O dilema de Lula: condenação e impugnação
por João Gualberto
É inato ao sistema democrático o direito de qualquer cidadão a recorrer a todas as instâncias da Justiça no esforço de provar à sociedade que é inocente de crime que lhe é imputado em processo. Esse princípio está garantido no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal. E, conforme o inciso LVII do mesmo artigo, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”.
Em decisão recente, no entanto, entendeu-se (pela maioria do Supremo Tribunal Federal) que um cidadão condenado em segunda instância, por órgão judicial colegiado, pode ser privado de liberdade, ou seja, pode ser preso sem ter sido ainda condenado em definitivo. Essa é, há décadas, a realidade e a condição jurídica de centenas de milhares de detentos nas masmorras Brasil afora, e a Justiça, em sua esfera máxima, apenas veio ratificar tal circunstância.
Entendeu-se ainda que um cidadão sentenciado também em segunda instância é impedido de concorrer a cargo eletivo, como explicitado pelo item “d” do artigo 2ºda Lei Complementar 135, de abril de 2010, também conhecida como Lei da Ficha Limpa. Essa decisão, originária em caráter até mais severo da iniciativa popular, foi aprovada pelo Congresso Nacional e, ironicamente, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela alterou o inciso do parágrafo 3º, do artigo 14º da CF, que trata dos direitos políticos condicionantes da elegibilidade.
Assim, mexendo em garantias individuais constitucionais, promoveram-se essas duas importantes revisões legais visando, em ambos os casos, segundo discursos de sustentação, a redução da condição de impunidade perante a Justiça. E isso é exposto aqui sem qualquer juízo de valor.
Nossa Constituição cidadã anda sendo explicitamente afrontada nesta década, distorcida, ralada, esticada e dilapidada. E isso é exposto aqui com pleno juízo de valor, negativo e crítico. A CF é revista para que se redesenhe o arcabouço de direitos individuais e coletivos com o intuito final de se redefinirem os papéis e o limite do Estado. Mas o objetivo final desse movimento sutil, quase imperceptível, mas constante, estruturado e ultrapoderoso, não é outro que não a preservação de nossa estrutura social de distribuição patrimonial. Dinheiro, sempre dinheiro.
Pois a combalida Carta da redemocratização brasileira também estabelece, no inciso XXXVII do mesmo artigo 5º, que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
No caso da acusação de que Lula recebera a título de propina, da construtora OAS, um apartamento no Guarujá (SP), não há sequer uma análise juridicamente sustentada e minimamente consistente e convincente que referendasse a sentença do juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba. No veredicto de primeira instância, o ex-presidente foi condenado a nove anos e meio de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Do contrário, sobejaram as avaliações de que a condenação era um queijo suíço. Juristas, advogados e analistas, muitos deles sem qualquer histórico de simpatia ao réu ou ao PT, tecnicamente, apontaram os furos da sentença: sobraram suposições, faltaram provas. A condenação sustentada por indícios seria, em boa medida, a inversão dos princípios da presunção de inocência e da imputação do ônus da comprovação – especialmente quando sua sustentação se dá por delações, feitas por acusados privados de liberdade, cuja senha para obtenção de acordos junto à Lava Jato sempre foi, todos sabemos: começa com “L” e termina com “ula”.
Não obstante as críticas, os desembargadores de turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, reformaram a sentença de Moro em face ao recurso movido pela defesa do acusado. O relator João Gebran Neto, em seu voto, disse haver provas “acima do razoável” e, por goleada de 3 a 0, os magistrados ampliaram para 12 anos e um mês a pena de reclusão.
As condições de cidadão acusado e condenado por crime de corrupção e a de pré-candidato a presidente possivelmente impugnado confluem-se no mesmo personagem. Porém, conjugam-se num dilema estratégico que, a bem dele próprio e de seu grupo político, precisa ser encarado já. A sobreposição das duas situações sobre o mesmo par de ombros tende a ser nociva a todos.
O cidadão condenado
Como afirmado, Lula pode e irá recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), uma vez que se presume inocente e tem direito de buscar tal veredicto. A defesa já confirmou e, simultaneamente, ingressará com embargos no próprio TRF-4, questionando ritos e a dosimetria da pena. Para além, na fala do próprio ex-presidente e da cúpula petista, a causa será levada às últimas instâncias, custe quanto tempo (e investimento) custar.
Essa possibilidade é um privilégio para a grande maioria dos réus no Brasil, em termos de recursos. Mas uma figura desse calibre, que a maioria aponta como maior presidente da história do país, comparada a Getúlio e JK e não a seus contemporâneos, deve realmente trabalhar incansavelmente pela preservação de sua reputação. Lula já é um personagem com registro na história, que, entretanto, pode ser reescrita enquanto houver vida.
Não sabemos, hoje, quanto do espaço dos verbetes biográficos futuros será ocupado pela mancha da acusação e das condenações. Contê-la é uma tarefa que cabe sobretudo a ele, mas também a quem o cerca. Presidente por dois mandatos, nos quais grandes feitos políticos foram realizados e assim reconhecidos nacional e internacionalmente, compreende-se que quem deles participou também tem o papel de honrar esse legado, ora questionado e detratado.
Grandes personagens transbordam para muito além de suas individualidades. E aí reside o risco atual. Assim como é impossível prever a dimensão da mancha na biografia, como virá a ser recebida pela opinião pública a associação a um cidadão que, neste momento, está condenado a 12 anos de cadeia por corrupção? Não se insinua que Lula mereça ser abandonado por quem é amigo, aliado ou ao menos confia na versão dele. Ninguém merece esse tipo de abandono. O que se questiona é como será avaliada, eleitoralmente, sua influência, a presença dele no palanque, na foto, no programa gratuito de TV.
O pré-candidato impugnado
Muito se disse, inclusive a ex-presidente Dilma Rousseff, que Lula será o protagonista da eleição presidencial deste ano, seja candidato ou não. Há dúvidas. Janeiro sequer acabou, ainda temos Carnaval, Semana Santa e Copa do Mundo para, só então, se desenhar o páreo presidencial de fato. Nossa memória, que já é curta por genética, bombardeada por informações como tem sido, em nove meses muitos fatos podem nascer.
Lula não está automaticamente inelegível. Não funciona assim. Se registrar candidatura a presidente, dentro do prazo e dos requisitos certos, seria necessária uma petição de alguém, uma representação de um adversário ou do Ministério Público provocando a apreciação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Seguindo o script estruturado que passou pelo impeachment, pelas reformas, pelo programa de privatizações e pela condenação do líder petista, um deferimento de candidatura pela Corte Eleitoral seria o movimento mais simples e bem amparado.
Ao cabo, o PT e sua futura coligação ainda poderiam buscar um deferimento liminar (monocrático) para manter de pé a pretensão de voltar ao Planalto com o ex-presidente. Digamos que consiga, mas como essa candidatura sub judice – ainda que se mantiver poderosa na preferência das intenções de voto – poderá ser encarada em sua fragilidade?
A partir de agora começará a ser explorada, seja de forma clara ou subliminar, a campanha de esvaziamento do esforço de Lula em se preservar inocente e candidato. Não basta enforcar o réu condenado. Há que se esquartejar o cadáver, derrubar a casa, salgar o terreno e amaldiçoar os descendentes. O objetivo era embargar a candidatura, o que parece ser favas contadas agora. Mas ainda há que se anular o poder de cabo eleitoral. E assim será feito.
Na Justiça
A estratégia de Lula é clara. Pode-se acusá-lo de muita coisa, menos de carência de tutano. Sabe há muito tempo que não permitirão a candidatura, capítulo que é dos mais relevantes no roteiro do golpe. O que ele pretende é estender seu processo de martírio até o mais próximo possível do período eleitoral e, sendo então impugnado, transferir a um candidato aliado e ungido toda a comoção nacional que agregar em torno de si naquele momento, em nome da injustiça particular de que é vítima e da injustiça social que passou a vitimizar o país.
Como deter esse discurso e essa tática. Uma reação radical é a prisão, que pode acontecer a qualquer hora. Renderia a imagem-símbolo a ser emoldurada para enfeitar a sala de estar de (quase) a metade das casas brasileiras. Homem encarcerado não faz campanha. Porém, difícil imaginar que não obteria habeas corpus para aguardar o julgamento, pelo menos do STJ, em liberdade. De toda forma, estará registrado o signo de redenção para as almas sedentas de probidade na política, mas iludidas pelo direcionamento narrativo. Uma imagem que ganhará todos os cantos e gretas do país e todos os dias será estampada nos materiais de campanha eleitoral.
O TRF-4 foi célere na tramitação do caso até a liberação para julgamento. Assim, preservou-se longo o período entre a condenação em segunda instância, que condiciona a inelegibilidade, e a corrida presidencial. O STJ, ao contrário, não tem razão para correr, isso se tiver alguma intenção política em desfavor de Lula. Alguém duvida? Administrando o tempo, a Corte determinará que o réu aporte condenado e inelegível ao período das convenções e da definição de chapas para, dessa forma, ser escanteado politicamente.
Na opinião pública
Contudo, o antídoto mais eficaz contra o petista será o narrativo. O discurso midiático hegemônico buscará desconstruir suas pretensões de candura. Primeiro, por associar seu esforço a uma campanha irresponsável em que vise manipular as instituições políticas e judiciais do país em benefício próprio. Leia-se: sua corrida seria unicamente por foro privilegiado, para livrar-se das condenações e se preservar impune. O tratamento autointeressado do foro já foi mobilizado por figuras de todos os partidos no passado, mas para ele não pode, vide o caso do embargo à sua nomeação como ministro da Casa Civil por Dilma, no começo de 2016. Esse será o tom alarmista, e ele cola.
Outra abordagem será a da indefinição institucional que poderá advir de uma candidatura forte, embora sub judice. Esse argumento tende a sustentar, inclusive, o indeferimento de chapa ou mesmo de pedido de liminar na Justiça Eleitoral. Se um candidato liderar pesquisas, sobressair-se em debates, vencer eleições e, por fim, acabar cassado, será uma bagunça nacional. A instabilidade eleitoral impactaria todo o Judiciário, a política e, claro, o hipersensível mercado. Derrubar uma presidente eleita, sob a qual não pesa qualquer acusação de crime, sob o fragilíssimo pretexto de manobra no orçamento, isso não representa risco de instabilidade institucional? Mas para Lula não se pode abrir tal quadro de risco. Esse será o tom do terrorismo, e ele cola.
Se preso, ainda que livre, mas condenado, inviabilizado como candidato e neutralizado como cabo eleitoral relevante, Lula será motivo de deboche ao defender publicamente sua inocência perante muita gente, diretamente ou pela mídia. Carta fora do baralho, tarde demais. Esse será o tom do escárnio, e ele é o tom da vitória.
Conclusão
À parte um contingente liberal e de maior grau de instrução, qual é o grosso do eleitorado de Lula? Por que meio ele se informa? Que tipo de filtro de informação chega até ele pela TV e pelo smartphone?
Acredito, em face das referências de posição social e de hábitos de consumo, que a narrativa hegemônica de esvaziamento de Lula terá êxito e que ele tenderá a ser abandonado pela maioria do próprio eleitorado.
O dilema, portanto é: até que ponto será “lucrativo” sua unção a um indicado. Hoje, antes de judicialmente preso e condenado com trânsito em julgado, antes de midiaticamente defenestrado e ridicularizado, sua influência é grande e proveitosa para o candidato que vier a ter seu apoio. Mas, e em agosto ou setembro, após um semestre de prováveis ataques pessoais massificados, esse peso continuará positivo?
Não é necessário que Lula seja preso e condenado. Esse é o meio para o fim que se almeja, seu sepultamento político. E esse cenário tem enormes chances de se verificar em 2018. A única chance (mínima) de ele ser inocentado dos crimes de que é acusado é preservar-se fora dos palanques, dos holofotes e mesmo de qualquer articulação. A mesma sentença de ostracismo imposta a Juscelino até seu “acidente” fatal, num Opala, em 1976. Outra vez, desde que chegou em São Paulo num pau de arara, o ex-metalúrgico tem como denominador comum de seus revezes pessoais a mania topetuda de se meter onde não é bem-vindo.
E a coalizão do golpe terá vencido outra vez, nesta que é a maior reação da direita conservadora-aristocrata de nossa história recente. E a morte da jararaca política é um capítulo essencial. Ou foge pro mato, ou é pau nela.
Política
João Gualberto
Jornalista, economista e cientista político