O Carnaval da mudança
A festa em BH tem a marca da contestação política. O desafio é descobrir como canalizar essa energia para mudanças reais
por Caio Santos
Há menos de 10 anos, Belo Horizonte era um deserto durante o Carnaval. As classes alta e média foliavam no interior ou viajavam para o litoral. À exceção de algumas festas nas periferias, as ruas e o comércio se esvaziavam por completo. A cidade morria para, assim como Lázaro, ressuscitar após quatro dias.
Foi somente em 2009 que algumas dezenas de amigos fizeram um Carnaval incipiente, com desfiles espontâneos e pontuais. “O Tico Tico e o Peixoto saíram de forma mambembe, as pessoas não sabiam tocar ou cantar marchinhas. Saímos brincando, apenas com a vontade de vivenciar a cidade de forma livre e aberta” diz Rafa Barros, apelidado de TchaTcha. Antropólogo formado na UFMG, o carnavalesco conta que seu grupo saiu às ruas buscando folia e diversão, mas já carregando o germe da contestação política.
“Havia uma série de dificuldades para fazer eventos e ações na cidade. Era muito burocrático, se cobrava várias taxas e autorizações de diversos órgãos públicos. Foi por um desejo de transformar a experiência da cidade que esses bloquinhos começaram a sair”, diz TchaTcha.
“Havia uma utopia de cidade colocada”, acrescenta Roberto Andrés, professor de Arquitetura e Urbanismo na UFMG. “Toda festa é política, sobretudo se é feita na rua, porque ela define que visão de cidade nós queremos. No entanto, o nosso Carnaval se destaca por nascer em um momento em que se reivindicava muito o direito às ruas e aos espaços públicos”. Para Andrés, isso faz com que muitos blocos se posicionem politicamente de forma bem mais mais explícita do que em outras celebrações pelo país.
Menos de 10 anos depois, Belo Horizonte realiza o que provavelmente será o maior Carnaval de sua história. Segundo estimativas divulgadas pelo Ministério do Turismo, o público total esperado é de 3,6 milhões de pessoas, mais que o dobro que o Carnaval de Pernambuco, de 1,7 milhão. A Prefeitura acredita que este ano a folia movimentará R$ 637 milhões, uma receita superior à esperada no Carnaval de São Paulo, de R$464 milhões. Apesar do gigantismo, Barros diz que a massificação do Carnaval de rua não diminuirá seu teor político. “Mas esse crescimento dá a ele outra dimensão. Conforme ele cresce, surgem novas demandas”, afirma.
A Prefeitura calcula 550 cortejos de blocos de rua em 2018. O aumento no número dos blocos também levou há uma diversificação de pautas e movimentos políticos no Carnaval. Há blocos mobilizados em causas identitárias, como o bloco afro ‘Angola Janga’, o bloco LGBT ‘Alô Abacaxi’ e o bloco feminista ‘Bruta Flor’, entre outros.
Há blocos que se pautam pela política nacional, como o ‘Que Golpe foi Esse?’ e ‘Ai que saudade do meu ex’. E há blocos inspirados por questões específicas e localizadas, como o ‘Esperando o Metrô no Barreiro’ e o ‘Parque Já no Jardim América’. Somados a estes, também há blocos que tratam de temas sociais específicos, como a descriminalização do uso de drogas, como o ‘Bloco do Manjericão’, a mobilidade urbana, como o ‘Bloco da Bicicletinha’ e o ‘Pula Catraca’, e o meio ambiente, como o ‘Grande Bloco do Encontro’.
Frente a essa multiplicidade de pautas, O Beltrano perguntou a foliões e carnavalescos quais as mudanças que o Carnaval pode imprimir na cidade. Devido a grande quantidade de causas e reivindicações, nesta reportagem, nos concentramos em políticas públicas de responsabilidade e alcance do governo municipal ou estadual.
Menos carros nas ruas
Mobilidade é assunto caro aos foliões, já que é preciso transitar com facilidade entre os blocos. Como a maioria dos foliões consome álcool, dirigir deixa de ser opção. Além disso, vários trechos de ruas são fechados para os cortejos. “Carnaval é época de ocupar as ruas, de andar a pé e de se locomover de outras formas. Estamos aguardando a ações e medidas que favoreçam o transporte coletivo e ativo, no carnaval e além!” publicou a ONG BH em Ciclo em seu facebook.
Em contramão a várias campanhas para abandonar o volante, a BHTrans dispensou o uso de talão nas áreas de estacionamento rotativo durante o Carnaval. A decisão foi interpretada por organizações como Tarifa Zero (https://goo.gl/wRsssz) e o BH em Ciclo como uma priorização do automóvel frente a alternativas mais sustentáveis e eficientes, como a bicicleta, por exemplo. “As políticas de mobilidade estão sempre beneficiando os carros, e até mesmo em uma época do ano em que campanhas insistem para que as pessoas deixem seus carros em casa, […] o poder público emite uma portaria que favorece, inclusive financeiramente, o acesso aos carros” afirmou uma nota compartilhada pelo Tarifa Zero.
Nesse contexto, há o Bloco da Bicicletinha (https://goo.gl/ddgk8q), um misto de festa, performance e manifestação, que reivindica o reconhecimento da bicicleta como transporte. “A gente quer nosso espaço na rua”, diz André Toledo, um de seus organizadores. Sem bateria ou percussão, a música do bloco é tocada por três caixas de som, carregadas em pequenas carretas não motorizadas. Todos no cortejo são ciclistas, skatistas, patinadores ou pedrestes, pessoas que trocam o combustível para pedalar fantasiados pelas ruas de Belo Horizonte. “A cidade continua muito precária para o ciclista”, comenta André. Além da falta de ciclovias, o ciclofolião reclama da má educação dos motoristas. “Quando você tira a carteira, aprende que o veículo menor tem prioridade ao maior. Mas isso não acontece na realidade. A prefeitura precisa ser mais ativa na educação dos motoristas”.
Polícia cidadã
Desde sua origem, a relação dos blocos de rua com órgãos de segurança pública é conflituosa. No ano passado, o Bloco Arrasta + Bloco de Favela foi impedido de fazer seu cortejo no Aglomerado do Morro das Pedras. A PM chegou a deter uma de suas organizadoras, a ativista do movimento negro Vanessa Beco (https://goo.gl/PJXgAK). Em 2016, o bloco afro Angola Janga também foi proibido de desfilar. Em ambos os casos, os foliões possuíam autorização da Prefeitura. Arbitrariedades e abusos por parte da PM torna polêmica a presença de policiais na segurança dos blocos.
No entanto, é impensável abrir mão do policiamento. “O Carnaval é um momento de multidões. Agentes que garantam uma certa ordenação são importantes”, explica Fernando Salum, produtor do bloco Alô Abacaxi e integrante da Frente Autônoma LGBT. “A polícia é racista, é machista, é LGBTfóbica. Mas muitas pessoas que vão ao Carnaval também são. A polícia deveria estar capacitada para receber essas denúncias”.
Em janeiro, a Comissão de Monitoramento da Violência em Eventos Esportivos e Culturais (Comoveec) se reuniu com alguns representantes de blocos de rua para discutir a segurança nos cortejos da cidade. Uma das exigências dos carnavalescos foi que agentes das polícias sejam instruídos a lidar com casos de agressões e abusos contra mulheres, LGBTs e negros. Em nota, a PBH divulgou que um treinamento foi feito junto com a Guarda Municipal no dia 30 de Janeiro, justamente para “realizar um atendimento qualificado das populações que são foco das principais violações de direitos em grandes eventos”.
Porém, para além da capacitação, uma demanda comum entre blocos de rua é uma maior quantidade de policiais mulheres. “A nossa percepção é que a relação com policiais femininas é bem mais tranquila. Elas não só trazem um sentimento de segurança maior para o público, mas também tendem a ter uma melhor abordagem”, explica o produtor. Para Salum, o trato das guardas tende a ser menos bruto e intimidante. Ademais, como boa parte da bateria e do público é feminino, mulheres estão mais bem preparadas para lidar com certos abusos. “Um dos principais crimes que acontecem durante o Carnaval é assédio a mulheres cometido por homens”, lembra Salum.
Segundo o produtor, Alô Abacaxi, Garotas Solteiras e Corte Devassa são alguns blocos que solicitaram contingente inteiramente feminino de policiais. No entanto, devido a uma carência do número de mulheres na força, não é possível garantir isso para todos. “Ano passado, tivemos que escolher. A gente exigiu para um bloco, o Bloco Puf Tictá, cuja bateria era 100% feminina. No final nós conseguimos”.
Mais áreas verdes
Pelo terceiro ano, o Bloco Parque Já fará seu cortejo no bairro Jardim América, na região Oeste de Belo Horizonte. “Nosso grupo nasceu de uma luta que dura sete anos”, conta Anito Mario Mendes, baterista do bloco. “Queremos preservar a única área verde do bairro”. Ele se refere a uma antiga chácara de cerca de 20 mil metros quadrados, um terreno bastante arborizado e atualmente desocupado. Em 2010, se iniciou uma tentativa de utilizar a área para a construção de torres comerciais. No entanto, os moradores da região protestaram. Para não perder a única mata próxima, eles reivindicaram que a terra fosse transformada em um parque ecológico. Em 2014, a Promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público Estadual entrou com ação civil pública para suspender a obra, reconhecendo seu valor ambiental. O processo continua em curso e aguarda sentença de segunda instância no Tribunal da Justiça.
O Bloco Parque Já, somado aos blocos Bethania Custosa e União do Oeste, compõe o bloco Unidos do Oeste. Cada grupo possuí sua respectiva pauta para a preservação de recursos naturais e ecológicos da cidade. “A região de menor índice de área verde em Belo Horizonte é a Oeste”, esclarece Mário Mendes. “A luta não é só dos blocos. Ela é de todo mundo. Enquanto pudermos, vamos continuar nessa luta pela nossa cidade e nossas matas e águas.”
Descentralização
Em 2018, o vencedor do concurso de Marchinhas Mestre Jonas foi “Esperando o Metrô”, do bloco homônimo, originário do Barreiro. “O metrô no Barreiro é uma promessa que sempre aparece durante as campanhas eleitorais, mas nunca é concretizada”, comenta Du Pente, produtor cultural e morador da região. Ele, em conjunto com o bloco ganhador, organizou o “Carnaval de Rua do Barreiro Na Tora”. O nome se refere a forma como ele foi feito: sem nenhum patrocínio ou aporte financeiro.
“A maior parte dos recursos para cultura são destinados para as regiões centro-sul e leste. As regiões periféricas acabam com um orçamento bem inferior, apesar de possuir mais de 300 mil habitantes” explica Du Pente. Para ele, é necessário que nos próximos anos o apoio financeiro oferecido pela prefeitura aos blocos de rua tome em consideração as regionais e macro áreas da cidade, de forma a fazer uma distribuição mais proporcional em toda o município.
Apesar do sentimento de abandono, o Carnaval vem funcionando para uma retomada de autoestima no Barreiro. “Fazer esses cortejos é uma forma de reencantar e afetar os moradores para que tomem a política com as próprias mãos.” Além dos desfiles, foi formado um grupo de moradores mobilizados, organizados e conhecedores do território. Segundo Du Pente, foi decidido que as pessoas que produziram o Carnaval no Barreiro continuarão se reunindo e propondo outras ações para região. “Vamos ocupar as praças sucateadas, envolver a juventude, vamos voltar a fazer outras ações na tora”, diz.