Latifúndios à base de sangue
Em exclusiva para O Beltrano, representantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) contam o que ocorreu na fazenda Santa Lúcia, no distrito de Pau D'Arco, em Redenção, onde uma chacina deixou 10 camponeses mortos
Por Lucas Simões
Com a segunda maior chacina de trabalhadores rurais das últimas duas décadas, acontecida em 24 de maio, quando dez camponeses foram assassinados por policiais na fazenda Santa Lúcia, no distrito de Pau D’Arco, município de Redenção, no Pará, o Brasil passa a viver em 2017 um dos períodos mais violentos no campo de sua história. São 41 homicídios contabilizados até junho, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), enquanto no ano passado inteiro foram 60 assassinatos.
Para os representantes da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), a intensificação dos conflitos agrários e dos assassinatos é sustentada pelo braço armado do próprio do poder público. As denúncias apontam que praticamente todos os crimes contra camponeses, quilombolas e indígenas registrados neste ano tiveram a participação de policiais militares e civis.
“É claro que os conflitos já existiam. Mas, de um ano para cá, experimentamos uma intensificação das ações violentas, impulsionadas pela agenda do governo em afrouxar a regularização fundiária na Amazônia Legal. Muitos fazendeiros e grileiros estão conseguindo terras do governo ou fazendo pressão para isso. Mas o que nos assusta é a participação cada vez maior de policiais. Eles estiveram em todos os casos do último ano”, denuncia José Carlos, da Comissão Nacional da Liga dos Camponeses Pobres (LCP).
Na segunda-feira passada, 7 de julho, outro líder da ocupação Fazenda Santa Lúcia foi assassinado. Sobrevivente da chacina, Rosenildo Pereira de Almeida, 44, conhecido como “Negão”, foi executado com tiros na cabeça ao sair de uma igreja na companhia do neto de quatro anos. Poucos dias antes, ele havia participado da reconstituição da chacina de Pau D’Arco, feita pela Polícia Federal.
“No dia em que foi morto, ele falava que ia deixar Pau D’Arco porque a família não podia correr risco. Já tinham sido ameaçados com uma carta e um desenho. Ele foi ameaçado por um policial à paisana depois da chacina. Ia se mudar no mesmo dia. Em momento algum, o Rosenildo se intimidou. Foi fazer a reconstituição porque queria trazer a verdade à tona. Ele era um dos líderes do acampamento e foi morto para silenciar a investigação”, completa José Carlos.
Até o momento, 13 policiais estão presos temporariamente, dos 29 suspeitos de envolvimento no crime. Entre os detidos está o subcomandante da Polícia Militar de Redenção, tenente-coronel Carlos Kened Gonçalves de Souza, além de dois policiais civis e 11 militares. Os presos foram identificados com a ajuda dos sobreviventes da chacina na Fazenda Santa Lúcia. A camponesa Sterfia da Silva, 24, confirmou que vários camponeses reconheceram as vozes de policiais da região, que teriam efetuado os disparos indiscriminados, inclusive à queima-roupa. Ela perdeu sete parentes na chacina, incluindo o marido, Regisvaldo Silva, 24, conhecido como “Guri”, e só se salvou porque estava cuidado do filho de dois meses no hospital.
“Toda semana a gente fazia reunião e sempre aparecia gente estranha. Homens tirando foto. Vinham naquelas caminhonetes de vidro preto. Várias vezes a gente via movimentação estranha na ocupação e eu falava com a Jane (de Oliveira, coordenadora da ocupação, assassinada com um tiro na cabeça): ‘esse povo parece polícia’. A gente ouvia vozes e, com o tempo, começamos a identificar que as vozes eram dos mesmos policiais que faziam operações aqui e falavam para a gente deixar a terra, ir embora. No dia da chacina, eu não estava lá, mas vários amigos reconheceram as mesmas vozes desses policiais”, disse Sterfia.
O coordenador da Liga dos Camponeses Pobres no Pará, José Fonseca de Souza, mais conhecido como Pelé, denunciou ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) o envolvimento do delegado Valdivino Miranda da Silva Júnior, da Delegacia de Conflitos Agrários (DECA) de Redenção, como responsável pela operação. “Uma das vozes que sempre escutamos no acampamento é do Valdivino. Ele não foi nem investigado pela polícia e tem histórico de violência. E agora parece que fez uma delação para contar tudo por debaixo dos panos”, disse Pelé.
Na última segunda-feira (10/7), o delegado Valdivino Miranda e o tenente-coronel Carlos Kened, ambos presentes na chacina, fecharam delação premiada com a Polícia Federal, em acordo costurado pelo Secretário de Segurança Pública do Pará, Jeannot Jansen. Os depoimentos já foram prestados, mas ainda correm em sigilo por não terem sido anexados ao Processo Investigativo Criminal.
Família Babinski
O presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Darci Frigo, investiga a atuação de agentes das Polícias Civil e Militar na defesa dos interesses de fazendeiros da região, principalmente da família de Honorato Barbinski. O empresário do ramo madeireiro, já falecido, deixou a Fazenda Santa Lúcia de herança para a mulher, Maria Inez Resplande de Carvalho, e os três filhos. O registro dos 5.694 hectares da propriedade está em nome de Honorato Babinski Filho, mais conhecido na região como “Noratinho”.
“O Pará tem uma situação grave de grilagens de terra e muitas famílias tradicionais estão envolvidas. Hoje, existem 9.124 propriedades registradas no Pará. São 489 mil alqueires registrados. Mas acontece que o Pará só tem 124 mil alqueires. É uma situação que deixa claro a grilagem de terras, com registros sobre registros. Mas os esforços do governo de Michel Temer agora têm sido justamente facilitar essa grilagem”, diz Frigo.
Ele também lembra que o episódio da Fazenda Santa Lúcia não é o primeiro em que a polícia mata nas terras dos Babinski. Em 2013, a viúva do empresário, Maria Inez, foi acusada de pagar um agente da Polícia Civil para retirar posseiros de outra fazenda, no Pantanal. Dias depois, na mesma fazenda, um grupo de policiais civis executou o funcionário que teria feito o pagamento a pedido de Maria Inez, o segurança Leomar Almeida da Silva. “Ainda é uma história mal apurada, com inquérito a ser concluído pela polícia”, diz Frigo. Em justificativa, a Polícia Civil informou que estava cumprindo uma operação rotineira e que Leomar “era responsável por assaltos a bancos, tráfico de drogas e invasão de fazendas”. Apesar disso, o segurança não tinha qualquer registro de passagem pela polícia.
Um ano depois, em 2014, a viúva de Babinski ganhou na justiça uma ação de reintegração de pose contra 20 famílias ocupantes de 4 mil hectares da Fazenda do Cipó, em Santa Maria das Barreiras (PA), a cerca de 2h30 de Redenção. Na época, camponeses também denunciaram ameaças de policiais à paisana. A disputa se arrasta até hoje. “Os camponeses apresentaram documentos mostrando que só havia documentação de 200, dos 800 alqueires da fazenda. Então, pelo menos 600 alqueires são terras do Estado, segundo eles. Mas a Justiça não reconhece isso. Então, é um risco para as famílias ficarem lá, tentar voltar. Muitos relataram coação de policiais, ameaças”, completa Frigo.
Histórico
José Carlos, da Comissão Nacional da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), avalia que a atual onda de violência no campo começou a se acentuar em maio de 2016, quando o agente de saúde guarani kaiowá Clodione Aquileu Rodrigues de Souza, 26 anos, foi morto a tiros dentro da fazenda Ivu, a 20 quilômetros de Caparaó (MS), em uma região conhecida como Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I. À época, a Câmara dos Deputados do Mato Grosso do Sul fez um relatório com depoimentos de vários indígenas. Eles afirmaram que policiais militares deram “cobertura” para o fazendeiro Virgílio Mata Fogo coordenar o ataque com mais 70 pistoleiros. Até hoje, ninguém foi responsabilizado pelo crime.
Neste ano, em 1º de abril, apenas dez dias após a chacina de Pau D’Arco, outros sete assassinatos também aconteceram no Norte do país por disputas de terra. Em 1º de maio, Dia do Trabalhador, quatro corpos de agricultores foram encontrados carbonizados dentro de uma caminhonete, na zona rural de Santa Maria das Barreiras (PA), região de histórico conflito agrário. Dois dias antes, em 29 de abril, três corpos de agricultores foram incinerados em Corumbiara (RO).
Ainda neste ano, um bárbaro ataque aos indígenas da etnia gamela, no município de Viana (MA), deixou 13 feridos e, por sorte, nenhum morto. O bispo de Viana, Dom Sebastião Lima Duarte, chegou a prestar queixa à Polícia Civil, relatando que policiais militares teriam desarmado os indígenas e “preparado o terreno” para a tentativa de chacina. A PM nega a versão e até hoje não foi sequer aberta uma investigação sobre a atuação de policiais militares no caso.
Cerca de 20 dias após o ataque aos índios gamela, nove camponeses foram assassinados na zona rural de Taquaruçu do Norte, distrito de Colniza, no Mato Grosso, a 1.065 quilômetros de Cuiabá. “É um caso emblemático, porque foi provada a participação do sargento Moisés no crime. Ficou escancarado que policiais agem em conluio com fazendeiros para matar camponeses e proteger a grilagem de terras”, disse José Carlos.
O 3º sargento da PM de Rondônia, Moisés Ferreira de Souza, foi apontado como o chefe dos pistoleiros. Ele se entregou em junho e permanece preso. Em seu depoimento, o ex-policial disse que foi contratado pessoalmente pelo empresário do ramo madeireiro Valdelir de Souza, 41 anos, denunciado pelo Ministério Público como mandante do crime. Apesar de ter decretado a prisão temporária de Valdelir, o delegado responsável pelo caso, Edison Pick, decidiu não indiciar o fazendeiro, que permanece solto.
Legislação
O número de terras desapropriadas no Brasil vem caindo vertiginosamente nos últimos anos. Desde 2013, quando foram desapropriadas 100 propriedades na gestão Lula, o país não chegou nem perto desse índice nos três anos seguintes. Em 2014, foram 30 desapropriações e, em 2015, nenhuma. Em 2016, a presidenta Dilma Rousseff chegou a assinar 21 decretos desapropriatórios em 13 regiões do país, às vésperas do impeachment, em 4 de abril. Porém, todos foram anulados por Michel Temer.
Na última terça-feira (11/7), Temer sancionou o projeto de lei que altera radicalmente os mecanismos de desapropriação de terras, sob a justificativa de agilizar e tornar mais rigorosa a emissão de títulos de terras em áreas da União. Na prática, porém, o projeto pode abrir brechas para aumentar a grilagem de terras.
“Ao invés de dar uma concessão para que o trabalhador use a terra de acordo com sua função social, o que é previsto na Constituição de 88, agora o governo quer dar títulos por decreto aos proprietários. Ou seja, o trabalhador que está assentado na terra não terá mais como recorrer à Concessão de Direito Real de Uso (CDRU), um contrato que transfere os direitos de determina terra da União para o trabalhador. Agora, com a mudança, as terras serão disputadas a tapa no mercado pelos ruralistas, que vão pagar preço de banana pelos lotes que eles já grilaram no passado”, diz José Carlos, da LCP.
Segundo ele, pelo menos três outros pontos favorecem os ruralistas em detrimento dos camponeses. Primeiro, o aumento da porção de terra passível de ser legalizada, de 1.500 para 2.500 hectares. Depois, a ampliação da regularização para quem ocupou terras ilegalmente até 2011, sendo que antes o prazo permitido era até 2004. E, por fim, a permissão da lei para que as terras ocupadas sejam devidamente compradas por seus proprietários por até 50% do valor mínimo da tabela do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que vai mediar todo o processo.
“As famílias, a partir de agora, vão começar a ser chamadas pelas próprias prefeituras para regularizar as terras. Será uma espécie de edital municipal. O problema é que a União transfere para os municípios a responsabilidade de acompanhar e validar o processo de desapropriação de terras. No interior do país, no Sul do Pará, em Rondônia, na Amazônia Legal, enfim, em várias regiões onde há forte conflitos de terras, sabemos que fazendeiros têm forte influência na política local. É óbvio que, se o processo for municipal, haverá pressão dos ruralistas sobre os prefeitos e gestores”, diz José Carlos.