O filme da UNE

Entrevista com Vandré Fernandes, diretor de “Praia do Flamengo, 132”


Por Lucas Simões

“Praia do Flamengo, 132”. O endereço da emblemática sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, carrega uma história política-geracional impressionante, com personagens distintos e controversos que vão de Leonel Brizola a José Serra; de Ferreira Gullar a Aldo Rebelo. Com 78 anos de existência, o movimento ocupava desde 1942 o prédio situado em plena zona sul carioca, incendiado na ditadura militar, demolido posteriormente e em processo de reconstrução desde meados dos anos 2000. É ancorado na história desse prédio icônico que o diretor Vandré Fernandes idealizou o documentário “Praia do Flamengo 132”, reunindo uma penca de entrevistas e imagens históricas inéditas.

O filme estreia nesta quarta-feira (14/06) em prévia nacional exclusiva, em Belo Horizonte, nas salas 1 e 3 do Cinema Belas Artes, a partir das 19h. A exibição marca a abertura do 55º Congresso da UNE, que acontece em BH, como uma amostra da extensa programação que vem por aí até domingo (18).

Em entrevista ao O Beltrano, Vandré Fernandes falou sobre a recuperação de imagens inéditas da demolição do prédio na ditadura militar, a polêmica levantada nas redes sociais pelo encontro entre José Serra e Carina Vitral, atual presidente da UNE, e sua perspectiva sobre o movimento estudantil contemporâneo.

Como surgiu a ideia de organizar a história da UNE a partir do prédio da Praia do Flamengo?

O filme começou a ser pensado em 2007. Era uma Bienal da UNE, e eu tinha a informação de que a entidade se preparava para reocupar o terreno que era dela e estava sendo ocupado por um estacionamento clandestino há muito anos no Rio de Janeiro. Preparei uma câmera e fui registrar. Comecei a acompanhar as reuniões da direção da UNE, a passeata, até a reocupação final. Fiquei ocupado com eles durante uma semana, dormindo em barracas. Quando terminei os registros, procurei a UNE com a intenção de realizar um filme sobre o prédio porque sabia que eles tinham o interesse em fazer um registro dessa história, preenchendo lacunas ainda não contadas. Fiquei todo esse período envolvido e ainda estou nos ajustes finais. Então, lá se vão dez anos de produção e montagem de todo o documentário.

Quais lacunas você tentou preencher na história do prédio, que ainda não tinham sido contadas?

Eu não tinha a pretensão de fazer um filme que contasse toda a uma história da UNE, colhendo os depoimentos de todos os presidentes, algo exatamente cronológico. Já sabia que eu queria um recorte específico: a ocupação em 1942, no governo Getúlio Vargas, depois o incêndio e a demolição na ditadura militar, nos anos 1964 e 1980, e a reocupação definitiva do prédio, em 2007. Então, meu recorte era entrevistar José Serra, Aldo Rebelo e Gustavo Petta, os respectivos presidentes nas épocas em que a sede da UNE sofreu importantes intervenções. Acho que dois pontos merecem ser destacados como lacunas que busquei preencher, ou que haviam sido pouco exploradas na história da sede da UNE. A primeira é referente ao Centro Popular de Cultura (CPC). Consegui depoimentos muito concretos, vários deles com uma carga forte emotiva, sobre o movimento cultural que ocupou a UNE. Ferreira Gullar, Cacá Diegues, muita gente bacana.

O CPC funcionava no prédio, né?

O CPC tinha um andar só para eles, havia uma expressão incrível dos artistas por lá. Edu Lobo, Nara Leão, gente que as pessoas nem imaginam passaram por lá no comecinho de tudo. E acho que esses registros são inéditos para a história da UNE e, sobretudo, do prédio. A Praia do Flamengo recebeu inúmeras intervenções artísticas e isso chamava a atenção. Um ponto muito importante são as imagens da demolição do prédio. Em 1980, o cineasta Clóvis Molinari registrou tudo com uma câmera Super 8. Talvez seja o primeiro movimento de mídia-livre como conhecemos hoje, a coisa da câmera que tremia na mão, registros da polícia batendo em estudantes, jovens revidando, aquela correria toda. O Clóvis tem todos os registros e vamos incluí-lo no filme. É algo essencial para relembrar a história icônica de um prédio. Quero dizer, como um prédio físico pode ser tão importante politicamente.

A localização do prédio, na Zona Sul da cidade, onde funcionava o clube de elite Germânia, de alguma forma justifica esse caráter icônico de ocupar uma região burguesa?

Esse aspecto é bastante interessante. A professora e historiadora Maria Paula Araújo faz uma boa análise sobre essa questão. Ela fala que, hoje, talvez em tempos de rede, pensar em um prédio físico talvez não seja a coisa mais fabulosa e encantadora do mundo. Mas, como se trata do prédio da UNE, existe uma simbologia e uma memória entranhadas naquele espaço. Não por acaso, a primeira ação da direita, logo no primeiro dia de golpe em 1964, foi incendiar o prédio da UNE e destruir aquela imagem de resistência. Quando a UNE retoma, em 1979, ainda com o Brasil abrindo as portas para os anistiados, percebe-se que o exército concorda com a volta da instituição. Mas nega o prédio de volta aos estudantes. É como se fosse uma das últimas ações do regime militar também, foi muito importante simbolicamente destituírem aquele lugar pelas lutas que ali ocorreram.

Era preciso enterrar aquela efervescência…

Cândido Portinari esteve na sede da UNE, Oscar Niemeyer abriu um congresso sobre a paz ali, o astronauta russo Iuri Gagarin foi um visitante ilustre, o Cinema Novo, em sua germinação, ocupou o prédio com Joaquim Pedro de Andrade e Cacá Diegues. É muita história na beira da Praia do Flamengo. A localização do prédio, entre a elite carioca, certamente incomodava política e socialmente muitos poderes. Simbolicamente, o edifício é conhecido como prédio dos estudantes. O Milton Gonçalves fala no filme que tomou um tiro no prédio dos estudantes, que ele sabia que estavam levantando um prédio novo no mesmo lugar, mas que mantém a referência “prédio dos estudantes”, e é assim que vai ser. Os vizinhos do Flamengo e do Botafogo também referenciam o prédio como sendo dos estudantes. E acho que toda essa histórica icônica que tentou ser apagada durante a ditadura, ainda tem sombras de incômodo nos dias de hoje. Por isso, independente dos rumos do movimento estudantil, o prédio segue como esse símbolo e uma luta de resistência para a educação.

A divulgação da foto de José Serra abraçado com a presidente da UNE, Carina Vitral, durante as filmagens, causou enorme polêmica nas redes sociais. Como você avalia o ocorrido?

Vai causar polêmica ainda, eu acho (risos). Mas não há nada errado. Quem entrevistou o Serra fui eu. O que aconteceu foi um momento de tolerância porque ali não havia qualquer motivação ideológica. Carina estava presente durante a entrevista e houve um momento de tolerância, uma foto. O Serra era presidente da UNE (em 1964), deu uma entrevista bastante honesta sobre o processo inteiro que viveu na luta estudantil. Não entramos em bipolarismos políticos contemporâneos. Mas, é claro, hoje em dia, com o termômetro das redes sociais, polêmicas simplistas veem à tona rapidamente. Fato é que entrevistar o Serra foi essencial para o recorte que fizemos no documentário. Ele era um dos principais atores do movimento na época.

O prédio da UNE está em processo de construção há quase dez anos, desde a ocupação de 2007, ancorado em um projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer. O filme também registra esse movimento mais recente na história da UNE, retornando à Praia do Flamengo, número 132?

Sim, registramos esse recorte também. Na exibição em Belo Horizonte, eu vou apresentar o que chamamos de segundo recorte do documentário. É praticamente a versão final, mas sem os últimos ajustes e inclusões ainda. Ainda estou preparando um final para o filme, que terá uma referência ao Lula, quando o Estado brasileiro reconheceu os crimes e concedeu anistias à UNE. Temos um momento de imagens da Crina Vitral passeando pelo prédio novo, ainda em construção. E vamos agregar alguns outros depoimentos para finalizar. Nesse quesito da construção do prédio, abordamos até algumas polêmicas. Por exemplo, o (José) Serra deu um depoimento posterior, dizendo que gostaria que a reformulação do prédio da UNE seguisse a arquitetura antiga, repetindo a tendência dos anos 1960, e não à arquitetura mais moderna de Niemeyer. Já a professora Maria Paula, militante da UNE, discorda e fala sobre a importância de remodelar o prédio, ter algo novo, enfim. É uma discussão que o documentário vai apresentar.

Quando teremos a versão definitiva do filme?

Nós pretendemos estrear o filme completo a partir de agosto, com os primeiros festivais no Rio de Janeiro e em São Paulo. A partir de 2018 é que vamos trabalhar para entrar no circuito comercial e levar a produção ao cinema.