O carnaval, a política e a reconquista da cidade

O carnaval de BH cresceu e apareceu, e no ano de maior participação popular uma reflexão se faz necessária


foto: Rafael Mendonça

Por Juliana Afonso

As primeiras palmas do sábado de carnaval vieram às sete da manhã, junto com os 340 balões que o bloco Então, Brilha! soltou no céu em referência ao número de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais assassinados no ano passado em todo o Brasil. O arrepio subiu pela espinha mais uma vez ao perceber que a bateria vestia as cores do arco-íris, tomando a forma da bandeira LGBT. O desfile do bloco, que abre o carnaval de Belo Horizonte, levou cerca de 100 mil pessoas para o hipercentro da capital. A luta contra a homofobia, o racismo e o machismo era o que movia o bloco e a folia foi interrompida várias vezes para que os regentes falassem sobre assédio e preconceito. As músicas ganharam versões com o refrão “Fora Temer”. Esse foi o começo do carnaval mais politizado que a cidade já viu.

Carnaval e política caminham juntos desde a retomada da festa de rua na cidade. Mas o que tem o carnaval de BH que o torna político? Para o jornalista Gustavo Caetano, fundador do Unidos do Samba Queixinho, é o caráter de resistência e enfrentamento que permeia a folia: “Desde 2009, a política de enfrentamento pauta a reconquista do espaço público, a inclusão, o direito à cidade”.

 

foto: Rafael Mendonça

A história ajuda a entender essa trajetória. Nos idos dos anos 2000, as políticas públicas em Belo Horizonte cerceavam o uso pleno dos espaços públicos pelo cidadão. Proibiam ou regulavam esse uso sob argumentos moralistas e com objetivos excludentes. Um dos casos mais emblemáticos foi a prisão de uma mulher que tomava sol de biquíni na praça Raul Soares, em agosto de 2008. No carnaval do ano seguinte, aconteceu o primeiro desfile dos blocos Tico Tico Serra Copo e Peixoto. “O movimento surge de forma espontânea, mas é alimentado por uma intenção claramente política”, afirma o antropólogo Rafa Barros, também conhecido como Tcha Tcha, organizador de vários blocos.

Em 2009, mais regras geram desobediência coletiva e uma alegre ocupação. Em dezembro daquele ano, o então prefeito Márcio Lacerda lançou um decreto que proibia a realização de “eventos de qualquer natureza” na Praça da Estação. Como resposta, em janeiro de 2010 surgiu a primeira Praia da Estação, manifestação lúdica de transformação da praça em praia e, consequentemente, em espaço de encontro e sociabilidade. Um mês depois, mais blocos saíram no carnaval e o movimento nas ruas começou a crescer.

Os anos que seguem assistem a um crescimento exponencial dos blocos e do número de foliões. O que antes acontecia entre dezenas ou centenas de amigos, hoje atrai multidões. Dados preliminares da Belotur (a empresa de turismo de Belo Horizonte) apontam que o carnaval desse ano contou com quase 400 blocos (fora os não cadastrados) e levou cerca de 3 milhões de pessoas às ruas. Foi o maior carnaval da história da cidade. E é esse crescimento que obriga a uma reflexão sobre o carnaval que queremos, se uma brincadeira de cinco dias ou se um movimento de reconquista da cidade.

O papel do poder público

A explosão do carnaval, como era de se esperar, traz novas questões. “Não estamos mais falando do carnaval de 2010 e 2011, onde as pessoas se conheciam e compartilhavam a mesma visão. Hoje tem um monte de gente, gente que quer aproveitar a festa para ganhar dinheiro, para se projetar, e gente que vai pular o carnaval só por diversão. É importante que haja espaço e respeito para que esses diversos olhares coexistam”, afirma Rafa. De fato, os blocos têm lutado para oferecer aos foliões um desfile de qualidade e, ao mesmo tempo, manter sua autonomia frente a decisões importantes, como trajeto, equipamento, pauta, dentre outros.

O folião Diego Pessoa, administrador público, lembra que neste ano tivemos fortes e frequentes manifestações contra o presidente Temer e contra o assédio às mulheres, “mas também manifestações específicas, como o bloco Pena de Pavão de Krishna que foi até a Serra do Gandarela para abordar a questão das águas”.

No final do ano passado, a Belotur abriu o processo de cadastramento dos blocos para poder prestar serviços de logística, segurança, limpeza e instalação de banheiros químicos nos desfiles. Segundo o multi-instrumentista Christiano Di Souza, regente do Então, Brilha! e de diversos blocos da cidade, reconhece o amparo dado pela Belotur aos cortejos, mas diz que é preciso manter a independência dos blocos em relação ao poder público.

foto: Rafael Mendonça

O fato é que, nos anos anteriores, o diálogo com a Prefeitura era tão conflituoso que os blocos não podiam contar com o básico. Hoje, o entendimento de que o poder público tem o papel de prover infraestrutura está mais claro. “Esse ano, aparentemente, a conversa tá sendo outra com a Prefeitura. Até porque ela divulga os nossos blocos sem a nossa autorização, então que deem pelo menos um mínimo de estrutura, que é o que a gente pede. E pede não é para gente, pede para as pessoas, para elas se divertirem em um bloco que qualquer um pode chegar”, afirma a arquiteta e urbanista Daniela Ponce de Leon, regente do bloco Garotas Solteiras.

Apesar das reuniões com diversos órgãos como Belotur, Polícia Militar e BHTrans (Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte), alguns blocos tiveram problemas. Um deles foi o Arrasta Favela, que sairia na manhã de quarta-feira no aglomerado Morro das Pedras e teve que cancelar o cortejo devido à uma abordagem policial desmedida sem motivos que acabou com a detenção de Vanessa Cristina de Jesus, conhecida como Vanessa Beco, ativista do movimento negro.

Outro foi o Garotas Solteiras, que desfilou na segunda-feira de carnaval na Avenida Silviano Brandão e teve que parar o cortejo às 21h, apesar do acordo firmado de que poderiam ir até às 23h. “A gente fez uma programação com 56 músicas e não conseguiu tocar nem a metade. Isso pra gente é um choque terrível! A Polícia veio sem justificativa nenhuma e parou o cortejo no meio”, conta Daniela.

foto: Rafael Mendonça

Olho gordo

Com o crescimento do carnaval de Belo Horizonte, cresce também o assédio das grandes empresas e o risco da dependência econômica e interferência nos blocos e no carnaval. Desde 2014, a marca Skol, da monopolista cervejaria Ambev, firmou acordo com a Prefeitura para ser a patrocinadora oficial do carnaval. A empresa também procurou os organizadores dos grandes blocos da cidade para oferecer financiamento.

Esse também foi o primeiro ano em que a poder municipal lançou um edital para ajudar a custear a sonorização dos blocos. A ideia era subsidiar cerca de 50 blocos no valor máximo de R$ 10 mil para cada, num total de R$ 300 mil investidos. “O Garotas [Solteiras] não entrou nesse edital. A gente sabia que ficaria refém da Prefeitura e das relações que ela tem com a Ambev”, Daniela explica a escolha.

Chris afirma que o bloco Então, Brilha! já se reuniu com a empresa, mas não aceitou a proposta. “Fazemos frente à resistência contra o patrocínio da forma como ele tem chegado”. Para ele, uma das coisas que mais simboliza o carnaval político de BH é a não aceitação do patrocínio. “A gente deseja continuar fazendo uma festa com toda autonomia necessária para sustentar as causas que estão por trás de cada desfile”, afirma.

Ao escolher se manterem independentes, os blocos precisam encontrar formas de arrecadar dinheiro. O principal gasto no carnaval é com equipamentos de som de grande potência, capazes de fazer bonito nas ruas. Para solucionar esse problema, os blocos Então, Brilha!, Garotas Solteiras, Havayanas Usadas, Tchanzinho Zona Norte e Juventude Bronzeada optaram por realizar uma grande festa no pré-carnaval. Com o dinheiro arrecadado, os blocos alugaram o carro de som. Mas nem por isso deixaram de recorrer a outras táticas como a venda de camisetas e outros objetos e a famosa ação de “passar o chapéu”.

O jogo virou

Quais eram as verdadeiras intenções da Ambev no carnaval de Belo Horizonte? A resposta ficou clara no dia 11 de janeiro, quando a Prefeitura publicou no Diário Oficial do Município as regras que os ambulantes credenciados deveriam seguir. O artigo 5.8 descreve que “o credenciado obriga-se a se abster, durante a vigência da presente autorização, de praticar qualquer ato relacionado com outras empresas de bebidas que não seja o patrocinador”.

Seriam permitidos apenas três tipos de cerveja, três tipos de refrigerante e um tipo de energético, deixando vetados drinks, chup chups e a bebida símbolo do carnaval de BH: a catuaba. Após um sem fim de reclamações, a Prefeitura e a Ambev resolveram liberar a venda da “catu”. O recuo estimulou um grupo de cerca 30 blocos e ambulantes a se organizarem e publicarem uma nota contra o monopólio da Ambev. No dia 23 de fevereiro veio a vitória final: uma Ação Popular ajuizada pela Assessoria Popular Maria Felipa foi exitosa e o Juiz da 2ª Vara de Feitos da Fazenda Pública Municipal da Comarca de Belo Horizonte liberou a venda de outras marcas de bebida. “BH é a primeira cidade que conseguiu, através da movimentação dos blocos, dos ambulantes e do Maria Felipa, conquistar a quebra do monopólio da Ambev”, comemorou Rafa Barros.

A vitória também foi celebrada pelos ambulantes. “Em uma palestra eles falaram que se não fossem produtos Ambev eles poderiam apreender a mercadoria e teríamos que pagar uma multa de 30 reais por latinha”, lembra a agente de ação social e ambulante, Dalila Gonçalves Clemente.

Apesar da liberação judicial, Dalila afirma que o movimento foi fraco: esse ano ela gastou R$ 2,5 mil em mercadorias e não conseguiu lucrar nem R$ 500. No ano passado, para gastos semelhantes, lucrou R$ 5 mil. Ela atribui o fracasso nas vendas ao grande número de ambulantes, que acredita ser consequência do desemprego. No total, foram distribuídas cerca de 9,4 mil credenciais. “Não teve nenhum critério para fazer as credenciais. Tem gente que vendeu para complementar a renda, mas tem gente que precisa disso para viver”, diz Dalila.

Racismo, machismo e homofobia

Quando o carnaval estava ressurgindo a pauta era ocupar as ruas, ocupar a cidade, poder transitar livremente e entender o espaço público como um local de todos e para todos. Hoje a consciência da ocupação do espaço público cresceu – para além do carnaval – e outras pautas políticas ganharam forma no carnaval de Belo Horizonte.

Uma das mais abordadas esse ano foi o combate ao racismo, ao machismo e à homofobia.

Dias antes do carnaval regentes, batuqueiras e foliãs lançaram o vídeo com a campanha ‘Tira a Mão’, que prega o respeito às mulheres. A ele seguiu-se uma série de manifestações em centenas de blocos. As mensagens contra o assédio estavam nas fantasias, nas músicas, nos discursos das regentes, que muitas vezes pararam a batucada no meio para avisar que comportamentos assim não seriam tolerados.

O Unidos do Samba Queixinho, que desfilou na segunda-feira de carnaval, no bairro Carlos Prates, foi um deles. “A questão do respeito as mulheres e ao público LGBT estão evidentes, dentro e fora do carnaval”, diz Gustavo.

Até então, o bloco nunca havia tido problemas com relação à violência, mas neste ano uma foliã saiu sangrando do desfile, vitima da agressão de um homem após uma série de negativas ao assédio. O bloco interrompeu o cortejo para falar sobre o acontecido e acompanha o caso.

O policiamento foi ostensivo, com a presença de 7 mil policiais armados. E novamente aconteceram episódios de abusos de policias e uso desproporcional da força.

Daniela, do Garotas, lembra como foi na quinta-feira, no bloco Roda de Timbau. “Tinha gente de baixa renda curtindo o carnaval e vi muito racismo por parte da polícia. No meio do cortejo eles simplesmente apontavam o dedo, sempre para um homem negro, e faziam a revista”. Apesar de considerar a abordagem preconceituosa, Daniela afirma que o Garotas Solteiras precisou de policiamento para proteger o grande público LGBT que acompanha o bloco.

Para Rafa, a polícia não está preparada para atuar no carnaval. “Há uma cultura da violência e do abuso. De uma sociedade machista, opressora, preconceituosa, racista. A liberdade não atrai gestos de desrespeito. Pelo contrário, essa ideia da liberdade, de fruição, convida a uma prática do encontro e da construção de uma relação de afeto”, afirma.

foto: Rafael Mendonça

Crescer sin perder la ternura

Chris reconhece que é difícil prever o que vai acontecer com o carnaval daqui para frente, mas afirma que hoje o Então, Brilha! tem o desejo de direcionar as ações do bloco em prol de uma aproximação com a periferia.

E a periferia também cria seus próprios blocos. O Seu Vizinho é um exemplo. Surgido no final de 2014, ele é fruto da vontade de irmãos e amigos de fazer a própria festa. “A gente tava sempre descendo para poder curtir o carnaval e então pensamos ‘vamos montar um aqui, pra gente, para quem mora no morro’”, conta a farmacêutica Barbara Ribeiro, cantora e uma das fundadoras do bloco.

Para fazer os moradores se sentirem parte, eles organizaram uma série de oficinas de música para crianças, que aconteceram ao longo de 2016. “A mensagem que o Seu Vizinho é que a favela tem muita coisa boa, tem cantores, tem instrumentistas, tem artistas de várias áreas. A gente quer gritar para o mundo inteiro que a favela tem coisa boa, sim”, afirma Bárbara. Ela aposta no crescimento do carnaval e em uma organização do poder público que ajude os blocos, mas que não os tome para si. “Afinal, quem criou a folia não foi a Prefeitura, mas o povo”, diz.

É difícil mensurar o alcance das mensagens que o bloco ressoa. A foliã Sarah Dutra, professora de línguas, acha que é grande. “Eu escutei muito mais ‘Fora Temer’ do que ‘Meu pau te ama’. Todos foram puxados pelo próprio povo e não pelas regentes”, diz

Blocos com temática afro e LGBT, cortejos em ocupações urbanas, discussão sobre mobilidade, tarifa zero, pautas feministas, guardas de congado, marchinhas e fantasias que satirizaram personagens públicos, gritos de “Fora Temer”, blocos que tocaram, marchinha, axé, funk, cumbia, reggae e jazz. Foram muitas as narrativas que atravessaram o carnaval de Belo Horizonte. A festa ainda não tem seus contornos definidos e segue em formação. “A lógica do poder público é que o carnaval é um evento turístico e econômico, mas ele precisa ser pensado e construído a partir de uma lógica cultural”, diz Rafa.