Linchamento virtual

Duas especialistas falam sobre loucura coletiva na internet


Por Clarissa Carvalhaes

Era para ser só uma rede social, mas muitas vezes se transforma numa distopia perturbadora. Ataques, injúrias, ofensas, ameaças. Quando você menos espera está assistindo (ou participando) de uma série de linchamentos virtuais. E nesse momento você percebe que a lógica na internet, ao contrário do que prega o Estado de Direito, é a de que todo mundo é culpado até que se prove o contrário. O Beltrano procurou duas especialistas no assunto para debater sobre linchamento online, suas causas e efeitos, o desequilíbrio entre a gravidade do crime e a inclemência do castigo.

Karen Macedo – CREDITO FCA_DIVULGACAO

Mestre pela Unicamp, Karen Macedo baseou seu projeto de pesquisa no caso do linchamento real da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, no Guarujá, que começou com um boato nas redes sociais e terminou em morte.

Cristina Cypriano CREDITO_ Gabriel Maciel

A psicóloga e doutora em sociologia pela UFMG, Cristina Cypriano, pesquisa desde o início dos anos 2000 as relações entre o sujeito e o saber na sociedade em rede.

Em vez do apedrejamento e da violência física dos tempos medievais, a massa agride o suposto transgressor com avalanches de mensagens hostis na internet até obter seu assassinato virtual. A invisibilidade na internet encoraja esse comportamento?

KAREN MACEDO – Muito desse comportamento é intrínseco ao ser humano. É claro que a internet tem algumas peculiaridades. Os linchadores, por exemplo, acham que estão anônimos no meio da massa. Como são muitas pessoas que comentam e compartilham, eles acreditam que ficarão impunes porque são só mais um. Além disso, as pessoas normalmente têm mais coragem de dizer o que pensam protegidos por uma tela de computador do que teriam face a face. Normalmente, os linchadores sempre têm uma desculpa e tendem a negar o que aconteceu, mas na internet tudo é eterno, não se apaga o que foi publicado. Este é um fenômeno novo, mas nossa intenção é tratá-lo como nova problemática dos tempos contemporâneos. 

Quais os efeitos na vida de quem é linchado nas redes?

CRISTINA CYPRIANO – Quando falamos em linchamento virtual, em mensagens hostis, os danos são de ordem afetiva, emocional e, em última instância, psíquica. Não raramente alcança implicações físicas e provoca todas as formas de adoecimento.

São reflexos da tentativa de aniquilamento…

CRISTINA CYPRIANO – Esse aniquilamento, como forma de violência, pode ser entendido como um sinal dos tempos. Nessas novas formas de relações sociais lidamos com valores centrais que regulam as interações nas redes como reputação, desempenho, eficiência, performance com textos interessantes e imagens criativas, credibilidade… tudo isso torna o internauta uma pessoa admirável. As redes sociais constituem, portanto, um tipo de ambiente que é marcado por uma visibilidade muito ostensiva. Mas, por mais que vivamos o tempo das selfies, ninguém realmente quer ser visto e se ver em sua violência, em sua animalidade, em seu lado mais grotesco.

Mas se as pessoas tem essa aversão, por que praticam a “justiça popular”? 

KAREN MACEDO – Por causa da insegurança em relação a proteção do Estado, a descrença na polícia e na Justiça. Há ainda um rescaldo da ditadura militar, quando as pessoas resolviam as coisas por conta própria e não tinha julgamento. A filosofia vai falar que todo mundo se une ou se distancia pelo circuito de afetos onde o medo é o afeto central. Onde as pessoas que pensam igual se unem em um discurso de ódio contra quem pensa diferente.

O problema é que o linchamento está diretamente associado a desproporcionalidade…

CRISTINA CYPRIANO – Exatamente. O maior problema do linchamento é que há sempre uma violência excessiva, normalmente são muitos contra um. A proporção de forças é desmedida, há falta de qualquer tipo de ponderação ou racionalidade na avaliação ou julgamento do outro. No caso do linchamento online, a exposição pública é um modo de destruição da reputação de uma pessoa a partir da invisibilidade do linchador, porque ele, como já dissemos aqui, é só mais um no meio da multidão virtual. E qualquer ação em multidão é algo desgovernado. A multidão é desordenada até mesmo quando não está operando como linchamento. Percebemos isso em shows, por exemplo. Quando muitas pessoas agem em conjunto elas simplesmente desaparecem no meio do todo. E as consequências dessas ações desmedidas são imprevisíveis e, geralmente, drásticas.

Então, qual o maior problema do linchamento virtual? A exposição pública, a desproporção entre delito e punição, o julgamento precipitado…?

KAREN MACEDO – É tudo isso. Você não está na internet como um avatar: As pessoas que estão ali tem vida fora da rede social, tem trabalho, família. A questão é que as pessoas se expõe demais e acabam dando espaço para que sejam julgadas. Como estamos em uma era tecnológica, acontece a aceleração de tudo, do pensamento, da escrita e da ação. Hoje as pessoas agem muito mais por reflexo do que por reflexão, e isso resulta em julgamentos imediatos. As pessoas simplesmente não param para pensar, para buscar fontes verdadeiras e essa aceleração também favorece os casos de linchamento virtual. Um dos grandes problemas que percebo nas redes é que a liberdade de expressão sobrepõe qualquer outro direito dando a aparente sensação de liberdade. Na internet, o usuário acha que o exercício da direito de expressão é um direito maior, quando isso é um equívoco. A liberdade de expressão não é o direito maior. Existe a dignidade da pessoa. É preciso ser racional e refletir: “até que ponto eu posso me expressar sem ferir a dignidade de outra pessoa?”. Mas acompanhando o comportamento nas redes sociais é possível perceber que a tecnologia chegou antes do letramento digital. Sabe-se que o celular e a internet estão cada vez mais acessíveis, mas as pessoas ainda não tem dimensão de tudo o que a internet é capaz de fazer.

Quem se vê vítima de linchamento virtual, o que fazer?

KAREN MACEDO – No caso do linchamento virtual vários crimes podem ser configurados. Um deles é o discurso de ódio, que é justamente o que fere a dignidade humana, que é um direito fundamental, tal qual a liberdade de expressão – e eles estão no mesmo nível. Outro seria a incitação a violência, no momento em que eu me agrupo com pessoas e vou levar isso adiante, combino virtualmente de fazer alguma agressão a uma pessoa, isso também é crime. Injúria, violação de intimidade, crime racial… Se tudo isso acontecer contra um menor de idade, a pena é ainda maior. É preciso ressaltar que a internet não é um ambiente livre de lei. Não é porque você está na internet que se está livre de responder criminalmente. A sociedade é composta por leis e elas devem ser cumpridas. Por isso, qualquer pessoa que se sentir vítima, que teve sua foto exposta, com nome, comentários em que foi citada, ela pode sim recorrer a justiça institucional, ver em quais desses crimes se enquadra e processar os linchadores a partir de prints das citações, ofensas. O linchador pode até não ser julgado com tanta velocidade, mas todas as leis são aplicáveis. E depois que o post foi feito, não tem mais jeito. As pessoas acham que apagando funciona, mas não é assim. Basta uma busca no Google com as palavras chaves e pronto. Vale destacar ainda que existem casos de linchamento que acontecem, por exemplo, em defesa de uma mulher que afirma ter sido agredida. Então, as pessoas expõe o suposto agressor, com foto, com ameaças… o problema é que ele vai se sentir ofendido (sendo ou não culpado), e daí a vítima passa a ser algoz. Ao mesmo tempo também é preciso ter cautela, avaliar caso a caso, porque senão caímos em censura. É complicado, eu sei, são temas paradoxais, mas separados por uma linha muito tênue. Por isso é muito importante pensar antes de discursar online. 

É possível afirmar que o linchamento se esconde, na maior parte das vezes, na solidariedade com a vítima? É possível acabar com esse impulso animalesco? 

CRISTINA CYPRIANO – Em vez de solidariedade eu prefiro usar a ideia de contagio, de viralização, um termo que está muito presente nas redes sociais. Sabemos que o contágio não é mediado pela razão. As pessoas repassam, curtem, compartilham um vídeo que provocou um sentimento profundo, mas pouco racional. No caso do linchamento virtual, esse contágio acontece pela fúria. É como se cada um ali se sentisse arrastado num impulso irracional, por uma espiral de ódio, onde a emoção motriz é a ira. Agora, se há como mudar isso eu não sei, até pelo fato de ser uma emoção, como diria Nietzsche, demasiadamente humana. Talvez um alento que possa ser dado é pensar que também, no âmbito dos virais, a gente encontra o ensejo de espirais de amor, talvez, esses sim, pautados pela solidariedade, empatia e compaixão. Eles também estão aí, circulando na internet e, ainda bem que o humano nos traz essa contraface.

FICA A DICA

PARA ASSISTIR

Tem Netflix? Então assista ao episódio “Hatred in the Nation” (Odiados pela nação), da terceira temporada de Black Mirror. O capítulo é seguramente um dos mais angustiantes da série, mas extremamente necessário se a ideia é debater linchamento nas redes. Confira o teaser https://www.youtube.com/watch?v=SAJfyDTTHE4

CASOS DE LINCHAMENTO

MÔNICA LEWINSKY – 1998

Primeiro caso de linchamento virtual de grandes proporções. Mônica Lewinsky tinha 22 anos e era estagiária na Casa Branca quando o mundo descobriu que ela tinha um caso com o então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. O escândalo colocou-a, como a própria Lewinsky diz, no olho de um furacão político, legal e midiático sem precedentes. “Foi a primeira vez que a internet tomou o lugar dos veículos tradicionais para divulgar uma história importante”. Hoje advogada e palestrante, Lewinsky explica que a tecnologia e a vontade de julgar trouxeram hordas de apedrejadores virtuais. “Sim, foi antes das redes sociais – pondera, mas as pessoas podiam comentar online e enviar histórias e piadas cruéis por e-mail”. Ela admite que cometeu erros, mas acrescenta que “a atenção e o julgamento que recebi pessoalmente, não a história, não tinha precedentes”, disse durante palestra, em 2015, com o título “The price of shame” (O preço da vergonha).

MAYARA PETRUSO – 2010

Após a vitória de Dilma Rousseff (PT) no segundo turno das eleições de 2010, a estudante paulista Mayara Petruso fez comentários racistas sobre nordestinos no Twitter. A repercussão foi tão grande que ela precisou abandonar a faculdade, sair de casa em razão das ameaças e foi demitida do emprego. Seus dados pessoais e endereço foram expostos na internet. Em 2012, Petruso foi condenada pela Justiça de São Paulo a 1 ano e 5 meses de reclusão pelos comentários racistas.

JUSTINE SACCO – 2013

A norte-americana tinha 170 seguidores quando, logo antes de uma viagem à África do Sul, publicou tweets com piadas racistas. Uma delas dizia: “Vou para a África. Espero não contrair AIDS. Brincadeira. Sou branca”. Ela disse que a piada tinha uma conotação sarcástica. “Para mim, o comentário era tão maluco que achei impossível alguém pensar que fosse literal”, falou em uma entrevista. Justine foi demitida do cargo de executiva de uma empresa de comunicação, foi execrada publicamente por veículos jornalísticos e decidiu passar um mês na Etiópia para fazer trabalho voluntário. 

FABIANE MARIA DE JESUS – 2014

A dona de casa foi linchada por moradores do bairro de Morrinhos IV, na periferia do município de Guarujá, no litoral de São Paulo, em 3 de maio de 2014. A mulher tinha 33 anos e era mãe de duas crianças. O linchamento ocorreu porque a vítima foi confundida com uma suposta criminosa que teve retrato falado divulgado nas redes sociais. A vítima morava no bairro em que foi espancada e assassinada. As agressões foram gravadas, e, na época, as imagens foram compartilhadas na internet. Em janeiro deste ano, quatro homens foram condenados pelo crime a penas que variam de 26 anos e 40 anos de prisão.

FABÍOLA – 2015

Uma traição filmada na saída do motel e postada nas redes sociais. No vídeo, a mulher identificada como Fabíola é pega pelo companheiro, Carlos Eduardo Andrade, num motel com um homem, chamado de Léo, e que seria o melhor amigo do traído. Após chutes, socos e xingamentos contra os dois, o amante ainda tentou dar explicações de que tinha levado a mulher ao motel para conversar, o que deixou o homem ainda mais furioso. “Foi fazer a unha, né Fabíola?” virou meme porque Fabíola disse ao companheiro que iria em um salão para fazer as unhas. No entanto, a repercussão ficou no entorno apenas da mulher. Esqueceram que ela estava com o Léo, o suposto melhor amigo do homem traído. O marido foi processado por crime de injuria, violação de intimidade e dano ao patrimônio privado.

 

DONA MARISA – 2017

Enquanto médicos ainda faziam os primeiros atendimentos no Sírio Libanês da ex-primeira-dama Marisa Letícia, em fevereiro deste ano, bem longe dali já tinha gente sabendo o que tinha acontecido. A tomografia de dona Marisa, feita no hospital de São Bernardo, foi compartilhada em um grupo de whatsapp. Poucas horas depois de chegar ao sírio, uma médica do hospital compartilhou informações sobre o estado de saúde da ex-primeira-dama no mesmo aplicativo de mensagens. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) instaurou sindicância para apurar a divulgação de dados sigilosos do diagnóstico e os médicos que divulgaram os dados foram demitidos por justa causa.