O Terno


Por Flávio de Castro

Reprodução

Comprei o meu terno no século passado, em uma loja que vendia roupas a pastores evangélicos e paguei por ele 100 reais. Na verdade, ganhei este terno de presente de uma ex-sogra, que não suportaria me ver de calça jeans formando fotográfico par jurídico com sua belíssima filha. Aceitei a oferta de bom grado e apresentei-me alinhado no evento, até que o excesso de puro malte escocês me fizesse dançar rock ao som de bolero, surrupiar doces nos bolsos e apartar lutas corporais.

Desde então tenho medo deste traje, pois sempre que entro nele irremediavelmente me embriago. Vestido nele já dancei axé, galanteei mães e avós de formandos do terceiro ano, corri desesperadamente com garrafas de champanhe furtadas do bufete, chorei em ardorosas discussões e até levei um tapa estalado no rosto (que ainda hoje me dói). Como disse, tenho medo deste traje. Ele me entorpece, me desatina, me vira ao avesso das convenções sociais. Não importa o camafeu, a pera com gorgonzola, o filet ao molho madeira, as fotos em sépia ou os bombons de damasco: eu sempre fico alucinado, com um olho em cada têmpora, a gravata retorcida e o sapato de bico quadrado estalando passos tortos na saída do salão de festas de algum anfitrião que se arrependeria por me convidar.

Tenho medo deste traje, pois penso que um pastor exorcista performático se materializa em mim a cada vez em que o visto. Duvido que o utilizarei para receber prêmios ou, ainda, trabalhar em repartições públicas. Como almejo ser enterrado com a camisa do meu time, só me resta sobreviver aos dias de eventos sociais, nos quais me vestirei feito um segurança de boate, careca, barrigudo e tresloucado. E se alguém me encontrar às 8 horas da manhã de domingo na feira hippie vociferando poemas inaudíveis enquanto mastigo um acarajé, não me julgue e tampouco se preocupe: são atribulações causadas exclusivamente pelo traje, figurino que me transforma em personagem. E lá vou eu para mais um evento festivo, o paletó parece que pressente o meu delírio e a gravata me enforca até que se esvaia todo juízo, decoro e comedimento.

O terno sempre me transforma numa caricatura bêbada. Há quem se meta num terno e saia elegante, o empresário bem sucedido, o homem de fino trato. Eu sempre me sinto e pareço – também aos outros – um bêbado voltando pra casa depois de um convescote. Não é que eu não goste do terno. É o terno que não gosta de mim.

Conto-reportagem

Flávio de Castro

Poeta, professor de literatura e funcionário público de si mesmo.