Ocupação com final feliz

Carolina Maria de Jesus avança na negociação com o estado de forma digna


Por Petra Fantini

Publicado em 27/06/2018

Foto: MLB/Facebook

Após nove meses de gestação, a negociação da Ocupação Carolina Maria de Jesus com o poder público se encaminha para o fim. A proposta apresentada pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que acompanha a comunidade até então localizada na avenida Afonso Pena, foi aprovada pela Mesa Estadual de Diálogo e Negociação Permanente com Ocupações Urbanas e Rurais de Minas Gerais. Também participam da conversa acadêmicos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas).

Na visão do movimento, o caso demonstra como ocupações podem ter um final feliz e proporcionar moradia digna para centenas de pessoas de baixa renda – só na Carolina há cerca de 200 famílias. Os termos do acordo com o governo estadual estabelecem que serão cedidos dois terrenos com infraestrutura para que o MLB viabilize projetos de moradia do governo e de autoconstrução para parte dos moradores, como já foi feito nas ocupações Paulo Freire e Eliana Silva.

A autoconstrução é a metodologia mais utilizada em ocupações ao redor do país, ocorrendo quando as famílias são responsáveis pela edificação da própria residência. A outra maneira seria através da modalidade Entidades do programa federal Minha Casa, Minha Vida. A modalidade mais comum, a Empresas, é criticada pelo MLB devido às vantagens dadas a proprietários imobiliários e empreiteiras. Ao definir a localização das moradias, as construtoras reproduzem um modelo de guetização por escolherem regiões baratas e afastadas dos centros comerciais.

“Mas nós também trabalhamos com o programa e achamos que é um retrocesso esse governo golpista do Temer cortar investimentos nessa área”, avisa o militante Leonardo Péricles. A modalidade Entidades, por outro lado, trabalha com movimentos sociais. “E os movimentos mostraram, com a prática, que conseguem construir mais moradia e de mais qualidade do que as construtoras”, defende Leonardo. Nesta modalidade a construção é feita por uma pequena construtora ou um mutirão de trabalho orientada por técnicos.

O restante das famílias receberá auxílio pecuniário revertido para sua manutenção na região do Centro de Belo Horizonte. As famílias estavam apreensivas quanto a um possível despejo desde as simulações de invasão à ocupação que policiais militares fizeram na segunda semana de maio (https://goo.gl/UmguQj), quando a liminar de reintegração de posse foi emitida pela justiça mineira. Agora, com auxílio do Estado, algumas famílias já começaram a sair do edifício. O esvaziamento do local deve se completar no final deste mês.

Na rua Espirito Santo, despejo em suspenso

A Ocupação Vicentão, localizada na rua Espírito Santo, número 461, havia recebido ordem judicial de reintegração de posse e estava em vias de ser despejada quando a equipe jurídica das Brigadas Populares e da organização de direitos humanos Terra de Direitos constatou irregularidades no processo. A negociação também corre na Mesa de Diálogo do governo estadual.

O prédio ocupado pertence ao espólio do antigo Banco Hércules, sendo um dos bens da massa falida da empresa e parte do processo judicial de pagamento dos credores da instituição. Por causa das dívidas, o espólio não estava integrado na administração da falência e sim sob controle dos herdeiros do banqueiro Tasso Assunção, primeiro condenado no âmbito da Lei do Colarinho Branco e responsável pelo rombo de R$ 47 milhões que lesou centenas de clientes do Banco Hércules.

A não integração foi decidida pelo síndico da falência Paulo Pacheco, que administra a massa falida sob a superintendência de um juiz, para que a massa não arcasse com as dívidas do imóvel. A advogada Júlia Ávila Franzoni, membra do Conselho Diretor da Terra de Direitos, explica que os herdeiros, então depositários do imóvel, fizeram o pedido de reintegração de posse no mesmo curso do processo de falência da empresa, em uma vara empresarial da justiça cível.

Segundo Júlia, o fato do juiz ter emitido uma liminar favorável “é um absurdo, uma excrescência, uma ilegalidade sem tamanho”. Essa autorização, continua a advogada, desrespeita o procedimento legal próprio das ações possessórias e proíbe qualquer rito de defesa das famílias ocupantes. “Não tem como você discutir uma questão possessória num processo de falência, é como se você estivesse falando que não importa a questão possessória. É dizer que a reintegração está certa e ponto final”, define.

Ao levar o questionamento para a Mesa, a equipe jurídica da Ocupação Vicentão conseguiu que o síndico e seu advogado reconhecessem a irregularidade e se comprometessem a fazer outro pedido no processo para que o juiz apartasse a decisão e seguisse um procedimento diferenciado. Júlia diz ter ficado “de cabelo em pé” com a decisão prévia de burlar o procedimento possessório comum pois poderia abrir caminho para que a manobra fosse usada em outras disputas.

“A gente está vivendo um momento de criminalização dos movimentos sociais das ocupações no país que viabiliza as ilegalidades estruturais que estão por trás de ações como essas”, diz Júlia. A ilegalidade estaria também nos entes privado e público que deixam prédios vazios na região central da cidade, defende a advogada. “Qualquer ação de desobediência civil ou enfrentamento a esse tipo de abuso, elas que estão sendo tornadas crime”, conclui.

Canal de negociação

A Mesa Estadual de Diálogo e Negociação Permanente com Ocupações Urbanas e Rurais de Minas Gerais existe desde 2015. Atualmente ela é coordenada pelo Subsecretário dos Fóruns Regionais de Governo Fernando Tadeu David e composta pelas Secretarias de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag), Governo (Segov), Casa Civil e de Relações Institucionais (Seccri), Direitos Humanos e Participação Social (Sedpac), Trabalho e Desenvolvimento Social (Sedese) e Desenvolvimento Agrário (Seda), além dos órgãos Cohab, Polícia Militar e Advocacia-Geral do Estado.

“A Mesa de Diálogo é um divisor de águas. O Pimentel teve uma sacada muito boa de que o estado deveria intervir nesse processo de conflitos para poder minimizar os impactos e acertar os acordos”, defende Tadeu. Há, hoje, aproximadamente 300 conflitos registrados na Mesa, dentre ocupações rurais e conflitos socioambientais, e pelo menos metade deles conseguem chegar a soluções conciliadas.

Tadeu defende que esta é uma luta pelo direito à moradia que deve ser considerada e respeitada. “Várias cidades do interior consomem produtos orgânicos, de boa qualidade, sem veneno, desses acampamentos. E a população apoia muito, porque você vê famílias inteiras que podem voltar ao campo para produzir e oferecer um alimento de qualidade para a mesa da população desses municípios”, ilustra o coordenador.

A advogada popular Júlia Ávila entende que a não ameaça contra ocupantes durante o processo de negociação é o mínimo que o governo deve oferecer. Ela critica a realização das reuniões na Cidade Administrativa, pois a localização longínqua faz com que as famílias precisem “se virar” para marcar presença na Mesa. Já Leonardo Péricles, do MLB, reforça a importância da Mesa de Diálogo para resolver os conflitos de forma pacífica, ainda que ainda faltem detalhes finais para que a negociação com a Carolina Maria de Jesus seja concluída. “Ao invés de polícia, repressão, violência, houve uma alternativa digna”, celebra.

Tentamos entrar em contato com a Subsecretaria Municipal de Regulação Urbana (SUREG) e com a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), mas não obtivemos retorno até o fechamento do texto.