O sucesso e as ambiguidades do Inhotim
Um dos mais importantes institutos de arte contemporânea do mundo completa dez anos de pioneirismo, prestígio e ambiguidades
Por Leandro Lança*
O Instituto Inhotim comemora dez anos muito bem-sucedidos, mas sem deixar escapar a marca da ambiguidade. E não poderia ser de outra maneira se observarmos a história de seu fundador e presidente, Bernardo Paz, um amante da natureza que fez fortuna através da predatória atividade da mineração.
Mesmo após dez anos, o Inhotim continua sendo um local para o qual escapam definições fáceis. Museu, jardim, parque… nenhuma dessas palavras dão conta do lugar, que, num futuro próximo, poderá ainda abrigar hotéis (o primeiro está sendo finalizado em parceria com a rede de resorts Txai, mas sem data para a inauguração), centro de convenções, eco-vilas, lojas de grandes grifes, campos de golfe e até aeroporto.
Em entrevista ao O Beltrano, o diretor executivo do Inhotim, Antonio Grassi, disse que o grande desafio para os próximos anos é a procura de uma estrutura de sustentabilidade. “Fazer com que a instituição tenha uma estabilidade garantida e que não precise ficar ano a ano tendo que renovar captação de patrocínios”, afirmou.
Se o futuro está em aberto, é possível, com essa primeira década de atividade, ao menos tentar analisar por quais caminhos a instituição tem seguido.
INÍCIO
O projeto do Inhotim foi apresentado em 2004 em uma grande festa na então fazenda de Paz. O colecionador aproveitava a ocasião da 26ª Bienal de São Paulo e da presença no país de artistas e da mídia internacional especializada, e de críticos, curadores e galeristas. Ainda que impactados pelo arrojado projeto, em local afastado dos grandes centros, poucos ali poderiam imaginar que, em tão curto espaço de tempo, quatro galerias se multiplicariam em 23, e que o município de Brumadinho, a pouco mais de trinta quilômetros de Belo Horizonte, entraria definitivamente para o mapa da arte internacional.
Em 2006, quando já havia infraestrutura básica construída, a instituição abriu as portas de forma permanente ao público para uma visitação tímida nos primeiros anos. Com o tempo, o cenário mudou. No ano passado, o museu comemorou a marca de 2 milhões de visitantes.
Em dez anos, o Inhotim se consolidou como um dos destinos culturais mais procurados de Minas Gerais, e sua coleção de arte contemporânea é reconhecida como a mais relevante do país aberta permanentemente.
O Beltrano conversou com o curador francês Marc Pottier sobre o Inhotim. Segundo ele, o museu está entre os três projetos de arte mais importantes do mundo, ao lado daqueles executados pela família Menil nos EUA e Naoshima, a ilha japonesa dedicada à arte contemporânea.
“Graças ao meu grande amigo, o artista Tunga, encontrei-me com Bernardo Paz no final dos anos 90, antes do início do projeto. Na época, trabalhava como Adido Cultural no consulado geral da França, no Rio. Fiquei logo fascinado com o projeto e a visão do Bernardo. Gosto desse homem excêntrico que pensa mais com seu coração, seu instinto e suas entranhas”, disse Pottier.
O interesse de Paz pela arte contemporânea surgiu apenas no final da década de 1990, sob influência definitiva de Tunga. Antes, o empresário colecionava somente obras modernistas.
É do artista pernambucano, morto em 2016, o primeiro pavilhão do Inhotim, construído para abrigar a instalação True Rouge, a maior galeria construída até o momento, inaugurada em 2012.
Ao iniciar seu investimento em arte contemporânea, o colecionador se desfez de suas obras modernas e, diferente da antiga coleção, contratou um art advisor (consultor responsável por aconselhar as compras de obras de arte e direcionar a coleção), o experiente norte-americano Allan Schwartzman.
Com a abertura da coleção ao público, foram contratados os curadores Jochen Volz e Rodrigo Moura (sucedido em 2016 por Marta Mestre).
Com uma equipe curatorial experiente, o Inhotim conseguiu apresentar um conjunto de artistas referenciais para a história da arte a partir dos anos 1960, como Hélio Oiticica, Ligya Pape, Cildo Meireles, Chris Burden, Yayoi Kusama, Dan Granham, entre outros.
Mas também utiliza com inteligência quatro galerias para troca esporádica de acervo, onde é possível ter contato com os artistas mais jovens da coleção.
Outro destaque relevante são os site-specifics, obras comissionadas pela instituição, que prioriza projetos que dificilmente poderiam ser realizados em outro lugar. Nesses trabalhos é possível perceber que o eixo central de discussão apresentada é a relação entre natureza e cultura, que, por sua vez, aponta diretamente para a gênese do instituto: um hibrido de jardim botânico e museu de arte.
São exemplares nesse sentido as obras de Doug Aitken, Matthew Barney, Chis Burden, Dominique Gonzales Foster, Giuseppe Penone e Cristina Iglesias.
Um dos maiores méritos do Inhotim está no caráter público que Paz imprimiu à sua coleção. Em um país onde os museus públicos sobrevivem precariamente, sem investimento na aquisição de acervo e dependentes de raríssimas doações, uma vez que a elite brasileira culturalmente prefere deixar herança do que doar, não fosse o Inhotim, dificilmente veríamos obras como Ttéia de Lygia Pape, uma Cosmococa de Oiticica ou uma instalação de Tunga, no Brasil.
Felizmente, o sucesso alcançado por Bernardo Paz (que, de milionário desconhecido, passou a figurar todos os anos na lista dos mais importantes no mundo da arte) atingiu alguns colecionadores brasileiros que decidiram também abrir suas coleções privadas ao público.
É o caso do economista João Carlos de Figueiredo Ferraz, que, em 2011, inaugurou, em Ribeirão Preto, um instituto homônimo onde exibe uma coleção com quase mil obras.
ARQUITETURA
Dois anos após a abertura oficial, o Inhotim iniciou, com a galeria de Adriana Varejão, uma nova relação com a arquitetura.
Projetada pelo arquiteto Rodrigo Cerviño Lopes, a galeria dedicada a Varejão possui elementos de integração tanto com a paisagem ao redor, quanto com a obra da artista.
A partir daí, as galerias permanentes (dedicadas exclusivamente a um artista) seriam construídas dentro de projetos que relacionassem obra e desenho arquitetônico. Os pavilhões seriam agora uma espécie de índice do que estariam abrigando.
O paisagismo também entraria nessa premissa, de forma a criar um diálogo entre curador, artista, arquiteto e paisagista. Com isso, a arquitetura no Inhotim também se tornou atração e arte. Não por acaso, seis prédios tiveram seus projetos premiados.
Destacam-se os trabalhos do Escritório Mineiros de Arquitetos Associados, responsável por prédios como as galerias Miguel Rio Branco, Claudia Andujar, Cosmococa e o Centro Educativo Burle Marx. E também o escritório Rizoma, que realizou o projeto das galerias de Tunga e Lygia Pape, além do restaurante Oiticica.
JARDIM BOTÂNICO
Em 2010, o Inhotim recebeu a chancela de jardim botânico, sendo considerado o maior do Brasil em número de espécies.
Assim como a expansão do acervo artístico, é surpreendente o desenvolvimento, em dez anos, dos jardins e das áreas dedicadas à botânica.
Nos últimos três anos, por exemplo, foram inaugurados um jardim de plantas desérticas, o primeiro vandário aberto ao público na América Latina (espaço destinado à uma coleção de orquídeas vanda), um largo de orquídeas dedicado especialmente à espécie Cattleya Walkeriana, com 17 mil exemplares, um grande jardim construído pelo paisagista Pedro Nehring, além de um espaço chamado de Viveiro Educador, onde são realizadas atividades voltadas para a manutenção do acervo botânico, pesquisa científica, conservação e educação ambiental.
INHOTIM ANTES DE INHOTIM
Mas poucos conhecem a história do Inhotim antes da fundação do Instituto.
Em uma área rural, ainda dentro da pequena Brumadinho (que possui 35 mil habitantes), Inhotim era uma comunidade com cerca de 140 anos de história, onde viviam aproximadamente 300 pessoas.
Dono de uma fazenda nesse local, Bernardo Paz, em um curto período de tempo, comprou todas as outras pequenas propriedades dos moradores de Inhotim, quando, influenciado por amigos e admiradores, decidiu que abriria sua coleção de arte ao grande público.
Quem conta um pouco dessa história centenária do lugar é o jornalista e professor aposentado da UFMG, Valdir de Castro Oliveira. Ex-morador da comunidade, Valdir publicou em 2011 o livro “Réquiem para Inhotim”, onde narra de maneira poética e saudosista histórias do lugarejo antes do museu existir.
Mesmo ciente da relevância da instituição não só para Brumadinho, mas para o mundo, Valdir nunca deixa de lembrar, com certo pesar, o que foi apagado. No início, houve uma promessa aos antigos moradores de que a instituição faria ações para preservar a memória da comunidade. Seria criado um espaço físico para abrigar um memorial com fotos, vídeos, documentos e depoimentos dos moradores. Mas, passados dez anos, o Inhotim parece pouco disposto a preservar essa história. Além de nenhum memorial ter sido construído, a Igreja de Santo Antônio, construída em mutirão pela comunidade e inexplicavelmente comprada pela instituição, foi reformada, dessacralizada e transformada em um espaço para eventos.
No entanto, é inegável a contribuição do Instituto Inhotim no desenvolvimento social de Brumadinho. Além de seu efetivo de funcionários ser constituído em 80% por moradores da cidade, o Inhotim contribuiu para o surgimento de trabalho indireto relacionado ao turismo.
O instituto ainda mantém na cidade projetos de iniciação musical, dois corais, uma escola de cordas, um projeto de educação artística para jovens de escolas públicas de Brumadinho, além de receber cerca de 70 mil estudantes de escolas públicas e privadas da região metropolitana de Belo Horizonte todos os anos, através de programas como o Escola Integrada.
POLÊMICAS
Não faltaram nessa primeira década de vida algumas polêmicas.
O indiciamento e prisão do publicitário Cristiano Paz (irmão de Bernardo Paz) no esquema do mensalão, deflagrado no ano de abertura de Inhotim, levantou rumores jamais comprovados.
Anos mais tarde, em 2012, denúncias davam conta de que uma equipe do Inhotim teria retirado três carretas de palmeiras buritiranas de uma Área de Preservação Permanente (APP) na Chapada dos Veadeiros, no município de Cavalcante, em Goiás.
O objetivo seria “pesquisas”. A extração, que teria sido autorizada pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio), revoltou a população local e fez com que o professor Eduardo Gomes Gonçalves, do ICB UFMG, ex-curador botânico de Inhotim, se manifestasse.
À época, Gonçalves afirmou que, quando iniciou seu trabalho no Instituto, descobriu que era prática corrente de Bernardo Paz comprar plantas retiradas da natureza sem autorização e em grandes quantidades. Ele disse ainda que o Inhotim era o mais autêntico caso de “greenwashing”.
Tempos depois, uma comitiva do Instituto foi até a cidade de Cavalcante pedir desculpas à população.
Outro problema com relação ao paisagismo do Inhotim aconteceu em 2012, quando, depois de uma disputa judicial, Paz teve que dar o crédito de 250 mil metros quadrados de seu projeto paisagístico para o arquiteto Luiz Carlos Brasil Orsini, além de uma indenização de R$ 50 mil pelo tempo em que esse crédito esteve ausente da divulgação do museu.
Desde sua abertura, o Inhotim divulgava que seus jardins teriam sido projetados por Roberto Burle Marx (1909-1994), quando o que de fato ocorreu é que o gênio do paisagismo era amigo de Bernardo e visitou sua fazenda em 1984, tendo dado alguns toques para o jardim pessoal do empresário.
DESAFIO
O grande desafio do Inhotim ao longo desses dez anos, e que ainda permanece, é como se viabilizar economicamente. A instituição não deixou de sentir os efeitos da crise e da queda abrupta dos preços do minério de ferro nos últimos três anos.
Houve dispensa de funcionários em muitos setores, e as grandes inaugurações anuais de galerias e novos jardins tiveram uma pausa estratégica em 2013 e 2014.
De uma dependência quase que exclusiva de seu idealizador, ao longo dos anos vieram parceiros importantes, como Vale, Itaú, Santander, IBM, Pirelli, entre outros.
Em 2008, o instituto foi reconhecido como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), e com isso formou-se um conselho administrativo do qual Paz é presidente. Para tal, conforme destacou Antonio Grassi, em entrevista ao O Beltrano, foi fundamental a doação por Bernardo Paz de todas as obras de sua coleção e das terras para o Instituto Inhotim.
“Nos últimos anos, o instituto se fortaleceu mais como Oscip, com a estruturação do conselho de administração e contratação de auditoria externa. E se abriu para uma aproximação com outras linguagens artísticas, como a dança, o teatro e a música, em eventos como as ‘noites abertas’. Em breve, o instituto espera “expandir e consolidar sua programação noturna”, disse Grassi.
Outra estratégia para que o Inhotim se tornasse sustentável foi a criação do programa “Amigos do Inhotim”, em 2011. Através do programa é possível se associar ao museu mediante contribuições anuais, que oferecem contrapartidas diversas ao contribuinte.
Mais recentemente, uma forma de viabilizar a construção de novas galerias tem sido a parceria direta com empresas que desejam associar diretamente suas marcas ao Inhotim. Foi o caso da Galeria Claudia Andujar, construída em parceria com o banco Santander.
PORQUE É PRECISO CONHECER
Entre uma polêmica aqui e uma ambiguidade acolá, visitar Inhotim, felizmente, permanece sendo uma experiência única e impressionante para pessoas do mundo inteiro, leigos ou especialistas em arte. Como destaca o curador francês Marc Pottier, “em 10 anos o Inhotim revolucionou a maneira de ver arte, a maneira de encontrar obras site-specific, a maneira de pensar a paisagem com obras, a maneira do público estrangeiro ver a arte brasileira… Para mim, Bernardo é um genial ‘Fitzcarraldo’ que deu carta branca aos artistas, aos arquitetos dos pavilhões, aos especialistas dos jardins botânicos… Não tem melhor lugar no Brasil para descobrir o melhor da arte brasileira com uma abundância e uma generosidade sem limites. Tunga tem o seu ‘museu’, Cildo Meireles uma mini-retrospectiva de obras-chave, o novo pavilhão da Claudia Andujar é uma aula fascinante para descobrir uma vida dedicada aos índios… Lygia Pape e Hélio Oiticica permitem entender a arte contemporânea brasileira. A lista é impressionante, sem esquecer alguns artistas internacionais, como Doris Salcedo, Doug Aitken, Matthew Barney, Chris Burden, Giuseppe Penone, Kusama…. É um projeto inteligente, sensual, poético, de onde a gente sai tonto de arte.”
Se dez anos representam a mais tenra idade para qualquer instituição e o futuro se apresenta como uma grande incógnita (por isso mesmo cheio de possibilidade), já é possível constatar que o Inhotim encarna utopias.
E nenhuma galeria do Inhotim configura tão bem o paradoxo fundamental do espaço quanto a mais recente, inaugurada em 2015 e dedicada ao trabalho da fotógrafa Claudia Andujar.
Em um espaço de 1600 m², feito com tijolos artesanais requeimados e amplas entradas de luz natural, o lugar abriga 500 fotografias que sintetizam a trajetória de uma vida. Uma vida onde é impossível separar a produção artística do ativismo em prol dos direitos do povo indígena yanomami.
O trabalho de Claudia, que acompanhou os índios por mais de 30 anos, é transpassado pelo genocídio dos yanomamis e a constante invasão de suas terras devido ao interesse minerário.
Como parte da inauguração da galeria, o Inhotim promoveu o seminário Visão Yanomami, com a presença da artista, curadores e antropólogos, além de Davi Kopenawa, maior liderança yanomami.
Ainda sob o forte impacto da maior tragédia ambiental do país, causada pela mineradora Samarco no final de 2015, Davi alertou que este era o resultado dos “homens-máquina” (como ele chama os não-indíos) cavarem a terra em busca das coisas que Omama (Deus) teria deixado escondido nas profundezas por serem perigosas. Expôs seu ódio à mineração e os graves perigos que essa atividade permanece representando à vida de seu povo.
Como um retrato do Brasil, ou ironia do destino, naquele auditório estava Bernardo Paz, o “homem-máquina” responsável direto por eternizar o trabalho de Andujar em uma galeria ao mesmo tempo espetacular e emocionante, à altura mesmo de sua dedicação aos yanomamis.
E assim caminha a “Máquina do Mundo”.
*Leandro Lança é sociólogo e mestrando em Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais.