O começo e o fim da TV aberta digital

A falta de interesse de telespectadores, dos órgãos responsáveis e das próprias emissoras pode por fim a uma era


Por Luciano Alkmim

Reprodução internet

Antônio* acorda todos os dias invariavelmente às 6h30. Do alto dos seus cinco anos, ele pula da cama e vai ao quarto dos pais tentar um primeiro contato. Depois de alguns instantes de beijos, puxões e carinhos, Antônio vai até a sala onde se encontra o televisor da casa. Ele ainda não consegue ligar e sintonizar os programas favoritos e, por isso, tem que esperar que um de seus pais o ajude. “Eles não vêm logo. Eles demooooram”, reclama. Mas como a preguiça é um sinal comprovado de inteligência, Antônio é obrigado a ficar mais alguns instantes sem televisão. Depois, as coisas começam a funcionar na casa e Antônio assegura seu primeiro entretenimento midiático do dia. O televisor foi ligado.

Os programas que Antônio mais gosta não estão nas grades da programação da televisão aberta. Alguns de seus favoritos até passam em emissoras abertas, como o desenho brasileiro Show da Luna, mas é no Netflix e no Youtube que mora hoje a televisão para o pequeno Antônio. Quando assiste TV a cabo é na Disney XD que consegue ver Yo Kai Watch, Ninjango, Mech X4. No Youtube ele adora o Gato Galático e Saiko. No Discovery, Patrulha Canina. Esses nomes não lembram nenhum dos heróis famosos, mas o gosto dele é muito eclético. Homem Aranha, Batman, Homem de Ferro também estão nas suas preferências. Antônio implora o televisor no fim da tarde e aí tem mais uma sessão. As amiguinhas, um pouco mais velhas, assistem à novela produzida na Argentina Sou Luna e os amiguinhos mais experientes também assistem às produções da Disney. Fim de semana, por vezes, se reúnem para ver algum filme. Em um desses, assistiram a Gremlins e o resultado “foi assustador”, comenta Antônio.

Mas como a televisão estará a partir de 8 de novembro para nosso pequeno Antônio e seus amigos em Belo Horizonte? O que eles e todos, adultos e crianças, encontraram nas emissoras abertas?

Se nesse momento algum cidadão quiser saber informações básicas como, por exemplo, quais os canais abertos estarão no ar a partir do dia 8 de novembro, ele não conseguirá de forma segura. As listas na internet são contraditórias e imprecisas. Os órgãos que deveriam informar coisas básicas – como cronograma de instalação no interior do estado, se as mesmas emissoras que estarão na região metropolitana também estarão no interior ou simplesmente quais são as emissoras que poderão ser sintonizada – não o fazem. Pelo visto nem os próprios responsáveis pela instalação da TV Aberta Digital estão interessados nela.

As emissoras foram incansáveis na divulgação sobre como se dá a instalação da nova TV aberta. Compre isso, faça aquilo, antena disso, antena daquilo. Como e onde alguns cidadãos podem retirar gratuitamente o equipamento, etc. Mas o que vai ser a tv digital? Como serão os canais locais? E os nacionais? Há espaço para quem? Quais são os canais? Se ninguém está interessado em saber – ou informar – questões tão básicas é porque a TV aberta pode estar mesmo perto do fim.

As análises dos especialistas refletem bem a importância que elas têm hoje. Para Gabriel Priolli, jornalista, escritor, apresentador e diretor de televisão, poucas coisas mudarão na TV aberta. “Não há mudanças significativas nas principais praças. Em algum lugar, eventualmente, sai um canal ou entra outro, mas as redes de alcance nacional seguem as mesmas”. E afirma que “no conjunto da programação ofertada, considerando-se as duas últimas décadas, nota-se como tendência geral a estagnação da telenovela, que mantém inalterado o número de títulos no ar e de canais produtores; um incremento das séries estrangeiras, puxado pelo sucesso do formato na TV paga e, especialmente, da TV conectada (Netflix à frente); e o crescente aluguel de horários para igrejas”.

Autor de livros como O Campeão de Audiência, escrito em conjunto com Walter Clark, Priolli assume que vê muito pouco a TV aberta, mas reconhece o seu papel atual. “A TV aberta estabelece a agenda política do país, impedindo qualquer regulação ou medida que a desagrade. Ela hegemoniza os investimentos publicitários, mantendo sob estrito controle o mercado anunciante. Ainda é o núcleo do poder midiático no Brasil”. E dispara: “faz pouco sentido assistir TV aberta atualmente, em busca de informação e conhecimento. A perda geral de qualidade na programação, a banalização e indigência dos conteúdos, a uniformização de pautas e formatos, tudo isso recomenda que o telespectador procure melhores alternativas na TV por assinatura e na TV conectada”. Priolli ainda avança mais profundamente na discussão do conteúdo das emissoras. “No telejornalismo, por exemplo, antigos programas obrigatórios – como o “Jornal Nacional” da Globo, ou o “Roda Viva” da Cultura – se partidarizaram, no sentido de adotar uma postura radicalmente antipetista e antiesquerdista. Selecionam pautas e fontes por esse viés, o que afastou deles a maioria da audiência progressista de esquerda”.

Para Getúlio Neuremberg, jornalista, mestre em Comunicação e professor na PUC Minas, o telespectador em geral não sentirá diferença ao ligar o televisor a partir de 8/11, a não ser os desavisados que não tenham providenciado uma antena e um conversor para sua TV antiga. Segundo Neuremberg “a TV aberta brasileira ganhou em qualidade técnica e estética, mas perdeu em conteúdo. A guerra pela audiência nas emissoras comerciais tem gerado programas de baixo nível, roteiros repetitivos, fórmulas desgastadas e apelativas, baseadas numa obsessão pelo entretenimento popular até no jornalismo”. Sua análise histórica contextualiza ainda como as emissoras estão perante os novos suportes tecnológicos. “A TV brasileira nunca mais alcançará os índices de audiência que já teve no passado, nem no chamado horário nobre. Hoje as opções de consumo de conteúdo, ao vivo ou gravado em outras mídias audiovisuais, oferecem múltiplas alternativas de informação e entretenimento à televisão tradicional”, afirma.

* Para não cometer o erro de registrar as preferências de uma só criança. Foram entrevistados nessa matéria sete meninos e meninas. Nosso Antônio não existe, ele é uma mistura de várias opiniões. Crianças e pais ajudaram a compor essa reportagem para que ela estivesse o mais próximo do que está acontecendo hoje com a TV aberta. O Antônio não é real. Mas o resto, para o bem e para o mal, é verdade.