Ocupação Vicentão: tomando o centro de volta

Ocupação no centro de Belo Horizonte e a discussão do uso dos espaços abandonados


Por Petra Fantini

 

O centro de Belo Horizonte é constituído pelo excesso, tanto de pessoas quanto de barulho. Comércios tocam músicas altas, sem motivo aparente além da ambientação do estabelecimento; aos gritos, pessoas fazem propostas de consultas odontológicas ou compra e venda de ouro. Em meio a tantos elementos, o número 461 da rua Espírito Santo não se destacaria não fossem duas grandes faixas em que se leem “Brigadas Populares” e “Ocupação Vicentão”.

Ao entrar no edifício, depois de se identificar na portaria – apenas conhecidos são autorizados – e passar pelas grades cobertas por tapume, o hall de entrada de pé direito alto se mostra imponente, porém, de certa forma, obscuro. A falta de energia elétrica em funcionamento e os arabescos elaborados no teto escurecem o ambiente que ganhou vida ao ser ocupado em 2018, após cinco anos vazio.

 

A história

Construído para abrigar um banco, o prédio recebeu outros tipos de comércio até ser inviabilizado devido à condição judicial de seu dono – o já falecido banqueiro Tasso Assunção, primeiro condenado pela Lei do Colarinho Branco, em 1995, e fugitivo por mais de 20 anos; só a dívida de IPTU do imóvel soma mais de um milhão e duzentos mil reais. “Então, o prédio é um espólio, um espólio de um banqueiro que sempre, a partir de manobras financeiras, usufruiu das pessoas.”, afirma Isabella Gonçalves, militante das Brigadas Populares que está na ocupação desde seu início.

Tasso, que foi dono do Banco Hércules e do Consórcio Mercantil, foi condenado por gestão fraudulenta do Hércules, falsificação de documentos e transferências ilegais de dinheiro de um consórcio do grupo. Ele e seu filho deixaram um rombo milionário para os clientes. Quando finalmente foi preso, em 2004, foi encontrado vivendo escondido em um bunker na área de serviço de sua mansão. Após deixar a prisão, viveu na mesma mansão até a sua morte, em 2010.

Do outro lado do espectro político vivia Vicente Gonçalves, o “Vicentão”, advogado popular negro e historicamente uma das principais lideranças faveladas da cidade. O patrono que dá nome à ocupação faleceu em 2016, aos 80 anos, dos quais 70 foram dedicados às lutas sociais. O advogado atuou, portanto, desde criança: aos 13 já estava atirando bolinhas de gude e pedras contra a prefeitura para que não fossem retiradas casas de sua comunidade, a Barroca. Presença marcante no fechamento de fábricas durante greves e em manifestações e resistências por moradias, Vicentão já apanhou e foi preso durante a ditadura militar. Foi durante a prisão que se formou advogado.

 

O hoje

Regras de convivência

Desde o início do ano, aproximadamente 70 famílias estão tentando fazer do prédio abandonado seu novo lar. O movimento é organizado e apoiado principalmente pelas organizações Brigadas Populares, Intersindical e Associação Morada de Minas. Os moradores se dividem entre mães solo e seus filhos; camelôs, ambulantes e caixeiros; além de dezenas de famílias e homens e mulheres desempregados. Em comum eles têm o fato de não possuírem casa própria e terem pouca ou nenhuma condição para pagar aluguel, mesmo na periferia da cidade. Essas pessoas também buscam ou possuem trabalho no centro da capital, portanto, viver na região central é questão de condição de vida básica.

O início foi duro. A situação de abandono do edifício gerou grandes danos às estruturas elétricas – a fiação cara, de cobre, foi sendo arrancada ao longo dos anos – e muito entulho acumulado. Pelo menos até agora, meados de janeiro, a maioria dos andares permanece inutilizável. As famílias se localizam hoje nos dois primeiros andares, onde instalações provisórias de água e luz foram ligadas.

Uma cozinha e uma creche comunitárias já foram organizadas. Aliás, comunidade é a palavra chave: para que a vida no prédio seja a melhor possível, como é de praxe em ocupações, os moradores foram divididos em comissões com tarefas específicas. Estrutura, limpeza, segurança, cozinha, creche. Quando não estão fazendo suas refeições ou nas duas assembleias diárias, o tempo é preenchido pelas atividades de cada comitê.

A ex-auxiliar de cozinha Regiane Rosa Sena, de 36 anos, coloca muitas esperanças no novo lar. Ela ficou sabendo da Vicentão por meio de uma comadre, que a convidou para reuniões no Barreiro. Mãe de cinco filhos e sem trabalhar desde o ano passado para cuidar de um dos filhos que adoeceu, Regiane cria todos sozinha. O pai das crianças morava perto de sua residência, mas não mantinha contato. Tampouco tem apoio da família. “O salário que a gente ganha ou a gente paga aluguel ou a gente cuida de filho, né? Os dois não dá para fazer.”, garante.

O espírito de comunidade da ocupação com certeza alivia a carga de trabalho. Por causa da creche e das comissões de atividades, várias mulheres ajudam no cuidado das crianças. “A gente aqui é que nem Bombril, né? Mil e uma utilidades.”, compara entre risos. Ela acredita que, agora, consegue voltar a trabalhar – morar na região central oferece mais oportunidades de trabalho, além de não gerar gastos com transporte.

Por enquanto, o local permanece em paz, tanto na relação com seus vizinhos quanto com as autoridades públicas. A Polícia Militar já os visitou e não encontrou nenhum problema. Servidores da prefeitura já compareceram ao local para inspecionar possíveis focos da dengue, que foram limpos.

Terraço que receberá a creche em breve

A vida está apenas começando na Vicentão. “Está todo mundo bem lá. O pessoal fala que está passando melhor do que estava em casa, gastando com aluguel ou morando de favor sem conseguir colocar comida na boca dos filhos.”, diz Isabella.

 

O centro como local acessível

A presença dessas famílias no centro de Belo Horizonte segue uma nova tendência organizada pelos movimentos sociais de luta por moradia: a reivindicação do centro como local de pertencimento das classes baixas. Até pouco tempo, todas as ocupações da capital e região metropolitana se erguiam nas periferias.

O cenário começou a mudar com a vinda da Ocupação Zezeu Abreu, em 2016, que se apropriou de um antigo imóvel do INSS na rua Caetés. Em seguida, em setembro de 2017, veio a Ocupação Carolina Maria de Jesus, organizada pelo MLB (Movimento de Luta dos Bairros), na avenida Afonso Pena, próxima à entrada da Savassi.

Essa movimentação em direção ao hipercentro não é coincidência: “O centro é onde se concentra a maior parte dos serviços urbanos, da creche, da escola, do emprego, e ele vem sendo obstruído para a classe trabalhadora, para os pobres, para os negros.”, analisa Isabela. Ela descreve que as ocupações sempre buscam locais que oferecem estrutura e condições adequadas para os ocupantes. Caso contrário, o movimento não faria sentido, pois a vida dessas pessoas não seria melhorada. “É para contestar um lugar dotado de infraestrutura, que tem rede de água e de esgoto, energia, internet, hospital, posto de saúde, parque, praça, rua, ônibus, tudo com um monte de prédio vazio e abandonado.”, diz Leonardo Péricles, militante do MLB que acompanha a ocupação Maria Carolina de Jesus.

Outras questões levantadas pelos movimentos sociais são a inexistência de AEIS (Áreas de Especial Interesse Social) na região central e o significado da função social da propriedade. Essas áreas são localidades que devem ser destinadas à população de baixa renda. A ocupação Carolina, por exemplo, deseja se tornar a primeira AEIS da região – entretanto, a situação atual é de provável despejo das famílias. Uma liminar de reintegração de posse foi emitida e a Polícia Militar já se reuniu com os moradores para anunciar sua retirada. O grupo e as autoridades não entraram em um acordo.

A atual Constituição Federal, de 1988, não prevê o direito absoluto à propriedade. Isso significa que não se pode simplesmente ter e abandonar esses espaços, eles devem servir a uma função social. “A moradia está muito acima de qualquer propriedade, é um direito fundamental.”, afirma Leonardo. Há uma discussão no Plano Diretor da cidade, avisa o militante, que prevê punição a quem abandona seus imóveis – discussão já avançada em grandes cidades do mundo.

A Vicentão, por exemplo, já existiu anteriormente. Em janeiro de 2017 as famílias ocupavam um prédio na área hospitalar, até que foram despejados em março daquele ano e remanejados para o bairro Granja de Freitas. “Era sem estrutura, insalubre, um galpão separado por tapumes, sem espaços comuns de convivência, além de ser em uma área totalmente periférica da cidade.”, descreve Tulio Freitas, também das Brigadas Populares, ressaltando que o fato de terem sido alojadas longe do centro da cidade dificultava ainda mais as chances dessas pessoas se inserirem no mercado de trabalho.

A situação dos camelôs também foi outro aspecto que influenciou na decisão da localização da ocupação. “Negar o centro a eles, colocá-los de forma periférica, sem acesso ao trabalho, em um momento em que a situação do país é de 54 milhões de desempregados…”, destaca Tulio.

Marcos Alexandre Cordeiro, o China, é trabalhador ambulante e presta apoio à ocupação, apesar de não viver lá – ele e a família moram de favor em um imóvel em Venda Nova, entretanto planejam se mudar para a ocupação.

A Vicentão foi vista pelos trabalhadores do hipercentro como uma oportunidade para sua própria sobrevivência, devido às recentes políticas de urbanização implementadas pela prefeitura que os têm tirado daquele ambiente. “Temos companheiros aqui que há três, quatro meses, não conseguem pagar seu aluguel. Alguns já foram despejados, outros estão nesse risco. Então, a gente viu aqui uma oportunidade de estar participando da ocupação como forma de sobrevivência mesmo.”, declara China.

 

Alguma conversa, pouca ação

Sobre a nova gestão da prefeitura de Belo Horizonte, os representantes de movimentos sociais entrevistados afirmam que há algum diálogo com as ocupações, uma melhoria considerável com relação ao último prefeito, mas que pouco ou nada foi feito efetivamente para que essas comunidades sejam regularizadas e inseridas na urbanização da cidade.

 

Um atrito entre os movimentos e a prefeitura ocorreu no final do ano passado, quando, a partir do entendimento do Projeto de Lei 413/2017 – que objetiva alterar a legislação em vigor para permitir que recursos que iriam para a habitação popular sejam utilizados também em empreendimentos do orçamento participativo e em outros investimentos públicos – o governo municipal fez a tentativa de redirecionar R$ 58 milhões previstos para moradias populares. Na época, vereadores da Gabinetona, coletivo de parlamentares de esquerda da Câmara Municipal, apresentaram suas críticas durante audiência pública da Comissão de Desenvolvimento Econômico, Transporte e Sistema Viário. Sobre a quantia, a gestão, através da assessoria de imprensa, garante: “a proposta para habitação que está em estudo no governo é consideravelmente superior ao R$ 58 milhões. Salientamos que essa proposta já foi apresentada ao Conselho Municipal de Habitação e em Audiência Pública na Câmara de Vereadores”.

 

“Tem a palavra do prefeito sobre o não despejo da [Ocupação] Isidora, mas nenhuma delas hoje tem qualquer tipo de segurança formal, alguma documentação que esteja para regularizar a situação”, conta Isabella. Quando questionada pela reportagem, a prefeitura afirmou que “além de aguardar a solução do litígio judicial, a PBH, por meio da Secretaria de Planejamento Urbano, está realizando um estudo detalhado sobre a área, incluindo a o projeto de uma nova operação urbana. Tudo isso é um caminho que tem que ser trilhado”.

 

O retrocesso, afirma a militante, também chega ao governo do estado: a Lei Estadual 22.606/2017 autoriza a venda de milhares de imóveis públicos que poderiam ser destinados às populações de baixa renda. “É uma tática do estado de antecipar a receita, ou seja, tem espaço do qual ele poderia dispor mas está tentando capitalizar com isso, privatizar isso ao invés de destinar para o povo”, diz.

 

A assessoria de imprensa da Prefeitura afirma que o órgão enxerga a ocorrência de ocupações em prédios na região central como um movimento natural que já vem sendo presenciado em outras capitais. Sobre políticas públicas voltadas para essa comunidades, a gestão afirma que tem o compromisso de buscar, juntamente ao Ministério das Cidades e órgãos financiadores (como o Banco Mundial), recursos para “desenvolver a Política Municipal de Habitação com mais efetividade, investindo na produção habitacional e nos assentamentos informais que são objeto de atenção do poder público”, afirma a nota. “É importante destacar, também, que já temos um compromisso firmado para a retomada de todas as obras do Orçamento Participativo e para a regularização de ocupações já consolidadas em BH, como a comunidade Dandara, ocupações da região do Barreiro, dentre outras”, conclui o órgão.