O outro lado dos ídolos não nos interessa


Por Felipe Portes

Francesco Totti se aposentou em maio deste ano, aos 41 anos, sendo 24 deles dedicados à Roma como profissional, sem contar as várias temporadas como juvenil. A imagem do atleta, que jamais quis deixar o clube e a cidade onde nasceu, se torna maior do que a própria Roma em algumas projeções. Isto porque Francesco, por tanto tempo, representou milhões de torcedores, dentro e fora da capital italiana, sendo também o último capitão campeão com esta camisa.

Em virtude da sua enorme contribuição, Totti muitas vezes foi considerado uma divindade à parte por sua torcida. Foi e é o maior ídolo romanista, entre tantos que já passaram por lá. É natural que seus feitos sejam celebrados e sua pessoa, reverenciada pelos fanáticos e súditos do novo Rei de Roma.

Existe quem torça pelo clube apenas porque se curva a Totti. Outros começaram a acompanhar a equipe nos áureos tempos de Il Capitano, e já consideram deixar a Roma de lado pela ausência do camisa 10. Os que realmente sentem a falta de Francesco, nestes quase dois meses, provavelmente já entraram em diversas discussões a respeito de quem é o grande futebolista italiano da história.

Uns dizem Silvio Piola, outros citam Alessandro Del Piero. Há quem diga que é Roberto Baggio e os mais fanáticos dirão que é Totti. Todos terão algum ponto de razão em meio a uma discussão desnecessária, de certa forma. Ora, se podemos comparar Pelé a Maradona, por que não compararíamos Totti com Del Piero, Baggio, Piola, Paolo Rossi, Bruno Conti, ou quem quer que seja?

O ponto é que nenhum destes rivais (exceto, claro, Del Piero, pelas quase duas décadas de Juventus) tem um caráter tão acima de qualquer suspeita como Totti. Se o ex-capitão juventino ganhou o mundo com talento e carisma de sobra, o romanista busca seu espaço com uma das últimas histórias românticas construídas dentro do futebol: a do menino que se criou e virou homem dentro do clube e dedicou a sua primeira vida a fazer uma torcida feliz, a sua torcida feliz, gente como ele, modesta, humilde e trabalhadora.

O ponto é que Totti não foi sempre esta figura irrepreensível. Em vários momentos de sua longa carreira, o craque fez papel de vilão. Evidentemente, não para os seus, mas para rivais. Os gols, provocações e títulos são parte do jogo. As agressões e ataques de raiva, não. Ninguém esquece dos pisões, das entradas desleais, da cuspida em Christian Poulsen (Eurocopa 2004), nem das declarações equivocadas em seus últimos anos.

Em determinado ponto da vida, Totti sabia que não precisava mais se acanhar para dizer nada. Comprou uma briga pública com Luciano Spalletti e criticou Gonzalo Higuaín por trocar o Napoli pela Juventus (por um caminhão de dinheiro), alegando, entre outras coisas, que os jogadores de hoje seguem apenas o dinheiro, não o coração. E que esta nova safra de “ídolos” está cada vez mais se transformando em nômades.

Pudera Francesco, como o último representante de uma classe formidável de jogadores, criticar as novas gerações por pensarem diferente. Quem, na Itália, se entregou tanto a um clube quanto ele? Franco Baresi, Paolo Maldini, Giuseppe Bergomi, Giacinto Facchetti e Sandro Mazzola. O último desses a parar foi Maldini, em 2009.

Depois de certa idade, as pessoas perdem um pouco o freio. Totti não é diferente. No embalo da crítica a Higuaín, ele acabou caindo na bobagem de falar mal dos estrangeiros que jogam na Itália, por um argumento no qual defendia jovens atletas italianos que não conseguiam ter chances em seus clubes, pois os contratados de fora dispunham de maior reconhecimento por parte dos treinadores. Sem perceber, Francesco deu um atestado de ingratidão a tantos colegas de outros países que fizeram a Roma forte no passado e no presente. Gabriel Batistuta, Aldair, Cafu, isso só para relembrar peças de destaque no último título italiano da Roma, em 2001.

Podemos, claro, discutir a ausência de italianos entre as grandes forças da Serie A atual. E que a Roma tinha apenas De Rossi e Florenzi como titulares absolutos nascidos na Itália na temporada passada. O péssimo aproveitamento de base é um problema recorrente em Roma, algo que não parece estar caminhando para uma mudança nos próximos anos. Totti é um ponto fora da curva, desportiva e emocionalmente falando.

Dificilmente haverá outro atleta de um clube só depois dele. Nem mesmo De Rossi parece estar pronto para seguir o script de seu ídolo e capitão. E com tantos erros, diluídos pela longa estrada e por seu aprendizado constante, Totti está muito longe de ser um alvo para críticas como outros jogadores do passado. O fato de evitar se posicionar em grandes polêmicas é o que mantém a imagem praticamente imaculada. Humano, com todos os seus defeitos, mas definitivamente distante de se expor aos holofotes.

Totti será por muito tempo uma entidade tão grande quanto a Roma, mesmo que não jogue mais. Assim como foi Diego Maradona para o Napoli e para a seleção da Argentina. Seus súditos farão vista grossa para as eventuais bobagens que ele diga ou faça. É natural. Nós realmente não queremos saber do lado ruim de nossas referências. Nos importa apenas a bondade aparente e a memória afetiva.

Francesco está acima do bem e do mal por ter completado uma missão espinhosa. E acima de tudo, por respeitar seu clube e o que todos nós, amantes do futebol, protegemos com unhas e dentes: os valores que nos fizeram apaixonar pelo esporte. Os seus erros não interessam tanto quanto os gols e façanhas dentro do campo. Que assim seja. Amém.

Esportes

Felipe Portes

Jornalista, fundador e editor do site Todo Futebol, com passagens por Trivela e Yahoo Esportes.