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BH recebe a Mostra Sin Limites, com dois grandes diretores argentinos, que o Beltrano apresenta com exclusividade
Por Ewerton Belico
Embora sempre vivendo na incerteza, o cinema em Belo Horizonte tem conquistado grandes avanços, na produção de curtas e longas-metragens e também na amplitude e variedade de mostras oferecidas ao público. Para falar apenas do presente, a cidade pode ver nestes dias o FestCurtasBH, com mais de 130 obras, e a mostra Cine sin Limites, com trabalhos recentes realizados na Argentina, país em grande efervescência cinematográfica. O Beltrano traz breves entrevistas com os curadores Aaron Cutler e Mariana Shellard e outra com o realizador Claudio Caldini, que veio a BH para falar de seus trabalhos exibidos na mostra. O material publicado é de autoria do colaborador e pesquisador Ewerton Belico, um deleite para quem gosta de conhecer novidades da sétima arte. Para saber mais e a programação Mostra Cine sen Limites
Aaron Cutler e Mariana Shellard
1) Quais seriam os traços distintivos dos trabalhos de Caldini, Hirsch e Honik diante dos demais trabalhos experimentais produzidos no contexto argentino? Ou seja, por que Caldini, Hirsch e Honik?
AC/MS: Foram vários cineastas argentinos experimentais trabalhando com Super-8 nos anos 1960 e 1970, inclusive alguns que apresentaremos na mostra “Cine sin limites”, como Horacio Vallereggio e Marie Louise Alemann. Optamos por enfocar nos trabalhos de Caldini, Honik e Hirsch porque estes três artistas, ainda ativos, são, em vários sentidos, pioneiros e figuras-chaves no movimento. O Claudio Caldini é um artista generoso que organizou vários eventos de cinema experimental na Argentina desde a sua juventude e que continua sendo mentor para muitos artistas das novas gerações. Jorge Honik, apesar de ter participado pouco nos encontros iniciais em Buenos Aires, foi uma referência importante para Caldini e outros cineastas devido à sensibilidade clara e aberta de sua obra cinematográfica fundamental. E Narcisa Hirsch, sendo uma artista multimídia feminista inovadora, foi também essencial na introdução do cinema experimental mundial na Argentina, devido aos seus esforços de trazer filmes e cineastas do exterior. Os três diretores, cada um à maneira, ajudaram a formar uma comunidade, e é comovente perceber como eles continuam sendo amigos, com muito respeito compartilhado e até admiração mútua, mais de 40 anos após os seus primeiros encontros.
2) Diante da circulação ainda restrita dos trabalhos de Caldini, Hirsch e Honik no Brasil, vocês poderiam situá-los em relação ao contexto mais geral da produção cinematográfica experimental dos anos 70?
AC/MS: Uma ocasião decisiva para Narcisa Hirsch foi quando ela assistiu Wavelength (1967), de Michael Snow, no Museu de Arte Moderna em Nova Iorque. O cinema experimental teve um tamanho impacto sobre Hirsch que a levou a adquirir cópias de filmes americanos e europeus em 16 mm e 8 mm, os quais eram projetados para um grupo de amigos e artistas em seu ateliê em Buenos Aires. Também formador para o grupo foram os workshops organizados pelo Goethe-Institut em Buenos Aires com cineastas estrangeiros como Werner Nekes, com quem Hirsch e Caldini acabaram realizando alguns filmes. As tendências visionárias e estruturalistas dos grandes nomes de cinema experimental da época estão presentes de várias formas nos trabalhos de Hirsch e Caldini, enquanto os filmes de Honik – que não tinha muito contato com este cinema – surgem de uma forma mais lírica, em conversa com o gênero de “filme-diário”. Entretanto, os três cineastas se diferenciaram de seus colegas no exterior pelo uso extenso do formato Super-8 – fácil de comprar na Argentina na época– ao invés do formato 16 mm, mais associado com o cinema experimental. A maestria particular que eles mostraram sobre esta “pequena bitola” (também muito usada por artistas no Brasil) eventualmente se manifestou, para cada um dos três artistas, nos seus trabalhos recentes feitos em formato digital.
3) Que tipo de linha de ruptura esse trabalhos estabelecem em relação à ao nuevo cine latinoamericano?
AC/MS: Quando pensamos sobre filmes importantes feitos na Argentina, no Brasil, em Cuba e outros países latinos nas décadas de 1960 e 1970, frequentemente nos referimos a um cinema político didático cuja rebelião contra ordens estabelecidas se expressa através de uma estética dinâmica e até agressiva. Os cineastas de “Cine sin limites” também fizeram um cinema político, mas de um jeito mais interior e mais voltado para o próprio ser. Seus filmes não vão explicitamente contra a sociedade, mas implicitamente a favor de uma liberdade pessoal. Enquanto os longas-metragens mais celebrados do Nuevo Cine Latinoamericano descreviam o sofrimento dos limites materialistas da época, as obras de Caldini, Honik e Hirsch habitavam um território sem limites criado pela imaginação, intuição e investigação individual.
Claudio Caldini
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Prezado Claudio, gostaria que você falasse sobre sua relação com o 8mm, um formato tradicionalmente não profissional. Quais são, para você, as implicações dessa escolha?
Desde minha infância eu tive contato com o cinema em um contexto não profissional. Meu pai filmava seus filmes familiares em 16 mm, e também, colecionava rolos de 35 mm, filmes musicais, documentários, desenhos animados. Cresci com conhecimento da matéria de película e da técnica de câmeras e projetores. Em 1968 meu pai me deu como presente uma câmera Super-8. A minha decisão de estudar cinema e tornar-se diretor já tinha sido tomada, mas quando entrei no Instituto Nacional de Cinematografía na Argentina, descobri que o sistema industrial de produção não permitia um cineasta investigar nada fora das convenções de longas-metragens de ficção com 90min de duração. Foi natural para mim para ficar com o formato de Super-8 (o de 16 mm era demasiado caro para produzir muito) e durante estes primeiros anos filmei curtas-metragens de ficção autobiográfica, exercícios formais, documentários e breves animações.
Descobri como reverter as limitações de Super-8 enquanto eu o utilizava. Meus filmes são produto e testemunho desta investigação. Apliquei procedimentos reconhecidos em novos contextos, atuei contra o manual de instruções. A técnica se tornou conceito, indissolúvel do tema ou do motivo. O Super-8 é uma miniatura e o pequeno é lindo, mesmo que, na aproximação estética, muito mais do que o tamanho do suporte coloca o cinema no primeiro lugar entre as artes. Hoje as condições têm mudado: Não me interessa a nostalgia (o Super-8 é uma máquina de tempo funcionando em piloto automático). Eu o utilizo como se fosse sempre a primeira vez, e também, deixo de lado qualquer ideia preconcebida. O desafio é para construir uma imagem contemporânea com uma tecnologia do passado.
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Seus filmes empregam a música de modo muito distintivo, e gostaria de pedir que você falasse um pouco mais sobre como você vê a relação entre a banda sonora e as imagens no seu cinema.
Sei o que quero escutar e tenho os meus instrumentos para buscá-lo. A música experimental consiste em deixar o processo avançar até encontrar o queremos ouvir. Às vezes toco o sintetizador ao vivo enquanto faço projeção, ou mexo nas pistas magnéticas pre-gravadas sobre a película. Claro que ensaio o que vou tocar. Comecei a trabalhar na minha própria música eletrônica em 1986. Antes disso, eu utilizava discos, embora que a ideia sempre foi para encontrar não pontos de sincronia, mas sim uma afinidade temática, na qual música e imagem se complementam e ao mesmo tempo conservem as suas independências. Agora posso dar conta que alguns filmes também funcionem em silêncio – há música o suficiente na própria imagem.
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Como você situaria sua produção diante do cenário hegemônico do cinema argentino dos anos 70 e 80?
Sempre me senti fora da cena de cinema de produção industrial. Depois da erupção do cinema moderno argentino durante os anos 1960 houve uma crise prolongada em que nada me interessou especialmente até o ano 2000. O Pântano (2001), de Lucrecia Martel, iniciou um novo ciclo de cinema de autor. De qualquer forma, o cinema que faço não se vincula com o cinema de estreias em salas ou na televisão. O território do cinema experimental passou do circuito underground para os museus de arte moderno, e hoje, se expandiu para festivais internacionais. Esta foi uma conquista de nossa geração.