O dia em que Lambreta encarou a guarda


Por Flávio de Castro

foto: Antonio Thomás Koenigkam Oliveira

No canto do quintal, naquelas mesas de plástico que derretem ao sol, estava a Tia Lia com sua bonita idade de 82 anos, fumando um cigarro atrás do outro. Sentei ao seu lado, observando as brasas candentes que iam e vinham de sua boca, enquanto ouvia suas anedotas entre baforadas.

– O doutor pediu para eu parar de fumar. Ave Maria! Seu doutor, nem pai, marido, filho, neto ou bisneto me fizeram parar de fumar! Ou o senhor me ajuda ou vou procurar um médico que não insista com a inconveniência.

Tia Lia, que levou meu coração numa festa de família. Entre tragos e pigarros ela me contou de sua época e da Lambreta, uma personagem de sua mocidade. Lambreta, a doida que andava nas cercanias da Praça Sete, rua da Bahia, Afonso Pena e tals. Lambreta, que era louca ou se fazia de louca, tanto faz, que tomava conta do obelisco da praça e infernizava os transeuntes.

– Meu medo era que Lambreta erguesse a minha saia, pois ela gostava de bagunçar. Escolhia uma moça dessas, como se diz, recatadas, e erguia a saia em plena avenida. Imagine só, naquela época, ficar sem roupa no meio da rua?

Lambreta que erguia as saias, que vivia só e fumava cigarros Yolanda em plena ditadura. Lambreta que fazia e acontecia nas ruas do Centro e na avenida onde as pessoas iam e vinham, nascidas do asfalto. Lambreta pelada no meio do rua. Tia Lia contava e junto dela eu via um filme.

– Certa vez retiraram o Pirulito da praça, acho que foi em 1963. Sem avisar ninguém, chegaram os homens com as ferramentas, amparados pela guarda civil. O monumemto foi retirado e transportado pela Rua da Bahia, o monumento que Lambreta cuidava, o monumento onde Lambreta vivia.

Lambreta que ficava pelada na década de 60, que gozava da simpatia e proteção dos estudantes.

– Mas eu não era estudante, era trabalhadora. Quem dava dinheiro eram os estudantes, eles que cuidavam dela. Se algum pedisse para ela fazer graça, ela ía lá e subia a saia das moças. Mas só das estudantes, trabalhadoras não.

E o obelisco foi finalmente trasferido para a Praça da Savassi e ficou lá por alguns anos. No lugar que abrigava o monumento, a prefeitura mandou fazer um jardim todo caprichado. Mas Lambreta não se deu por vencida.

– Você tinha que ver menino. Ela chegou com um tatu amarrado numa cordinha. Um tatu! Onde ela arrumou um tatu, minha gente? Protegida pelos estudantes – e desta vez pelas trabalhadoras -, ela soltou o bicho no jardim que logo ficou estraçalhado, revirado, remexido. Chamaram a guarda mas o povo cercou Lambreta e ninguém se aproximou. O tatu futucava a terra, como se quisesse encontrar o obelisco debaixo do chão. Os guardas recuaram, ninguém se atreveu a tentar impedir. E Lambreta foi embora, com sua coragem e seu tatu. O jardim da prefeitura ficou todo estraçalhado. Naquele dia ela havia erguido a saia de toda uma cidade, mas ninguém se envergonhou.

Me despeço da Tia Lia, 82 anos, numa laje erguida em Durval de Barros, bairro de Ibirité, região metropolitana de Belo Horizonte. Subo sem pressa a Avenida Amazonas. Hoje não há protesto, passeata, marcha ou carnaval – a cidade está sumida. Mas dia ela torna a sair, doida, pelada, soltando seus bichos e exigindo de volta a beleza do horizonte.

Um dia essa cidade desentoca, um dia essa cidade se revolta. Um dia desses – como no dia em que Lambreta encarou a guarda.  

 

Conto-reportagem

Flávio de Castro

Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.