O mundo raso da literatura

Uma entrevista com o autor gaúcho vencedor do prêmio APCA de 2014


Por João Barile

Quando convidei Paulo Scott para uma conversa tinha certeza que o papo seria bom. Desde a publicação do seu “O Ano em Que Vivi de Literatura” saquei que este gaúcho de Porto Alegre não tava no mundo a passeio. Ousado, seu romance de 2015 traçava um corajoso e cruel retrato da vida literária brasileira da última década. Sem papas na língua, Paulo escreveu um livro que desnudou o melancólico e raso mundo de grande parte dos escritores tupiniquins da atualidade. Em certa altura do romance ele dispara: “Na sexta à tarde postei no meu perfil do facebook: ‘Deposite cinco mil reais a título de doação na minha conta do Banco do Brasil e seja um dos três protagonistas do meu romance. Termos e mais detalhes logísticos de acordo serão repassados somente por mensagem privada’. Na mesma hora chegaram quase duas dezenas de perguntas e propostas, embora nenhuma envolvesse oferta de dinheiro em quantidade que fizesse alguma diferença pra mim; a brincadeira rendeu boas conversas e algumas combinações de encontros – inclusive um pro dia seguinte: uma fotógrafa”. O livro faria sucesso e acabaria vencedor do Prêmio Açoriano de Literatura do ano passado.

E é sobre a vida literária brasileira que girou nossa conversa.

Vivemos a maior crise econômica da história brasileira. E a minha primeira pergunta é meio inevitável: como a crise afetou os festivais literários?

Não participo da organização de festivais e festas literárias. Mas como autor que eventualmente é convidado e participa de alguns deles, penso que esse período de dificuldades de viabilizações e limitações financeiras, restrições que já estavam lançadas no horizonte no início de 2015, é um momento especial, único até, para que idealizadores, produtores e as curadorias avaliem de vez toda a renovação que vem acontecendo entre os nomes que produzem a literatura brasileira. É preciso aceitar o risco de apontar novas vozes, de sair do clube, da sala dos confirmados, de promover novos olhares, novas perspectivas, novos comportamentos. Encontrar o que pode ter valor, ter peso, mesmo que em amplitude ainda em edificação, é parte desse processo incontornável de avanço e diálogo. A escassez orçamentária pode ser uma boa oportunidade de vazar sem prudência acadêmica, sem prudência de mercado, de tendência ou moda, essa coragem da qual a literatura sempre dependeu.

Fóruns importantíssimos como o “Rumos” do Itaú Cultural, por exemplo, nos quais acontecem debates, questionamentos de alto nível, com quem de fato tem algo a dizer, formando um acervo importante de análises e posicionamentos, renovam muito pouco os nomes que arregimentam as reflexões propostas. Quando se pega a programação das edições realizadas se percebe com clareza a repetição de nomes. Se me encontro em São Paulo, no caso do Rumos, não deixo de ir, mas tenho bem nítida a dificuldade de arejamento.

Acho que a crise econômica, abordando especificamente a área da cultura e das iniciativas culturais, espalha esse sentimento de resistência (esse sentimento de vamos fazer um zine com o dinheiro que a gente tem no bolso), e isso é bom, sacode a inércia, o conforto provocado por certas certezas, inclusive de suporte financeiro. Uma crise de grande alcance impõe a atitude de olhar adiante, a crise pede trocas, trocas mais ousadas. Nessa perspectiva, uma das iniciativas mais interessantes de que tive notícia foi a Flipobre, idealizada pelo Roberto Menezes e pelo Diego Moraes, porque aproveitou bem o potencial da tecnologia do virtual e renovou vozes e olhares, mesmo não tendo a repercussão que merecia.

Você acha que os festivais de literatura ajudam mesmo a aumentar o público leitor?

Eles fortalecem a relação entre leitores e escritores. Se o escritor tem bom desempenho no palco pode despertar o interesse de aquisição de um de seus livros, mas adquirir livro não é ler, não é mergulhar como leitor dedicado nos conflitos propostos em uma obra literária complexa. O processo da literatura é um pouco mais lento, velado e complicado do que qualquer espetacularização, mesmo quando essa espetacularização acontece numa sala com poucas pessoas e não em uma bienal, em uma festa literária internacional dessas que se replicam por todo o país. Só a educação escolar de qualidade vai fazer alguma diferença – e isso não é coisa que se resolva apenas criando eventos no Facebook, nem com pencas de joinhas distribuídos pelas redes sociais. Os encontros que apostam na leitura prévia de obras literárias, seja por meio de um grupo de alunos, seja pela comunidade em geral, colaboram com firmeza na redução desse abismo. Já participei de projetos que buscavam sedimentar o hábito da leitura em comunidades carentes. No último, trabalhei com jovens de quinze anos de uma comunidade de Niterói-RJ. Foi brutal constatar o quanto desassistidos estavam e estão aqueles adolescentes. Pouca coisa é mais comovente do que olhar de uma criança, de um adolescente que busca uma saída, uma razão, uma esperança, mesmo sabendo que não possui as ferramentas mínimas para romper como poderia a redoma do desconhecimento, da alienação absoluta, na qual está trancado. Na minha apresentação eu falei sobre Machado de Assis e Gilberto Gil e perguntei sobre Machado de Assis e Gilberto Gil. Nenhum deles sabia quem era Gilberto Gil, muito menos Machado de Assis.

E a crítica? Ela ainda tem alguma função ou importância para nossa literatura?

A crítica se reinventa, morre e renasce. A crítica precisa ser coerente, não precisa acertar, mas precisa se realizar sobre o propósito de fundação de uma coerência (em perspectiva história será a primeira a ser julgada) e honestidade. A ambição de protagonismo da crítica no cenário literário é uma possibilidade que se amplia e que eu não consigo reconhecer como ameaçadora ou equivocada – vivemos numa realidade de protagonismos múltiplos e multilaterais (prometo não falar em horizontalidade) porque não se pode mais abafar a voz do outro, nem filtrá-la em instâncias de legitimação como se fazia antes da inovação tecnológica brutal operada pelo advento da rede mundial de computadores. Essa fragmentação aniquilou a premissa do castelo, do altar iluminado. A crítica é um elemento essencial desse cenário e se renova, é inevitável, tão inevitável quanto a canonização de certas vozes – vozes que inicialmente surgem estranhas, ruidosas, desconfortáveis e depois se tornam faróis. É preciso dar tempo à produção e também à leitura honesta e dedicada dessa produção; não há nada, de qualquer forma, que possa ser entendido sem o verdadeiro distanciamento dos anos. Estou falando de quarenta/cinquenta anos, nunca menos do que isso – o ambiente acadêmico tem isso claro.

Queria falar agora um pouco da poesia brasileira atual que parece viver um bom momento. Você concorda?

Vai bem quando a percebemos fora das asas (ou dos guarda-chuvas) de seus pretensos caciques. Nesse sentido são as pequenas editoras, sobretudo as novas, as que surgem e desaparecem, as que permanecendo se querem pequenas também, as causadoras das grandes renovações; é preciso prestar atenção nelas.

Valorizo muito as poetas e os poetas que não sentem necessidade de se alinhar a grupos, a clubes. Um poeta precisa saber ser só, preciso suportar a solidão. Acho que é bem conhecida minha tese sobre a performance poética nas redes sociais, sobre o quanto a lógica das redes sociais afeta a alma criadora dos poetas (isso está mais explicitado nas conversas que tive a partir do lançamento do “O Ano em Que Vivi de Literatura”). Mas não são as redes sociais as culpadas, como também não eram os blogs. A fragilidade está na forma de aplacar da maneira mais artificial e rasteira o sentimento de solidão a que todo criador singular está condenado. É um equilíbrio difícil porque as redes sociais estão aí e são úteis.

Tenho me dedicado a nomes desconhecidos ou pouco sondados neste meu projeto com o Fabio Zimbres, a Revista Estrago, que na verdade é um cartaz, para os leitores imprimirem em casa, combinando ilustração do FZ com texto meu – e a cada edição, lançadas sem regularidade, chamamos uns convidados, privilegiando nomes menos conhecidos, como é o caso da poeta Amanda Prado, de Maceió. Quando são mais conhecidos tentamos expor facetas menos conhecidas da sua produção, como aconteceu com a publicação de um poema do ilustrador Guilherme Pilla e desenhos do escritor Joca Reiners Terron.

E o eixo Rio São Paulo? Ele ainda é determinante no sucesso ou não de uma obra?

Há hoje uma descentralização visível, saudável, necessária, inegável. Ainda assim é preciso chamar atenção dos núcleos legitimadores de São Paulo e do Rio. Isso me incomoda, mas é muito fácil de entender os motivos dessa realidade, de encontrar suas justificativas e administrá-las. Há movimentos significativos e autossuficiência em Salvador, Recife, Manaus, Belém, Curitiba, Cuiabá, Florianópolis, Belo Horizonte, Maceió, Brasília, Porto Alegre e em outras capitais, em todas as capitais, mas quando acordamos São Paulo e Rio ainda estão lá. Meu retorno ao sul, isso de estar mais próximo de Florianópolis, renovou uma percepção de distanciamento (um distanciamento que não é tão forte em Porto Alegre, porque Porto Alegre tem muito daquela conversa de se bastar, de serem autossuficientes. Não é de graça que escritores do país inteiro vão para lá e se encantam, acabam ficando por lá, nem que seja por um tempo) que eu não tinha no Rio. É uma mudança interessante, um processo que se iniciou no ano passado e que se aprofundará pelo tempo que eu, e minha mulher Morgana, continuarmos morando em Garopaba.

O que restou de espaço para a literatura nos grandes jornais e que significa isso?

A resposta dependerá da sobrevivência dos grandes jornais. A literatura sempre encontrará seu espaço – nela ainda está o começo de muita coisa, de muita expressão que eventualmente até pode ganhar mais repercussão. O grande problema é o tempo, a administração do tempo, até mais do que de recursos financeiros que deem suporte para espaços adequados destinados à literatura. Tempo é interesse, e interesse dita o quanto relevante é determinada mercadoria – as balanças dessas valorações transmutam, são cíclicas, não há bola de cristal que consiga confiná-las num itinerário futuro exato.

Como o estrangeiro vê nossa literatura hoje?

Com o lançamento de um romance meu específico, lá em 2011, 2012, passei a ter contato com editores, jornalistas, acadêmicos, tradutores, leitores estrangeiros em uma proporção muito maior do que tinha antes (com a tradução de um conto, de um poema, por exemplo) e o que posso dizer com franqueza é que não tenho hoje uma opinião clara. Num encontro em Berlim, em 2013, falei de Graciliano Ramos e na plateia ninguém (pessoas que por conta exclusivamente da ótima divulgação do evento pelos seu produtores e pela minha editora alemã estavam ali para me escutar, para saber do livro que eu estava lançando no país deles; um livro cuja protagonista era uma adolescente indígena, daí o interesse) sabia quem era Graciliano Ramos. Aquilo me chocou. A Granta seleção Brasil, porque não há como desconsiderar as muitas seleções da Granta dos melhores jovens romancistas em lugar algum do mundo ­ desconsiderar o impulso que traz ao trabalho de uma autora ou de um autor que tenha menos de quarenta anos ­, deveria ser ampliada para os melhores romancistas brasileiros porque muitos dos nossos grandes nomes continuam desconhecidos em outros países. Veja o caso do Raduan, que só agora, muito graças ao trabalho do meu editor na Inglaterra, o Stefan Tobler, passou a ter alguma chance de verdade com a língua inglesa. Sei que a dinâmica da Granta não é essa, mas é interessante escrutinar essas aberturas de janelas quando acontecem. A literatura brasileira tem peso mínimo no cenário literário ocidental, essa é a dura realidade; iniciativas institucionais como bolsas de traduções podem mudar esse quadro, mas devem ser preservadas, ampliadas, respeitadas. São os pequenos movimentos e a sua constância que no final das contas farão a diferença. 

Paulo é autor do livro de contos “Ainda Orangotangos” (Porto Alegre: Livros do Mal, 2003, publicação; Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2007, republicação), adaptado para o cinema pelo diretor Gustavo Spolidoro, longa-metragem vencedor do 13º Festival de Cinema de Milão, e os romances “Habitante Irreal” (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2011), livro vencedor do Prêmio Machado de Assis 2012, da Fundação Biblioteca Nacional, lançado também na Alemanha, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e em breve na Croácia e na Turquia. O livro de poemas “Mesmo Sem Dinheiro Comprei Um Esqueite Novo” foi lançado em 2014 pela Companhia das Letras e foi o vencedor do vencedor do Prêmio da APCA – Associação Paulista dos Críticos de Arte em 2014