"O GOLPE AINDA É AGORA"

Exposição “Desconstrução do Esquecimento” remonta à ditadura militar e faz paralelo com os dias atuais


Por Lucas Simões

Foto Cyro Almeida/ Divulgação

“Eu poderia citar o Amarildo, o Rafael Braga, o massacre do Carandiru, os índios Gamela recentemente no Maranhão. E muito mais. São casos de uma permanência de conduta, mentalidade e prática dominante das forças de defesa que julgam, perseguem, encarceram, torturam e matam, quase sempre, a população pobre e negra deste país. Um ranço nítido da ditadura, que as gerações mais jovens desconhecem, mas que vem sofrendo mutações sistêmicas e se alastra até hoje. O golpe ainda é agora”. É com esse paralelo entre as violentas congruências de passado e presente que a socióloga Silvana Coser define o papel da exposição “Desconstrução do Esquecimento: Golpe, Anistia e Justiça de Transição”, aberta apenas até a próxima segunda-feira (31/07), no Centro Cultural da UFMG (avenida Santos Dumont, 174, próximo da Praça da Estação).

A mostra faz parte do aguardado Memorial da Anistia do Brasil, projeto que cria um museu inédito sobre a ditadura militar no país, com sede física em Belo Horizonte, mas atualmente com obras paralisadas pelo Ministério da Justiça. “Nós não temos a prática cotidiana de preservar a memória. Chile e Argentina têm um acervo histórico físico, acessível a moradores e turistas, para reconhecer publicamente a violência do Estado e nunca esquecê-la. Faz parte da construção da memória do sujeito. No Brasil, isso não existe”, critica Silvana.

Foto Cyro Almeida/ Divulgação

Em um trabalho didático com fotos, vídeos e muitos depoimentos, a exposição transformou o Centro Cultural da UFMG por completo, ocupando cinco salas da galeria Aretuza Moura, o pátio interno e o segundo andar. Grandes estruturas de andaimes, iluminação obscura e fotos emblemáticas penduradas em ganchos de açougue são parte da tônica impactante sobre os anos de chumbo.

Mas a exposição vai além de uma bem montada linha histórica a partir de 1964, marco do golpe civil-militar, até 1985, início da redemocratização. Entre as dezenas de peças e objetos expostos, as pesquisas realizadas pelo Projeto República, vinculado à Fafich, e do Centro de Estudos sobre Justiça e Transição, da Faculdade de Direito, garimparam pedaços até então pouco ou nada conhecidos da história. E que dizem muito sobre cicatrizes ainda abertas.

É o caso dos bordados de Isaura Botelho, viúva de Honestinho Guimarães, presidente da UNE, desparecido em 1973 e que nunca teve seu corpo encontrado. Esta é a primeira vez que dois bordados dela serão expostos ao público, após Silvana Coser descobrir seu trabalho. “Nós não conhecíamos a arte da Isaura. Eu vi em um livro um depoimento curto dela e fui atrás. Ela fala muito que o borado é a forma que ela encontrou de lidar com a perda, a ruptura, tudo. É o meio que ela usa para denunciar também. Por que borda os nomes dos mortos com corpos nunca encontrados”, diz Silvana.

Também inéditas são as “bonecas de tortura” exibidas pela designer gráfica Camila Sipahi, filha de um casal de militantes da Ação Popular (AP) perseguidos e torturados até a morte, na década de 1970. “A Camila participou durante uma época do projeto Clínica do Testemunho, do Governo Federal, que está suspenso atualmente. Ela ensinava outras pessoas afetadas pela ditadura, como ela, a fazer bonecas de pano. Tem uma ligação forte na infância dela porque a mãe fez uma boneca de pano para ela, ainda da prisão. Então, a Camila explicita cenas de tortura a partir das bonecas. É muito chocante”, diz Silvana.

Foto Cyro Almeida/ Divulgaçã

Tão chocante quanto a escultura do professor Fabrício Fernandino, um dos curadores da mostra, e que desenvolveu uma obra em formato de quatro torres de aço galvanizado que representam os quatro estudantes da UFMG assassinados durante a ditadura militar: Walkíria Afonso Costa, Gildo Macedo Laerda, Idalísio Soares Aranha Filho e José Carlos Novaes Mata Machado. Este último, único com o corpo encontrado. A escultura não só reverencia a memória dos jovens mortos, mas abre uma intercessão com os dias de hoje, segundo Silvana Coser.

“Essa escultura é especial porque representa uma dor muito próxima aos mineiros. E é assustador como ela nos lembra que aquele tempo de perseguição e morte de estudantes dialoga diretamente com o nosso hoje. Essa escultura é hoje também. No fim da exposição, temos uma projeção com os escrachos da polícia contra alunos da UFMG, em protestos recentes. Só que, quando você olha de primeira, parecem imagens da ditadura, mas não são. É o que as pessoas têm que ver: esse choque, esse ranço que, infelizmente, não perdemos ainda”, completa Silvana.

Foto Cyro Almeida/ Divulgação

A exposição ainda reúne, na sala Celso Renato, no segundo andar do Centro Cultural da UFMG, diversas obras, todas inéditas, de oito artistas convidados: Clébio Maduro, Eder Santos, Eustáquio Neves, Jorge dos Anjos, Marco Túlio Resene, Mário Zavagli, Maurício Gino e Shirley Paes Leme. Todas as obras e objetos reunidos para a mostra serão doados ao futuro Memorial da Anistia.

Memorial da Anistia

Resultado de uma parceria entre o Ministério da Justiça e a UFMG ainda em 2009, com orçamento inicial previsto de R$ 25,6 milhões, até hoje o Memorial da Anistia do Brasil não teve as obras terminadas. A edificação, datada do início do século 20, é conhecida como “Coleginho”, onde funcionou o Ginásio Aplicação, colégio de primeiro grau da universidade, na rua Carangola, bairro Santo Antônio.

Foto Cyro Almeida/ Divulgação

A inauguração do Memorial foi adiada diversas vezes: inicialmente, ficaria pronto em 2010. Depois, teve mais três datas remarcadas: outubro de 2013, junho de 2014 e dezembro de 2015. No ano passado, o Ministério da Justiça paralisou as obras, sem previsão de retorno. “A obra está avançada. Já existem elevadores instalados e tudo. Mas a edificação do Coleginho continua escorada e não temos perspectiva de retomada dos trabalhos. Depende do Ministério da Justiça. Na praça pública que o projeto prevê, em frente ao Memorial, com uma bela homenagem aos mortos em formato de rio, só foi começada a terraplanagem. Há muito trabalho ali”, diz Silvana.

A exposição “Desconstrução do Esquecimento: Golpe, Anistia e Justiça de Transição” pode ser visitada gratuitamente até a próxima segunda-feira, 31 de julho. Nos dias de semana, a visitação acontece de 10h às 19h. No sábado, o horário é de 10h às 13h. Excepcionalmente no domingo não há abertura da exposição.

Pedido de prorrogação

Um ato marcado para esta sexta -feira, 11h, na frente do Centro Cultural da UFMG pedirá a prorrogação do período da exposição.
Veja abaixo o texto do abaixo-assinado.

“Prezados

Reitor da Universidade Federal de Minas Gerais, Professor Jaime Arturo Ramirez

Diretora da Ação Cultural da UFMG, professora Leda Martins

Diretor do Centro Cultural da UFMG, Professor Rodrigo Vivas.

Nós professores da UFMG, convictos do valor da primorosa exposição “Desconstrução do Esquecimento” para a formação histórica e democrática dos alunos e professores da UFMG e da sociedade em geral, vimos por meio desta solicitar a ampliação do período de funcionamento da exposição durante o período letivo de 2017.

Como sabem, a montagem da exposição dependeu de um alto investimento de recursos públicos e do trabalho de dezenas de professores e alunos da UFMG, investimento este reconhecido pela comunidade acadêmica brasileira e pelos meios de comunicação que deram cobertura à exposição.

Sabemos que o calendário do Centro é organizado com antecedência e ajustado com os parceiros. Mas, no presente caso, em que, mais uma vez, as forças mais reacionárias ameaçam aprofundar o Estado de Exceção em que, segundo vários juristas, já nos encontramos, achamos também que é plenamente justificável recaptuar com estes parceiros um novo calendário de ocupação do espaço, inclusive para que possamos investir na desconstrução do esquecimento que autoriza o arbítrio.

Certos de podemos contar com a atenção e solidariedade dos colegas, enviarmos cordiais saudações.”

Atualizada na quinta-feira às 16:16