Menos luta e mais festa
A pegada comercial é protagonista na Parada LGBT de BH
Por Júlia Imbroisi
O tema da Parada LGBT deste ano, acontecida no último domingo em BH, tinha me tirado muito do entusiasmo de sair de casa. Meu e da minha companheira. “Familia e direitos”, cá pra nós, não é o tema mais forte que já tivemos. Beira, na verdade, a um equívoco.
Em nada lembra a história da nossa Parada, revolucionária e resistente, das mulheres lésbicas que a criaram, reunidas a mais 50 gatos pingados, sem pernas para sequer tentar uma passeata. Mas o evento cresceu com o passar dos anos, e muito.
E, neste ano, a coisa estava realmente grande. Foi a Parada LGBT de número 20, e os convidados estavam bacanudos. Até o Livres (PSL) deu as caras e saiu do armário falando que é possível ser de direita e pró-diversidade (descobriram que dá para pegar um gancho liberal em qualquer canto e contornar o senso de coletividade em prol da individualidade lacrativa).
Cheguei atrasada, como sempre. Mas a tempo de ver o prefeito Kalil, o vice Paulo Lamac, as vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella, e trocar um papo com alguns deles. Kalil, de primeira, deu a deixa no palco: “A parada é um grande movimentador econômico”.
Nos bastidores, Lamac reforçou a ideia comercial e parece que esse papo é o que de fato impregnou o discurso político. É verdade que a parada cresceu em gênero, número e grau. E junto com esse crescimento veio a mercantilização das causas LGBT e feminista: patrocínio da Uber, do BDMG (auxiliando a jornada que aconteceu ao longo do mês), da Belotur, entre outros entes públicos e privados.
Claro que ninguém organiza algo de tamanha dimensão sem uma grana extra. Mas um fenômeno nunca abordado é que os princípios econômicos que fundamentam turismo, transporte, bebidas etc, estão tomando o protagonismo em detrimento da causa.
As autoridades, empresas e organizações mercantis enxergam na grande Parada algo interessantíssimo para a economia e o turismo da cidade. E os direitos, a resistência e a força do posicionamento político se perdem em meio ao “foi o que deu pra fazer”.
A coisa estava se repetindo e eu, sempre incomodada com a magnitude da festa e a luta em segundo plano, me vi começando a aceitar esse discurso. Me joguei, então, para procurar mais opiniões femininas. Mas parece que todo mundo caiu nessa cilada. Vou conversar com outras letras da sigla e as questões relativas à opressão econômica, luta política e combate ao patriarcado só surgem quando a gente cutuca.
Mais uma vez, essa é uma dificuldade estrutural, mas também organizativa. No palco, nas organizações e nos porta vozes, os homens preponderam e sempre com o mesmo discurso de “Vamos lutar por política pública! Obrigado patrocinadores e boa festa!”.
Sobre patriarcado, resistência, a fundação da Parada (junto com a ALEM, a Associação de Lésbicas de Minas Gerais), a posterior caminhada lésbica e outros temas da maior importância, ouvi somente em dois momentos, e apenas de duas mulheres. A falta delas é claramente perceptível. Entendo isso como se tivessem me tirado do palco, e sempre que converso com mulheres detecto que a sensação é comum.
Com falas fortes e contundentes, são elas a maior oposição à mercantilização da luta, à falta de mulheres no palco e responsáveis por não se deixar perder o debate sobre questões relativas a apagamento, patriarcado e racismo. Elas fazem falta em eventos grandiosos.
Essa é uma coisa que me dá dor de cabeça. Fico pensando em como isso funciona mas, realmente, nunca vejo tanta gente diferente, de tantos lugares diferentes, num encontro só. Seria importante se não perdêssemos toda a base e sentido.
Cerveja
Depois de muito papo, fui dar uma volta e juro que senti um pouco de falta de Skol-Bandeira-Gay. Mas nada de cerveja e todo mundo bebendo o goró que trouxeram de casa.
Depois de várias voltas no meio da galera, em meio a vaias e gritos de louvor ao discurso de Kalil (que fez questão de saudar os ‘trabalhadores do terceiro setor’, como se os serviços, e sua má remuneração, fossem uma sina para os LGBT) eu penso de novo: “ué, cadê a cerveja?”. Mais uma volta e só vou achar do outro lado da praça. Puxei papo com uns três vendedores até achar um que, além de não estar atolado de trabalho, estivesse afim de falar.
“Cheguei aqui às 11h e me mandaram pra fora. O limite é esse (Rua da Bahia com Amazonas) e só agora tô conseguindo vender! Estou desempregado. Trabalho lá no Mineirão, mas aqui dá mais lucro. Mas vieram os fiscais de azul e mandaram a gente pra fora”, disse.
Lembrei da treta toda que está acontecendo com vendedores ambulantes, camelôs, carroceiros, de estar com dor de cabeça por esse papo todo de economia-lgbt-da-cidade, e fui embora para casa pensando: “Eita, Kalil fanfarrão! Não deixa o povo trabalhar nem em dia de lucro!”