Medo e delírio em Mariana


Por Flávio de Castro

Publicado em 05/04/2018

foto: Cortesia Diario Registrado

Enrique Simns apareceu para mim numa livraria de Córdoba, por meio da indicação certeira de um livreiro a quem perguntei, de forma ridícula e intraduzível, pelo “João Antonio da Argentina”. O rapaz, desnorteado, me apontou o livro de um tipo subterrâneo, um junkie assumido e sem culpa, ator de rua e monologuista (espécie de bardo) em duas das bandas mais poderosas do rock argentino: ‘Bersuit Vergabarat’ e ‘Patricio Rey y sus Redonditos de Ricota’. Confesso que nunca ouvi com atenção nenhuma das bandas, mas jamais esquecerei o dia em que vi vocalista do Bersuit, sujeito arisco e inquieto, que parecia sofrer de intensa rinite alérgica, numa fila do aeroporto de Buenos Aires.

Nascido em 1946, Enrique Symns é, hoje, aos 72 anos, um personagem e refém de si mesmo. Muito fácil seria dizer que ele é o ‘último beatnik’ da Argentina, pois últimos são sempre todos os beatniks. Filho de anarquistas, Symns é autodidata. Estudou nas ruas, no sexo dionisíaco e nas tais das portas da percepção que hoje são vendidas a peso de ouro como material de demolição. Aos 14 anos saiu de casa e tornou-se ladrão, truqueiro e deliquente (os argentinos adoram essa palavra), até inventar-se a si mesmo num fauno drogado e libertino. Sabe-se lá como, seja no transe ou na miséria, Foi leitor voraz, em ‘noches extraviadas’, de Dostoievsky, Fante, Henry Miller, Hemingway, Bukowski , esse clichê todo.

Durante as décadas 60 e 70, período que antecede a Ditadura Argentina, morou na Espanha, Holanda, Chile e Brasil. E, ‘sin embargo’, sua maior falcatrua foi ter sido editor da lendária, famigerada e muito fodida revista Cerdos y Peces, provavelmente a publicação impressa mais depravada que já existiu em toda a América do Sul – no melhor e delicioso sentido da palavra depravada.

Nascida como suplemento do jornal El Porteño, em 1983, Cerdos y Peces transformou-se em revista em 1984. E foi-se embora ladeira abaixo até capotar de vez em meados de 2004. Ao longo dessas décadas interrompidas foram lançados 59 números da publicação que alcançava a inacreditável tiragem de 20 mil exemplares ao longo dos anos 80 e 90, ou seja, no mundo anterior ao Facebook. Antes disso, porém, Symns foi um dos criadores do jornal chileno The Clinic (o nome é uma alusão à farsesca internação do sanguinário Augusto Pinochet em uma clínica inglesa) que, com seus 50 mil exemplares, é hoje um dos principais jornais do país e que há décadas define-se como “o primeiro à esquerda”, seja lá o que isso signifique hoje no Chile. Symns também ganhou – e gastou – bastante dinheiro quando escreveu uma controversa biografia do cantor Fito Paez. Ou quando colaborou no poderoso e suspeito jornal El Clarín.

Em sua autobiografia “O Senhor dos Venenos”, publicada pela editora El Cuenco del Plata, em 2015, Symns evoca seus caminhos de excessos e palácios de sabedoria, visitados nos pícaros do abuso de todos os narcóticos produzidos no continente sul-americano e com a glória de parafilias desenfreadas em tantos lampejos do tesão. Para o velho bardo argentino, só o êxtase químico e sexual dá algum sentido à esta existência bestial, dolorosa e cruel. Na segunda metade da década de 70, o ainda jovem e místico escritor perambulou pelo Brasil em busca de sexo livre, drogas enteógenas, praias desertas, comunidades hippies e práticas xamânicas. Um episódio desta vertigem brasileira é bastante curioso – a passagem de Symns pela região de Mariana, cidade do interior de Minas conhecida pela arquitetura setecentista, pela poesia de Alphonsus de Guimaraens e pela maior tragédia ecológica já ocorrida em toda a história da terra brasilis. No seu relato, inverossimilhante ou simplesmente desvairado, o viajante retratou Mariana como um povoado de 200 habitantes (noves for seus 200 cães!). É mais provável, no entanto, que Symns tenha visitado Passagem de Mariana, Lavras Novas, Chapada, Santo Antonio do Leite ou algum outro “pueblito” da região. Não é possível afirmar exatamente onde o autor encontrou-se com um xamã – e conterrâneo seu, por acaso – com quem viveu esta experiência inesquecível e escatológica. Escatológica, veja bem, no sentido de apocalíptica. Ainda assim é muito engraçada a sua visão do Brasil e do interior de Minas, ‘mezzo’ castañeda, ‘mezzo’ turista otário guiado pelas sete bússolas das alucinações sublimes e ‘bad trips’ intermináveis.

Apresentar e traduzir Symns é um dever e uma honra. Até porque, depois do governo Lula, as chances de pessoas do meu extrato social andarem de avião para conhecer outro país (ainda que seja a Argentina) diminuíram tragicamente. Esta crônica, acredito eu, é provavelmente a primeira tradução do autor para a língua portuguesa. Não pedimos permissão para publicá-la e sequer conseguimos o contato do autor pela internet. Corre o boato de que ele esteja residindo em Mar del Plata, abstêmio e ressentido. Oxalá a publicação da crônica em O Beltrano faça com que Enrique Symns apareça de novo por aqui, nem que seja para reclamar os seus direitos autorais e levar um calote daqueles.

O resplendor do urubu

Por Enrique Simns

Tradução de Flávio de Castro

Um antigo e certeiro sofrimento pairou acima do que restou das minhas vitórias e conquistas, feito um velho monstro que acaba de acordar. Juntando toda a grana que levamos depois do golpe que demos ao vender a revista Cerdos & Peces para o filho do dono da fábrica de camisinhas Velo Rosado, abandonei o comando da revista e viajei até um povoado perdido chamado Mariana. O guru, xamã, ou sei lá o quê de Mariana carregava uma forte lenda em torno de si. Era famoso em todo o Estado, e ademais seu nome era respeitado entre meus amigos das antigas. Pelo contrário, mesmo quem não o conhecia pessoalmente jamais questionava sua conduta e seu poder. No bar-farmácia-armazém-geral perguntei pelo “Irmão da Montanha”, apelido mítico pelo qual ele se fazia conhecer no Estado de Minas Gerais. Depois de muito especular entre os nativos, apontando para o alto dos morros, me informaram sem delongas que ele estava “lá em riba”, e que seria melhor eu esperar por ele no hotelzinho, já que suas escaladas eram feitas sempre sem previsão de retorno. A pensão mais hedionda de Buenos Aires podia ser considerada um três estrelas se comparada àquela espelunca. O lugar era rodeado por um brejo quente e sinuoso onde o perigo se acercava. Em suas ladeiras de afiadas garras verdes habitavam aranhas gigantes, serpentes venenosas, formigas do tamanho de um sapato, plantas venenosas, escorpiões à espreita e, sobretudo, muitos urubus. Há urubus no Brasil inteiro, mas Mariana é certamente a colônia de férias destas aves, que estão por todos os lados, são de todos os tamanhos e não demonstram nenhuma timidez. Se você estiver quieto no seu canto, divagando, eles logo te cercam, curiosos. A fome de mil urubus dançando sobre um povoado de duzentos habitantes (mais seus duzentos cachorros) é algo deveras inquietante. São carniceiros, eu sei, mas tal fome é capaz de transformar um covarde em assassino. Nesta época do ano, em pleno inverno, o som dos cupins devorando árvores e casas abandonadas é permanente. O som incessante de milhares de cupins não permite ninguém pegar no sono sem que tenha se embriagado. Na minha cama hedionda os piores inimigos do sono faziam morada: sanguessugas quase invisíveis que se prendiam ao meu corpo como pintas para chupar meu sangue. Na primeira noite não consegui pegar no sono; na manhã seguinte comprei um colchonete relativamente limpo e me deitei no chão da espelunca, sempre com a luz acesa, entrando e saindo do sono para vigiar uma tribo de escorpiões pequenos e transparentes (segundo os nativos, estes não eram “muito” venenosos) que caiam do teto com arbitrária intermitência. Acostumar-se a viver em Mariana era como deixar de ser criança e virar sujeito homem da noite para o dia. Apesar de se encontrar a apenas 20 quilômetros de Ouro Preto, com seus luxuosos hotéis e restaurantes, além de suas legendárias igrejas e catedrais, Mariana revela de imediato que as cidades do homem civilizado são apenas um oásis de frivolidade nesse imenso oceano verde que é o Brasil.

O pesadelo durou dois dias e duas noites intermináveis, 48 horas bebendo cerveja morna, comendo um ensopado escuro e exterminando escorpiões ou baratas gigantes. Finalmente o Homem da Montanha apareceu no bar. Era loiro, alto, muito bem nutrido. Com certa ansiedade e mesmo antes de me cumprimentar, perguntou:

– Como vai o San Lorenzo no campeonato?

Ele se chamava Anselmo, era de Caballito e tinha um forte sotaque de portenho ortodoxo, como se jamais tivesse saído de seu bairro. Falava castelhano até com os nativos. Se bem que naquele tempo o futebol não fazia parte dos calendários sacerdotais de manipulação coletiva como é hoje em dia, e graças ao uso contínuo de cocaína eu havia conseguido me livrar desta hipnose que enjaula qualquer olhar espectador. Eu já não tinha que olhar para nada. Nem para espetáculos esportivos, exposições de quadros geniais, concertos de rock, filmes, nem mesmo para a cara do presidente.

A mão é mais rápida que o olho e enquanto você observa te levam embora a alma sem que se perceba. E assim a pressa de Anselmo em saber do seu time de futebol foi como um golpe nocauteante ante minhas expectativas.

Quis escapar, mas já estava dentro de uma armadilha. Anselmo me fez beber um chá repugnante e logo me colocou na garupa de sua motocicleta. Ele era um alpinista profissional e mesmo naqueles morros pequenos gostava de se exercitar. Me lembro vagamente que a droga (nunca soube se era lírio – trombeta – ou algum outro hipnótico) me deu uma cacetada na sanidade logo assim que a motocicleta parou. Eu o olhei fixamente e, sem nenhuma dúvida, vi seu “resplendor”, algo que eu já havia visto anos antes na Espanha e nos olhos de alguns outros homens.

Galgamos o morro até o alto de uma pedra de não mais de três metros de diâmetro. Ao nosso redor tudo era precipício e o formidável panorama não conseguia apaziguar a minha fobia de altura.

Tentei fazer uma narração sucinta do meu sofrimento, que eu havia ensaiado durante os dias de espera. Mas de repente, a bruma da minha mente desapareceu:

– No te muevas – me disse Anselmo num sussurro.

Meia dúzia de urubus nos sobrevoava e, quando ficamos imóveis, eles pousaram na pedra com a relativa audácia que lhes é característica.

– Tiene algo comestible?

Neguei freneticamente com a cabeça.

– No haverá caquita en tu culo?

Anselmo cutucou seu próprio cu e com o mesmo dedo, sem a menor demonstração de repugnância, cavoc ou o seu nariz e conseguiu resgatar um ranho duro e escuro. Estendeu sua mão para trás sustentando o manjar e permaneceu imóvel. Um urubu devorou aquela meleca com delicadeza e até mesmo deixou que lhe acariciasse a cabeça. O animal também “resplandeceu” e logo me dirigiu o olhar mais triste e humano que eu já vi. Vislumbrei nos seus olhos a paciência de um ser muito velho e atormentado, que havia visto tudo e não havia encontrado nada.

Não foi simplesmente um pranto. Foi uma explosão.

A dor do meu peito explodiu como uma granada e em seguida expulsei pelo cu e pela boca a maldita merda em que consiste o nosso alimento.

Chorei durante um longo instante abraçado a este belo homem. Logo, sem falar nada e brilhando como duendes, regressamos para Mariana.

Mas a dor, aquela dor, jamais regressou.

Conto-reportagem

Flávio de Castro

Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.