Negros por eles mesmos

Retrospectiva de Charles White no MoMA mostra a potência da arte de ‘não brancos’


Leandro Lança*

De Nova Iorque para O Beltrano

Charles White. Sound of silence (1978). Créditos – MoMA

NOVA IORQUE – Que incrível experiência foi estar, no último domingo (13), no encerramento da grande mostra retrospectiva do artista afro-americano Charles White (1918-1979), que ocupou o terceiro andar do MoMA, em Nova Iorque, e que agora segue para Los Angeles, onde ficará exposta até 9 de junho. Além da qualidade e da potência social que pulsa nas obras de White, foi de impressionar o público imenso circulando, ou tentando circular, na galeria, em sua maioria composto por negros, uma cena ainda rara mesmo para esta cidade e para esse museu.

Visitante na exposição. Créditos – Leandro Lança

É fato que o mercado de arte, nos últimos anos, têm se direcionado finalmente à produção de artistas não brancos, o que pode ser visto como uma tendência de reversão de uma longa história de negligência ou, simplesmente, meio para se satisfazer o voraz apetite do comércio das artes por “novos produtos”. Mas, independentemente dessa discussão, há muito o que ser celebrado na valorização e no reconhecimento das múltiplas representatividades e narrativas nas artes. É digno de celebração, por exemplo, e penso que poucas coisas são tão sintomáticas do cenário cultural que vivemos, a brilhante e irônica ocupação do Louvre por Beyoncé e Jay-Z, explorando o espaço como um produto para seu vídeo-clipe, revertendo a lógica colonial indissociável do museu mais famoso da Europa.

Charles White (American, 1918-1979). Love Letter II. 1977. Créditos – MoMA

Mas para que os EUA dessem ao mundo uma Beyoncé, um Childish Gambino ou um Kendrick Lamar, foram necessários Malcom X, Luther King, Rosa Parks, James Brown, James Baldwin e… nas artes visuais, a inequívoca liderança no século XX de Charles White.

Charles White “The Contribution of the Negro to Democracy in America,” (1943). Créditos – Divulgação

ARTE E LUTA

Nascido em Chicago, filho de mãe solteira e empregada doméstica, o pequeno Charles começou a ler e desenhar na biblioteca pública da cidade, o único local que sua mãe encontrou para deixá-lo enquanto trabalhava e não podia pagar uma creche.

Charles White. J’Accuse -Negro Woman (1966). Créditos – Leandro Lança

Nas viagens que fazia à casa de parentes no Mississipi, o jovem White aprendia sobre sua herança negra, bebia na fonte do blues e do gospel. Ao tornar-se artista muito cedo, intuiu que cabia ao artista uma responsabilidade especial, uma preocupação profunda e permanente para com a humanidade. Charles acreditava que a arte deveria ser parte integrante da luta, e não simplesmente espelhar o que estava acontecendo ao seu redor. E a forma que encontrou de materializar esse compromisso foi criar imagens de dignidade dos afro-americanos e suas questões sócio-históricas e políticas, rompendo com os ultrapassados e racistas estereótipos com os quais os negros eram representados, sobretudo na grande mídia.

White e sua primeira esposa Elizabeth Catlett (que também era artista) mudaram-se para Nova York em 1942 e logo se juntaram às fileiras de importantes artistas, ativistas e intelectuais afro-americanos da época, incluindo Langston Hughes, Jacob Lawrence, James Baldwin, Richard Wrigh e toda uma geração que cresceu em meio ao movimento cultural conhecido como Renascimento do Harlem.

Charles White À esquerda, Folksinger,” 1957. À direira “Mahalia,” 1955. Créditos – Christopher Burke Studios.

Em 1943, White completa aquela que seria sua obra mais conhecida, o mural “A Contribuição do Negro para a Democracia Americana” na Universidade de Hampton. Ainda na década de 40, Trabalhando no Comitê para o Negro nas Artes, White acompanhou Catlett ao México, onde ficaram por algum tempo na casa de David Alfaro Siqueiros e conheceram os mestres muralistas Diego Rivera, Clemente Orozco e Pablo O’Higgins. White e Catlett se divorciaram pouco depois de voltar do México para Nova York. Em 1950, White casou-se com a assistente social Frances Barrett, uma mulher branca, numa época em que o casamento inter-racial ainda era ilegal em muitas partes do país.

Durante a década de 1960, lutando contra a tuberculose, White mudou-se para Los Angeles em busca de um clima mais ameno, onde continuou produzindo e dando aulas até sua morte prematura em 1979.

Charles White. Black Pope (Sandwich Board Man). 1973. Créditos – MoMA

HERDEIROS DE WHITE

Ao longo de 14 anos como professor de arte em Los Angeles, White influenciou e orientou dezenas de artistas afro-americanos, alguns deles viriam a se tornar ilustres na arte contemporânea como Alonzo Davis, David Hammons e Kerry James Marshall, entre outros.

No ano passado, em um leilão na Sotheby’s, o quadro de Kerry James Marshall intitulado Past Times (1997), onde ele retrata uma família negra desfrutando lazeres típicos de alta classe, como golfe e esqui aquático, foi vendido por US $ 21,1 milhões, quebrando um novo recorde mundial de valor pago pela obra de um artista negro ainda vivo.

Past Times (1997). Kerry James Marshall – Créditos – Sotheby´s

Os reflexos dessa boa onda, que oxalá não seja apenas uma onda mas um caminho sem retrocessos, é visível também na arte brasileira. Exemplos disso puderam ser vistos na última edição da Miami Basel (maior feira de arte dos EUA) que ocorreu no final do ano passado. A galeria paulista Mendes Wood vendeu tudo de seu estande nas primeiras horas, onde apresentava obras da mineira Sônia Gomes, que foi descoberta tardiamente e hoje está em grandes coleções internacionais, Antônio Obá (que foi censurado e ameaçado de morte por integrar a exposição Queer Museu), Rubem Valentim e Paulo Nazareth.

E para salvar o país, Cristo é um Ex-militar II (2018) Maxwell Alexandre. Créditos – Galeria A Gentil Carioca.

Já a galeria Gentil Carioca trouxe Arjan Martins e Maxwell Alexandre como duas potências da pintura brasileira e que parecem conectados à escola de Charles White e Karry James Marshall através de uma formidável e ancestral memória coletiva compartilhada.

* Leandro Lança é cientista social e mestre em artes visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais