastro, e que o governo não apresentou pra gente a área exata onde vai haver a remoção. As famílias não aceitam um acordo que não seja claro e transparente”, afirma Charlene Egídio, moradora e uma das coordenadoras da ocupação Rosa Leão.

Quando Kalil desiste das ações das duas áreas que lhe dizem respeito, há uma sinalização no sentido de regularizar as ocupações. “Agora nós precisamos que o governador Fernando Pimentel sente com a gente para conversar não mais sobre o despejo, mas sobre regularização das ocupações, o título de propriedade para as famílias, a entrada de água, luz, saneamento entre outras coisas”, reitera Charlene.

Desde a decisão da Corte Superior do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o despejo está legitimado e pode acontecer, mas os movimentos acreditam que ele não aconteceu ainda devido ao ônus político que isso poderia gerar ao governo de Fernando Pimentel. “O poder de agenda do conflito está na mão da ação direta dos movimentos. As coisas acontecem porque as pessoas pressionam, e não porque o Estado que está interessado em mediar o conflito”, afirma Júlia Franzoni.

Histórico

As ocupações da Izidora começaram em junho de 2013, quando as primeiras famílias chegaram ao local que hoje abriga as comunidades Rosa Leão, Esperança e Vitória. O terreno, abandonado há mais de 40 anos, não cumpria a sua função social. Era o típico exemplo de especulação imobiliária em área sob influência da construção da Linha Verde e da Cidade Administrativa. Hoje, no terreno, moram mais de 8 mil famílias, cerca de 30 mil pessoas, que construíram, ao longo dos anos, mais de 5 mil casas de alvenaria.

Segundo o advogado Luiz Fernando, as ocupações “são a expressão da vontade popular”.

“A narrativa de transformar a cidade de forma a efetivar os nossos direitos está vencendo a narrativa autoritária e padronizada. De um lado, os empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida, com 39 metros quadrados cada unidade, e do outro as casas construídas a maneira e forma dos sonhos das pessoas”.

Nesse link é possível acompanhar a linha do tempo sobre a mesa de negociação da ocupação Izidora. O trabalho é uma pesquisa em andamento levada a cabo por Julia Franzoni e Daniela Faria, do grupo de pesquisa Indisciplinar, da UFMG: http://oucbh.indisciplinar.com/wp-content/uploads/2017/04/Mesas-de-negocia%C3%A7%C3%A3o-Izidora-Folha1-1.pdf