Nesta longa estrada da vida
Os repórteres Luiz Malta e Marina Chebly foram para a frente da Refinaria Gabriel Passos em Betim durante a greve dos caminhoneiros e contam a O Beltrano tudo o que viram.
Texto e fotos: Luiz Malta e Marina Chebly
Publicado em 04/06/2018
Medo 381
Luiz Malta
Dia 1 — sétimo dia de greve
(Alguns nomes foram trocados a pedido dos entrevistados )
A sensação é a mesma experimentada por um estrangeiro que desembarca num porto confuso é perigoso. Alerta total e vontade de correr ao descer da van clandestina que nos levou ao Posto Pentágono, na BR 381, em uma segunda-feira ensolarada, sétimo dia da greve dos caminhoneiros que paralisava as estradas do país. Atravessando a passarela, do outro lado da BR, a primeira onda de adrenalina começou a subir ao lermos as faixas estendidas do lado direito da murada.
A medida que eu e Marina (minha camarada nesta jornada e que, ao longo dos dias seguintes, seria por mais de uma vez fundamental para salvar nossas peles) andamos por entre as pessoas paradas na frente do posto, a ansiedade baixa. O clima era tranquilo, por hora, e algumas pessoas curtem um pagode debaixo da passarela. Dentro do posto, sob a sombra de alguns cavalos de caminhão, Ramon corta cabelos de graça de caminhoneiros e pessoas que apoiam a greve. Custou um pouco achar nosso outro companheiro de jornada, André, que veio de BH em sua bicicleta vermelha trazendo os equipamentos para fazermos o registro. Nossas armas: uma câmera, disposição para conversa e cara de pau.
Marina anda pelo posto enquanto eu e André montamos os equipamentos de filmagem. Logo ela começa a conversar com uma das lideranças locais do movimento, o caminhoneiro Yuerlei, responsável por parar os caminhões no sentido de Betim. Não demora muito para começar a correria. Alguns caminhões se aproximam em alta velocidade. Pessoas correm em direção a BR, colocam um cone na pista e esticam a mão pedindo para os veículos pararem. Alguns entram no posto antes de chegar ao bloqueio. Outros seguem determinados em frente, para logo serem parados por corpos destemidos correndo no asfalto em direção a um cavalo mecânico de 50 toneladas. Conversam, dão ré e entram no posto para estacionar seus veículos.
Assim que começamos a filmar vem as perguntas. “Não são da Globo não, né?” Um dos gritos de guerra que mais ecoam são contra a emissora. Se estabelece um pequeno momento de tensão. Explicamos que somos pesquisadores e cineastas registrando a greve, sem compromisso com emissoras. Yuerlei, com quem Marina havia conversado, intercede a nosso favor e diz que somos ‘firmeza’. Continuamos a gravar. Logo andamos para trás de um cavalo azul, onde Ramon corta cabelos e começamos a conversar. Conhecemos Danilo, morador da região, que está apoiando os protestos. Conversamos um tempo com ele, explicando nossa intenção de seguir para os bloqueios adiante. Marina segue conversando com outras pessoas e tirando fotos de seu celular.
Danilo se mostra disposto a nos ajudar e procura algumas pessoas para entrevistarmos. Tiro algumas fotos de Ramon e de alguns caminhoneiros que esperavam para cortar seus cabelos. Danilo retorna com algumas lideranças do movimento. O dia está relativamente calmo e não se vê muitos caminhões tentando furar os bloqueios. A maior parte das pessoas fica na beira da estrada curtindo o pagode. Já passa das 16hs e moradores dos bairros do entorno da Regap se juntam ao protesto festivo.
André me convence a cortar o cabelo com Ramon, enquanto entrevistamos as lideranças que Danilo havia nos apresentado. Sento na cadeira, já sentindo saudades dos meus cabelos compridos e cacheados. André prepara a câmera e começamos a gravar. A entrevista começa em tom de discurso contra as taxas, o governo, a Globo e Temer. João é um advogado que apoia o movimento e Márcio, um caminhoneiro que estava dormindo no posto Petrobras alguns metros atrás na BR.
Eles reclamam de suas condições de trabalho, das taxas que encarecem o diesel, da corrupção no governo, e negam proximidade com o movimento que reivindica intervenção militar. Mas, logo depois afirmam esta não seria uma opção a ser descartada.
Mais pessoas se aglomeram ao lado da BR. Pouca ação hoje. O clima está relativamente mais leve, mesmo com a preocupação sobre a continuidade ou não da greve. Corte de cabelo finalizado e, rindo, me oferecem um ‘desconto’. Descubro depois que o desconto é o apelido carinhoso dado a um porrete que, dizem, seria usado para responder ‘perguntas erradas’. Por sorte, pago o preço completo entre sorrisos, apertos de mão e um cabelo tosquiado.
Dia 2 — oitavo dia de greve
Chegamos na frente do pátio da Fiat, às 10hs. Dessa vez embarcamos em um ônibus municipal que estavam circulando em horário reduzido. Paramos um pouco distante para filmar um ‘plano geral’ de cima de um morro com mato alto, declives fortes e alguns buracos escondidos. Descemos e voltamos para a margem das veias envenenadas do sistema viário do país. Seguimos de volta para a entrada da Regap, nos esgueirando por entre os vários caminhões parados. Hoje, alguns caminhões tanque começam a ser escoltados por policiais militares. Gravamos algumas imagens e andamos na direção de uma aglomeração de pessoas.
Eles observam alguns caminhões saindo das distribuidoras instaladas ao lado da refinaria. São um grupo de 20 a 30 pessoas andando de um lado para outro, irritados com a saída dos caminhões carregados de gasolina e diesel. Quase todos homens, mas estão entre eles duas ou três mulheres casadas com caminhoneiros. Dedé é dono de um Scania vermelho, no qual se lê, escrito com giz, “Intervenção militar já”. Muitos policiais impedem a progressão do grupo, mas não se registram atritos. Mais tarde, me explicam que os PMs estão apoiando o movimento e, por isso, não estariam usando de força para intervir contra os bloqueios, mas que também não poderiam deixar de cumprir ordens de seus comandos.
Andamos e entrevistamos um dos caminhoneiros, quando uma das pessoas do grupo em frente as distribuidoras começa a discutir com o motorista de um dos caminhões que está prestes a sair. A confusão logo é apartada pela turma do ‘deixa disso’.
Seguimos novamente em direção ao posto Pentágono. São 11h30 e poucas pessoas estão juntas ao lado da descida da passarela. Uma ausência continua a me incomodar: a de faixas de movimentos, sindicatos ou organizações que tomem para si a responsabilidade pela condução da greve. Com exceção de uma sigla escrita no chão da BR 381, ‘MPN: Movimento Popular Nacional’. Não conseguimos encontrar nenhuma informação sobre esta organização.
Descemos e o clima está diferente do de ontem. A tensão está mais alta. Logo encontramos Danilo e Yuerlei, conversamos um pouco e começamos as filmagens. O dia está mais agitado à medida em que os caminhões tanques começam a ser escoltados pela PM para Betim e Belo Horizonte.
Os bloqueios estão montados nos dois sentidos da BR, um na frente das distribuidoras de combustíveis e outro no Posto Pentágono. Alguns caminhões começam a passar escoltados. Os sem escoltas são parados por Yuerlei, caminhoneiros e por moradores que apoiam o movimento. Registramos a ocorrência mais violenta até o momento: um caminhão tenta furar o bloqueio, enquanto corpos se jogam na frente dessa besta de 50 toneladas até finalmente arrear suas correias e dar ré em direção ao estacionamento do posto.
Enquanto filmamos, somos questionados a todo momento sobre o objetivo do trabalho, sob uma desconfiança geral. No quarto caminhão parado, somos chamados por um caminhoneiro dizendo que as filmagens atrapalham o movimento. Nos chamam para conversar, o relógio bate 11h50 e o sol está a pino, assim como a tensão. Converso com André, que pede para interrompermos as gravações, enquanto Marina segue em frente para conversar com caminhoneiros e manifestantes que logo nos rodeiam. Andre desliga a câmera e celulares começam a nos filmar.
Explicamos que somos pesquisadores e não fazemos parte de nenhuma grande mídia e que não queremos exibir o material de forma imediata. Que queremos entender o que está acontecendo. Apresentamos documentos que comprovam que estudamos na UFMG para Yuerlei, que intercede a nosso favor. Depois de alguns minutos de conversa, e de grande argumentação de Marina, conseguimos convencer a nos deixarem filmar.
Continuamos a conversa, agora, em outro tom, com Marina explicando o momento político e debatendo questões sobre a crise e seus efeitos políticos. Também esclarecemos que não fazemos parte de nenhum movimento organizado, como sindicatos ou partidos, e que estamos lá por conta própria. Os caminhoneiros não aceitam a presença de movimentos organizados, e dizem se sentir traídos pelos acordos realizados no passado entre sindicados e representantes dos caminhoneiros e o governo.
Após este momento de tensão, os caminhoneiros baixam a guarda e começam a conversar mais abertamente. Yuerlei, com quem Marina havia conversado no dia anterior, começa a nos apresentar a alguns caminhoneiros. O conflito acabou por nos ajudar na aproximação com os caminhoneiros parados no posto pentágono. Somos convidados para um churrasco com um grupo de gaúchos preso no posto, que disseram apoiar o movimento, mas preocupados com as prestações prestes a atrasar.
Nos juntamos a este grupo de gaúchos, que já estava a uma semana parado no posto. Os olhares continuam desconfiados por um tempo, mas com um pouco da prosa e do carisma de Marina, conseguimos nos tranquilizar. Pedimos de novo para gravar o dia deles no posto Pentágono, e eles nos autorizam e continuamos a conversar de forma informal, enquanto a chuleta não fica pronta. Sentamos no vão de dois caminhões, com uma tenda estendida que serve como uma sala coletiva. Chegam alguns marmitex doados por apoiadores do movimento e eles nos chamam para almoçar. Algumas chuletas ficam prontas e nos banqueteamos.
Sentimos segurança para lançar as perguntas mais delicadas. Questões sobre a greve, o diesel e a intervenção militar. Pedro fala dos riscos da estrada e das condições precárias de trabalho, da descrença com o sistema político, e a esperança de uma queda do governo. Mas, ressalvando não acreditar que Rodrigo Maia fosse uma boa solução. O discurso, a análise e as reivindicações políticas não são claros. Eles dizem que uma intervenção militar não seria uma boa opção, mas não veem nenhuma boa opção para as eleições que se aproximam. Discutimos bastante qual seriam os fatores a afetar o preço dos combustíveis, teoricamente o principal motivo da greve.
E eles falam sobre o desânimo que começa a germinar no movimento. O sentimento de desamparo é comum. Uma desesperança sobre o sentido da mobilização, principalmente por esta não ter contaminado as populações das cidades, que eles acreditavam que se juntariam a eles em apoio à greve. Se sentem nômades deixados à própria sorte no deserto de asfalto.
Joaquim se aproxima carregando um capacete debaixo do braço. Já são 16h10 e estamos digerindo o churrasco dos gaúchos, que acertaram a mão na carne fazendo justiça ao título de melhores churrasqueiros do país. Joaquim fica curioso com a câmera e logo pede para que gravemos um depoimento. Seu corpo dança em frente à objetiva enquanto faz um discurso que elogia o proletariado, mas reclama por disciplina da sociedade brasileira.
Joaquim, desacreditado da política institucional, não vê alternativa a não ser uma instituição capaz de impor ordem “à baderna deixada pelo governo nos últimos dois anos”.
O número de pessoas começa a aumentar nos locais de bloqueio. Um grupo de moradores do entorno do posto se junta e começam a ajudar a parar os caminhões não escoltados. São 16h30, horário em que boa parte deles chega do trabalho. São homens e mulheres, adultos e jovens. Já são cerca de 80 pessoas e o clima fica mais tenso com a chegada de uma dezenas de carros da polícia. Os bloqueios de hoje estão mais perigosos, com vários caminhões tentando furá-los devido a pressão dos patrões pela volta ao trabalho.
Os caminhões escoltados usavam adesivos da defesa civil e da PM. Yuerlei esta lá o tempo todo conversando com as pessoas e colocando sua vida em risco em prol da greve. Os PM param próximos ao bloqueio. Os caminhões começam a passar, e gritos contra repressão começam a surgir entre os manifestantes. Os PMs se preparam para agir, penduram suas bolsas com bombas, engatilham suas escopetas de balas de borracha e vestem seus capacetes. Ainda assim não se vê atitude de agressividade explícita por parte deles. Observam calmamente o outro lado da rua, onde se concentram caminhoneiros e população local. Insultos começam a ser proferidos e nos preparamos para o início de um possível confronto.
Uma sequencia de cavalos de caminhões com faixas pedindo intervenção militar cruza o bloqueio, sob aplausos. Eles passam buzinando.
O ambiente continua tenso. Experiências anteriores me vem à mente: calmaria antes das bombas. Ao longe, um carro de som começa a tocar o hino nacional, que começa a se deslocar na nossa direção, acompanhado de um grupo de pessoas a pé. Eles chegam até os carros da polícia e continuam até o posto Pentágono.
Marina, Andre e eu corremos para a passarela para pegarmos um melhor ângulo. Os cavalos das carretas que vimos passar atravessam buzinando no outro sentido da via. São quatro. Andre e Marina me relatam que viram este grupo de pessoas vestidas de verde e amarelo entregarem bandeiras do Brasil e faixas em apoio a intervenção militar. As pessoas reunidas agora passa de 400, e um caminhão tanque se aproxima, escoltado por um carro da Força Nacional. Os manifestantes bloqueiam a via e não deixam passar o carro, aos gritos de ‘fora Temer’; ‘Globo lixo’, e ‘intervenção militar já’. Os soldados do exército descem dos carros e conversam com os manifestantes, negociando a passagem pelo bloqueio. Os PMs observam a cena passivamente.
André, Marina e eu descemos a rampa atordoados com o que acabamos de presenciar. Um grupo de base nacionalista e intervencionista acaba de conquistar grande parte dos manifestantes. Se cheira raiva no ar, contra o governo, contra a mídia, contra as instituições. E o desejo perverso de uma ordem rígida sendo plantado de forma orquestrada. Um movimento que age nas sombras da democracia, operando no vácuo deixado pelo estado, pelos sindicatos, pelos partidos e por nós.
Voltamos para um refúgio seguro. A noite, grupos de jovens ficam mais à vontade de agir com maior ousadia diante do efetivo policial, que aos poucos vai deixando o local. Bloqueiam alguns caminhões e deixam outros passar, até o efetivo voltar ao local para garantir os fluxo das estradas venenosas. Conversamos muito com os gaúchos que reafirmam não querer a intervenção militar, opinião compartilhada pela maior parte dos caminhoneiros com que conversamos.
José, um dos caminhoneiros que nos recebeu em sua casa móvel, começa a realizar uma série de entrevistas, sendo guiado por André. Em um certo momento, Jhonatan, um jovem morador de um bairro próximo, nos dá uma entrevista. Fala de seu desejo de ser caminhoneiro, que tinha tirado a carta para dirigir, mas agora não sabe mais o que fazer. Ele lembra a ascensão social experimentada por sua família durante o governo Lula, e que votaria no ex-presidente caso pudesse. E diz veementemente que é contra a intervenção militar. Um grupo de jovens o acompanha e dizem estar lá para demonstrar insatisfação com o governo e com os políticos.
Escurece e decidimos deixar o local, que se torna cada vez mais turbulento a medida que a lua chega em seu ponto mais alto. Nos despedimos dos gaúchos, que nos abrigaram durante o dia nos deram comida, prosa e amizade. E pegamos o ônibus (errado) com um sentimento de medo e angústia por termos presenciado somente a ponta do que foram estes dias de greve. E de como o movimento acabou sendo apropriado por grupos muito bem organizados para difundir uma ideia de retrocesso pela violência.
Dia 03 – nono dia de greve
Os gaúchos se foram assim que souberam do desbloqueio na altura de igarapé e São Joaquim de bicas. Tudo está tranquilo, apesar da apatia reinante entre os caminhoneiros que se postaram mais ativamente durante a greve, e que ainda resistem e permanecem no local. Yuerlei ainda está lá, apesar de nós ter relatado ameaças de mortes e perseguições enquanto voltava para casa.
A população local não está mais postada no posto Pentágono, que tem uma forte presença policial de cinco viaturas ou mais, um caminhão do exército parado dentro do posto e soldados patrulhando os locais onde antes eram realizados os bloqueios. Entrevistamos alguns caminhoneiros, desolados e revoltados com a falta de apoio da população e a falta de empatia com sua luta.
Vinicius nos conta que, em 30 anos de profissão, estes últimos dois anos têm sido os piores, e que só continua na estrada por amor à profissão. Gravamos algumas cenas no posto sitiado e, depois de um breve atrito com um soldado que estava dentro de um caminhão do exército que filmávamos, resolvemos descer para o posto Petrobras, onde haviam rumores de um último ato de resistência.
Descemos a rua que contava com uma presença fortíssima de PMs. Após passarmos por este pequeno corredor polonês, chegamos ao outro posto, que mantém o mesmo clima de fim de greve. Todos se preparam para partir. Conversamos com mais alguns caminhoneiros, que Marina prontamente consegue convencer a serem filmados. Relatam as mesmas indignações dos outros caminhoneiros.
Os caminhões destes traziam frases escritas em suas traseiras, em letras garrafais, frases em defesa da intervenção militar. Por estarmos em território desconhecido, não tomamos a liberdade de perguntar sobre esta posição mais explicitamente. Tomamos alguns chimarrões e debatemos sobre o futuro da profissão. Entre eles está um neófito, que está aprendendo a profissão com o pai. Eles relatam as mesmas dificuldades da vida na estrada, sem amparo das transportadoras e sem margem para cobertura de danos ou infortúnios.
A derrota de uma classe inteira de trabalhadores já estava decretada. Somente alguns ainda resistem e têm vontade de lutar. Os caminhoneiros com posições politicas mais ao centro começam a desmontar suas cabanas de aço e a se prepararem para a partida.
Os mais determinados continuam parados, esperando uma nova insurreição dos cavalos invisíveis. Mais de uma dezena de caminhões ainda continuam parados, com contas atrasadas, saudades da família e uma crescente raiva contra as instituições políticas. Partimos de lá ainda com o sentimento deste ser somente o começo da luta para esta classe de trabalhadores invisíveis aos cidadãos citadinos. Classe que está aos poucos sendo cooptada por um movimento de radicalização politica à direita, movidos por um sentimento de raiva, desamparo e impossibilidade de ascensão social.
Classe deixada em um vácuo ideológico, onde as hienas da ordem e do progresso fazem suas danças macabras para conquistar apoiadores. Vamos embora após algumas conversas com os caminhoneiros remanescentes. Deixamos o posto com o medo impregnado na alma, o medo de que este é o começo do fim, ou de um governo ou de um país.
O trabalho de base da direita: uma evolução do “Contra isso tudo que tá aí”
Frustrada, instrumentalizada e criminalizada, o efeito fim de greve.
Marina Chebly
Vamos falar do posicionamento político e das pressuposições acerca do posicionamento político que envolveu a greve dos caminhoneiros. Mas, antes, é necessário fazer uma pequena retrospectiva sobre como as principais pautas conservadoras surgiram nas recentes manifestações pelo Brasil. Os protestos de junho de 2013 foram marcados por elementos que nunca antes haviam sido observados na recente e frágil democracia brasileira: lá coexistiram, por algum tempo, personagens com posições políticas antagônicas. Se no começo das mobilizações o motivo principal era o aumento do preço do transporte coletivo, organizado por estudantes e com uma insurgência orgânica e perspectiva anarquista, no final, principais setores da classe média e do empresariado já brandiam bandeiras do Brasil, com camisas da CBF e o grito de “Fora todos eles”.
A partir de então, grande parte da comunidade de cientistas políticos, que julgava a democracia brasileira estável, passou a assumir que as instituições democráticas já não estavam assim tão respaldadas pela população brasileira. Os pilares de confiança institucional, a saber, as três instâncias do poder, os partidos políticos, bem como a própria adesão à democracia perdiam apoio entre a população de forma vertiginosa, como apontado nos principais surveys realizados no Brasil.
Que a confiança na política institucional varia de acordo com a avaliação do presidente e do cenário econômico, isso já havia sido estabelecido por vários estudiosos. Mas o que vêm acontecendo desde então e o que a greve dos caminhoneiros tem a ver com isso?
Cortamos para o atual cenário dos partidos de esquerda no Brasil: se antes o salvo conduto para os programas de governo das esquerdas era Lula, agora não há mais um líder carismático (não pelo menos elegível) nessa ala do espectro ideológico no Brasil. No vácuo do Partido dos Trabalhadores, que serve como referencial aos demais posicionamentos dos demais partidos de esquerda no Brasil, os setores estudantis e sindicalistas não conseguiram mais atuar com os trabalhos de base que se viam há alguns anos atrás. Não como antes, pois foi necessário traçar prioridades.
Perseguido e vandalizado, o PT não tem mais entrada como antigamente na mobilização da massa operária. Estigmatizado pela grande mídia e temeroso pelos erros cometidos, o partido e suas dependências e ramificações perderam força significativa como movimento de massa. E quem descobriu que os operários raivosos pelas baixarias do governo Temer precisavam de apoio logístico à suas causas? MBL, neoliberais, coxinhas ou verde-amarelos, chame como quiser, mas estes setores conservadores estão crescendo e se alimentando de vários movimentos de origem operária ou trabalhadora.
Um apoderamento com ressalvas, pois não farei aqui o lastimoso papel de taxar uma gigantesca classe de despolitizada. Mas, como é sabido, tais trabalhadores possuem acesso limitado à variedade de veículos de informação existentes. Acesso à discussão universitária sobre o assunto então, nem se fale.
Então, chegamos ao cenário atual: temos caminhoneiros com pouco acesso à informação, um movimento de esquerda desbaratinado, com corte de recursos e com seu maior líder preso e o grand finale, um “novo” movimento político, que veste as cores da bandeira do país, que canta o hino com os olhos apertados de emoção, que vai pro pátio andar no meio dos caminhões e lhes dá bandeira, marmita e uma solução: Intervenção Militar Já!.
Conversando com um manifestante, que não era caminhoneiro, mas que morava ali perto e estava ajudando os demais, ele disse que o pobre não tem dinheiro pra ir num show do Chico Buarque, e que isso não é segredo pra ninguém.
Mas por que grande parte dos caminhoneiros querem intervenção militar? O assunto merece estudo aprofundado e de longo prazo, mas a resposta imediata seria porque é rápido, faz sentido e a solução cabe no parabrisa do caminhão.
Porque quem quer intervenção militar, ou minimamente defende uma posição politicamente conservadora e economicamente liberal (a quimera do neoliberalismo) tem dinheiro pra colocar faixa, distribuir comida e dar bandeiras pros manifestantes. Friso o fato da comida, pois no posto em frente à FIAT havia uma fiorino da empresa SADA distribuindo comida e apoio aos caminhoneiros em Betim. Ora, como todos sabem, ou deveríamos saber, a SADA é uma empresa de transporte que, juntamente com outras 30, como por exemplo a Sempre Editora, que publica os jornais O Tempo e Super Notícia, pertencem a Vittorio Medioli, prefeito de Betim e prefeito mais rico do Brasil.
Sim, é lockout. Sim, os empresários apoiaram e incentivaram a greve. E também é positiva a afirmação de que ali havia muitos caminhoneiros autônomos, donos do próprio caminhão, que há 20, 30 ou até 40 anos transportam pequenas encomendas pelo Brasil inteiro e que no dia 30/05 acordaram e sentiram o amargor na boca ao descobrir que, depois de mais de uma semana parados longe de casa, tomando prejuízo, o diesel havia aumentado 0,07 centavos.
Ninguém tem culpa de ter patrão e não é porque um proletário repete uma frase que recebeu no zap pra solucionar o país que a esquerda deve desistir de ser o que nasceu pra ser: um campo de defesa dos trabalhadores que precisa estar nas ruas, na BR, desviando de bala de borracha e dividindo marmita na boleia do caminhão.
A direita fez o dever de casa e, hoje consegue mapear seu apoio e difundir o discurso conservador, com métodos muitas vezes duvidosos. E dá-lhe fake news. Mas nesse vácuo de representação, o “novo” é atraente e ganha força. Não é atoa que crescem candidatos fora da política, os outsiders, nos cenários eleitorais. A pergunta que devemos fazer é se os movimentos de base dos trabalhadores serão capazes de restaurar o apoio às causas progressistas, não uma consciência de classe espontânea, linda e utópica num delírio de qualquer estudante de esquerda, mas minimamente um fortalecimento do associativismo e sindicalismo entre os operários e trabalhadores do Brasil.
De todos os caminhoneiros que eu me lembre de termos conversado de forma mais aprofundada nos três dias que estivemos em contato com a greve, todos afirmaram que esperavam que a população iria aderir ao movimento, “colar junto”, sair de casa e se juntar a eles em corpo e não apenas virtualmente. Todos, e confesso, eu também, esperaram a população. Esperamos muito, mas a população não veio.