Mineirão volta receber a beleza do espetáculo dissonante entre as torcidas de Atlético e Cruzeiro

Depois de longo inverno, Gigante da Pampulha ouviu de novo as duas maiores torcidas de Minas


Por Wallace Graciano

 

Divulgação Mineirão

As duas metades voltaram a se encontrar na noite da última quarta-feira (1º), no Mineirão. Após um hiato de quatro anos, atleticanos e cruzeirenses puderam, enfim, dividir as arquibancadas do Templo do Futebol Mineiro, criando um espetáculo que foi além do propiciado pelos jogadores, que duelavam pela 1º rodada da Primeira Liga. Tão belo foi, que o clássico vencido pela Raposa, por 1 a 0, ficou em segundo plano.

Antes mesmo da bola rolar, a expectativa pelo duelo entre as duas torcidas contagiava o Mineirão e seu entorno. O frisson não era à toa. Bastava andar entre os dois lados para encontrar quem comemorasse o retorno das vozes dissonantes no estádio, que não se encontravam desde fevereiro de 2013, num duelo que marcou a reabertura do Gigante da Pampulha.

É o que conta o atleticano José Augusto Cardoso. O engenheiro, de 47 anos, veio com dois filhos ao estádio com a expectativa de que eles sentissem um pouco do que ele viveu entre as décadas de 1970 e 2000, quando frequentou clássicos com a torcida dividida.

“Você sabe o que é ver uma torcida gritando ‘a’ e a outra repetindo ‘b’? Bandeirão sobe e o outro vem em seguida? Em jogo do Galo, o Mineirão é só dele. A bola rolando é o que importa. No clássico, não. A festa das torcidas é outra. Outra atmosfera, outra coisa”.

O atleticano conta como é ir a clássicos com torcida única. “Eu grito, sofro. Mas é um saco. Não é a mesma coisa. Meu filho mais novo tem 16 anos e cresceu sem sentir o que eu sentia quando vinha ao Mineirão com meu tio, nas décidas de 70 e 80. É outro jogo, rapaz”.

Acostumado a ver o Mineirão tomado de azul nos últimos quatro anos, Lucas Guedes, analista de sistema de 28 anos, estava com saudades de ver o outro lado da arquibancada tingido de alvinegro. “O clássico perdeu muito (com torcida única). Ficou chato. Antigamente, tinha a emoção de uma torcida cantar mais que a outra. Provocar. Eu quero é festa. Um empurrando o outro. Cantando sem parar. Deixa o pau quebrar. Não no sentido literal, claro”, diz.

foto: Bruno Cantini / Atlético

CONTROLE

A chatisse do clássico de torcida única começou no início desta década, e se deu por alguns fatores determinantes.

Em 2010, quando o Mineirão foi fechado para as reformas visando à Copa do Mundo de 2014, Atlético e Cruzeiro foram obrigados a mandar seus jogos no interior. De lá para cá, o encontro entre os rivais aconteceu em Sete Lagoas e Uberlândia. Todos com torcidas únicas ou com carga limitada de bilhetes para o adversário, que nunca ultrapassou 10%. A determinação vinha das entidades responsáveis pela segurança, uma vez que havia o temor de conflitos no deslocamento.

A determinação, por sinal, sempre foi vista internamente com bons olhos pelos clubes. Afinal, a renda das partidas ficava predominantemente com o mandante, como não ocorre nos duelos com torcida mista. Outro fator que contribuía para o interesse nos jogos de torcida única era a presença dos sócios torcedores. Como os dois lados possuem contribuintes “cativos”, ou seja, aqueles que dispõem de cadeiras garantidas no estádio, ficaria difícil o remanejamento durante os confrontos.

Após a reforma do Independência, outro palco que foi repaginado em virtude do Mundial, em 2012, a Polícia Militar vetou o clássico de torcida mista no Gigante do Horto. Segundo o comando da corporação, seria necessário um enorme contingente de policiais para garantir a segurança nas ruas do Horto, o que deixaria o restante da cidade desguarnecido.

No Mineirão, por conta das facilidades de acesso e amplitude do entorno, o trabalho da PM fica facilitado. Mas, mesmo assim, também ali os jogos com torcidas mistas estavam proibidos. Ao ser questionado sobre essa postura, o tenente-coronel Frederico, comandante do Batalhão de Choque, responsável pela atuação interna no clássico, explicou que a ordem, agora, é diferente.

“Não posso falar sobre antes, pois não estávamos no controle do comando e não sei quais decisões foram tomadas. Hoje, o que posso afirmar é que no depender da Polícia Militar, o clássico receberá as duas torcidas. Mas só no Mineirão isso é possível. No Independência é inviável”, diz.

Divulgação Mineirão

DUELO

Quando se pensa em clássico, pensa-se em em conflito iminente. Porém, no duelo da última quarta-feira, o que menos se viu foi atrito entre as partes.

De conflitos entre os lados, somente um princípio de confusão entre o mascote do Atlético e uma funcionária do Cruzeiro. Porém, como só foi uma discussão verbal e as duas partes entenderam que foi apenas um “mal entendido”, a Polícia Militar nem sequer chegou a registrá-lo como ocorrência.

Nos autos da Polícia Militar, da Polícia Civil, dos Bombeiros e da Guarda Municipal, foram registradas somente 12 ocorrências, tanto na parte interna, quanto na parte externa. Duas delas foram de trânsito, duas por porte de drogas, uma de câmbio de ingressos (relacionada, também, ao porte de drogas), uma por lesão corporal, uma por atrito verbal, uma por dano, uma por richa e outras quatro por furto.

Essas ocorrências foram tratadas como “corriqueiras” em dias de jogos, o que fez com que as entidades elogiassem o comportamento das duas torcidas. No caso de atendimentos médicos, foram realizados oito ao longo do evento, nenhum causado por briga.

FLANELINHAS

O duelo tático não ficou somente limitado ao gramado do Mineirão. No entorno do estádio, a Guarda Municipal prometia fazer marcação cerrada para inibir a ação dos flanelinhas. Porém, mesmo com os cerca de 60 homens distribuídos na região para coibir os “donos da rua”, o que se viu foram torcedores de Atlético e Cruzeiro reclamando de extorsão.

Presente no Gigante da Pampulha antes mesmo dos portões serem abertos, a reportagem d’O Beltrano andou pelos locais à procura daqueles que tentavam escapar dos Guarda Municipais. Do lado alvinegro, nas ruas paralelas à avenida Abrahão Caram, foi um pouco mais complicado vê-los. Mas bastou chegar mais a fundo nos bairros São Luiz e São José para flagrar aqueles que pediam entre R$ 20 e R$ 40 para “cuidar” dos veículos ali parados.Ao tentar fazer um registro da ação dos flanelinhas que atuavam próximos ao Colégio Neusa Rocha, a reportagem foi ameaçada por um dos “donos da rua”.

O atleticano Anderson Santos, de 25 anos, disse que a ação preventiva da Guarda Municipal o animou a chegar com mais tranquilidade ao clássico. Porém, mesmo assim, quando foi estacionar seu veículo, foi surpreendido por um flanelinha.

“Sempre fui vítima deles (flanelinhas). Quando parava o carro por aqui (bairro São Luiz), sempre havia um que me pedia R$ 20 ou até R$ 50, dependendo do jogo. Hoje, parei o carro e já veio um pedindo para ‘cuidar dele’ e deixar uns R$ 10. Achei melhor pagar, vai que arranham meu carro”, diz.

Divulgação Mineirão

A cena se repetiu do outro lado da Lagoa da Pampulha, onde cruzeirenses costumam se reunir às vésperas do clássico. Não foi preciso andar muito para encontrar um torcedor celeste indignado com a atuação dos flanelinhas. Marcelinho*, que chegou cedo ao local acompanhado de sua namorada, foi uma das vítimas da ação dos “donos da rua”, que agiam na altura do bairro Ouro Preto.

“A gente veio na humildade, até saí do serviço um pouco mais cedo e parei o carro às 16h30 da tarde. Aí, infelizmente, tinha um cara cobrando R$ 10 antecipado e R$ 10 na volta. E hoje saiu a notícia de que a Prefeitura iria coibir a ação dos flanelinhas… ”, reclamou.

A Guarda Municipal explicou à reportagem que a ação tática ficou concentrada no entorno do Mineirão. Porém, segundo a corporação, apesar da repressão à atuação dos flanelinhas, a condução dos mesmos só poderia ser feita em caso de denúncia de vítima de extorsão, o que não aconteceu.

Os torcedores também foram brindados com a liberação de quase 200 vagas para estacionamento nos arredores do estádio. Nos últimos anos, parar o carro só era permitido em distâncias maiores, cerca de cinco quarteirões. Ontem, quem chegou mais cedo conseguiu fazê-lo nas ruas paralelas à avenida Abrahão Caram.

(*) o cruzeirense pediu para não ter o nome divulgado, com medo de represálias.