A malandragem das montadoras
Por Homero Gottardello
A involução de produtos é uma característica do mercado automotivo brasileiro da qual pouca gente se dá conta. Apoiada no avanço do design, a indústria consegue mascarar enormes perdas, inflacionar os preços e aumentar a rentabilidade, enquanto o consumidor fica com aquela sensação de estar trocando um usado mais qualificado por um zero-quilômetro piorado.
Isso tem uma explicação muito simples, mas que vou “desenhar” para o leitor, usando a Renault como exemplo. A marca francesa inaugurou o Complexo Industria Ayrton Senna, em São José dos Pinhais (PR), em 1998. Só de usar o nome do tricampeão mundial da Fórmula 1, na base do marketing mais rasteiro que se possa imaginar, já dava para perceber que coisa boa não viria dali. Mas, contrariando as expectativas iniciais, veio!
Os primeiros produtos nacionalizados foram o monovolume Scénic e o compacto Clio. Na época, ambos estavam entre os modelos mais modernos feitos no país e, o melhor, em consonância com a linha que a Renault comercializava na Europa. Em outras palavras, os produtos fabricados e vendidos no mercado brasileiro eram os mesmos ofertados nos concessionários europeus. Seguiram a dupla o Mégane, que estreou com primazias entre os sedãs médios “made in Brazil”, e sua variante perua, Grand Tour, que também sobressaia pelo estilo e pela qualidade. Mas a coisa não demorou muito para desandar.
Em 2012, a Renault adotou uma nova estratégia e, em pouco mais de cinco anos, toda a linha de ascendência francesa foi substituída por Sandero, Logan e Duster, de origem romena. Na Europa, este trio é produzido e vendido pela Dacia, subsidiária da gigante francesa desde 1999, com preços bem mais em conta. Por exemplo, na França, o Sandero parte de 7.990 euros (o equivalente a 5,4 salários mínimos de lá), enquanto o novíssimo Clio parte de 13.900 euros (o equivalente a 9,4 salários mínimos). Bom, são números que falam por si só e não adianta o leitor dar ouvido a quem defende as grandes marcas, porque o Dacia custa 42% menos que o Renault e isso se deve, única e exclusivamente, às diferenças de qualidade e prestígio inerentes a ambas as marcas.
Não é preciso ser matemático, muito menos engenheiro de produção, para saber que vender um Sandero pelo mesmo preço de um Clio é passar o consumidor para trás. Acho que, nisso, todo mundo vai concordar. Mas, como se sabe, tudo o que já está ruim tende a piorar – e rapidamente.
Seguindo com a Renault como exemplo, na última semana o fabricante deu mais um passo à frente, ou melhor, para trás, com o lançamento nacional do Kwid. Não vou perder tempo com a propaganda enganosa (que eu, pessoalmente, considero criminosa) que vende o subcompacto como um utilitário-esportivo (SUV). Até porque quem acredita nisso também acredita em Papai Noel – então, que se dane. Mas o que a marca acaba de fazer é dar o pontapé inicial para mais uma desqualificação de sua linha, com a introdução de um veículo feito sob medida para o mercado indiano. Note que estamos falando de uma viagem que começa na França, passa pela Romênia e, agora chega à Índia – o próximo passo, imagino, será descer ao inferno.
Em seu mercado de origem, o Kwid parte de 261.800 rúpias (o equivalente a R$ 12.820, na versão standard, ou 22 salários mínimos de Nova Délhi), contra 225.825 rúpias (o equivalente a R$ 11.060) do concorrente Tata Nano, na sua versão GenX. Para não sermos injustos, vamos usar o Kwid RXT 1.0, já com a opção de airbag, como referência: preço de 395.600 rúpias ou R$ 19.365. No Brasil, é o consumidor que banca a promoção do subcompacto para SUV e, com preços a partir de R$ 29.990, o modelo não sai por menos de 32 salários mínimos daqui.
É óbvio que, desde os idos das Capitanias Hereditárias, a vocação do brasileiro para a subserviência é a mola propulsora da exploração pelas metrópoles. No passado, Portugal; ontem, Inglaterra e Estados Unidos, hoje, Índia, e amanhã, Argélia, Egito ou Quênia – que são os países africanos onde há produção de veículos automotores nativa ou por multinacionais.
Mas eu gostaria de chamar atenção para outro detalhe, ainda mais sórdido: nos mercados onde uma diminuta parcela da população tem amor próprio, os veículos inferiores em termos técnicos e qualitativos também têm preços menores – o Kwid indiano é mais barato que o Sandero romeno que, por sua vez, é mais barato que o Clio francês. Já aqui, no Brasil, a desqualificação é acompanhada por aumento de valores. Sei que esta afirmação soa como mentira, afinal, nenhum povo pode ser tão servil e ordinário a ponto de aceitar esta prática. Mas é exatamente isso que vem ocorrendo em terras tupiniquins.
Em 1999, o Clio partia de R$ 14.990. Quando foi descontinuado, já bem piorado, inclusive, sua versão pé de boi custava mais de R$ 26 mil (alta de 74%). O Sandero chegou, no final de 2007, por R$ 29.990; e hoje não sai por menos de R$ 43.350 (alta de 44,5%). E o Kwid, que aqui custa mais que o dobro cobrado na Índia, em breve vai subir pelo menos 10% – basta os bobões distraírem e os otários comprarem.
O que se configura, para o futuro, é o nivelamento irreversível do mercado brasileiro com o indiano, o rebaixamento de nossos status de consumo e a exploração cada vez mais perversa da nossa imaturidade, da nossa vaidade e da nossa ignorância. Essa tragédia será impulsionada, de um lado, pela precarização do trabalho e pela marginalização da pobreza, e, de outro, pela soberba de uma classe alta cada vez mais narcísica, que aceitará pagar qualquer preço para manter seu vulto arrogante.
E as multinacionais, assim como os traficantes de escravos dos séculos 16 a 19, vão “fazer a festa”. Afinal, a inchação do tolo é a fortuna do velhaco…
Veículos
Homero Gottardello
Jornalista especializado na área automotiva, com mais de 20 anos de experiência na cobertura do setor