O monstro que engoliu Lula

A lição que fica do julgamento em segunda instância


por José Antônio Bicalho

Foto: Ricardo Stuckert

O que fica de mais importante do julgamento político que manteve, em segunda instância, a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (sem prova de posse do apartamento no Guarujá) é que não há, no Brasil, tolerância para com as esquerdas. E que as esquerdas, se quiserem recompor-se como alternativa viável para as eleições deste e dos próximos anos, terão que se comportar de fato como esquerdas, e apoiarem-se apenas nas forças políticas progressistas, republicanas e democráticas.

O julgamento foi político e seu objetivo, sabemos todos, foi o de tirar Lula, líder nas pesquisas, da corrida presidencial deste ano. Trata-se da consecução do golpe iniciado com a derrubada da presidenta eleita Dilma Rousseff. E esses dois atos do golpe guardam a mesma natureza: interromper e desmontar a experiência, inédita nos 500 anos de história do Brasil, de distribuição de renda, integração dos despossuídos ao tecido social, soerguimento das classes mais baixas e democratização do acesso da população aos serviços essenciais, em especial a educação superior.

Não, meus caros. As elites do Brasil não aceitam que pobres entrem na sua festa. E é por isso que urdiram o golpe, concluído no campo político com a manutenção da condenação de Lula, e que Temer tentará terminar, nos campos econômico e institucional, até o final de seu mandato, com o programa ‘Ponte para o Futuro’ e as reformas em andamento nele previstas. O que derrubou Dilma e tirou Lula da corrida presidencial (e que muito provavelmente o levará para atrás das grades) foi o conluio das elites conservadoras e de seus representantes no Congresso e na Justiça contra a ameaça progressista dos últimos governos, apoiados por setores da classe média que nunca aceitaram um presidente operário e que não suportam a ideia da perda de privilégios.

Lula e Dilma erraram enormemente ao apostarem na possibilidade de aliança com o grande capital, com as elites e com correntes políticas conservadoras e fisiológicas. De nada adiantou a Carta aos brasileiros, divulgada pouco antes da primeira eleição de Lula, na qual o candidato prometia, nas entrelinhas, a manutenção da política econômica neoliberal de seu antecessor Fernando Henrique Cardoso, o que foi posto em prática por Antônio Pallocci, seu primeiro ministro da Fazenda. De nada adiantou a guinada à direita no segundo governo Dilma, com a troca do ministro Guido Mantega por Joaquim Levy, também na Fazenda. Mesmo com o conservadorismo na política econômica, mesmo com o imobilismo nas reformas estruturais, mesmo que os governos Lula e Dilma não possam ser, de maneira alguma, qualificados de socialistas ou socializantes, somente a aplicação de políticas distributivas acabou na condenação criminal do primeiro, e no impeachment da segunda.

Dessa forma, o que fica de mais importante da condenação de Lula é que não se pode confiar, de maneira alguma, na direita, nas elites, nos conservadores e nos fisiológicos. Concessões são da natureza da política, mas não a transfiguração, não a negação de princípios, não a internalização daquilo que sempre se combateu.

Quando digo isto, estou falando das práticas escusas de barganha com os partidos e os congressistas, mas principalmente da política econômica e da implementação das reformas estruturais. Lula e Dilma receberam um país imbricado com ordenamentos estruturais conservadores e elitistas, e dessa mesma forma entregaram o país. Implementaram uma série de políticas distributivas da renda e democratizadora do acesso a serviços essenciais, mas não mexeram nas macroestruturas – não descartelizaram a economia, não promoveram a reforma política, não democratizaram a comunicação, não mexeram na estrutura tributária, não radicalizaram na reforma agrária, não intervieram no direito de posse de propriedades urbanas, não entraram na questão do direito de herança.

Não, meus caros, não estou negando os avanços dos últimos anos, principalmente na área social, na distribuição de renda e na criação de uma estrutura nunca vista de defesa de direitos das minorias. O que digo é que não existe governo de esquerda sem que se coloque em prática princípios de esquerda em campos fundamentais. Não basta subir do pedestal do Bolsa Família, do Minha Casa, Minha Vida, do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, do Luz para Todos, do Educação de Jovens e Adultos e do Universidade para Todos – ProUni, para bater no peito e dizer orgulhosamente que se faz um governo de esquerda. Sim, são todos programas sociais importantíssimos, agora desmontados por Temer. O que digo é que, para se fazer um governo de esquerda é preciso também, e principalmente, reformar a macroestrutura política, combater privilégios, promover a distribuição de renda de maneira estrutural, intervir no direito de propriedade e modificar a regulamentação de uma série de setores econômicos, entre eles a comunicação.

Portanto, o que fica de mais importante da condenação de Lula é que a elite conservadora e seus representantes no Congresso e na Justiça não aceitam nem mesmo o arremedo de esquerda que foram os governos Lula e Dilma. Mais cedo ou mais tarde, eles cassam e condenam de maneira implacável, e voltam tudo para o que sempre foi. Não fosse político o objetivo da condenação de Lula, não fosse seu julgamento iminentemente político, Fernando Henrique Cardoso também já teria sido, a muito, investigado, julgado e condenado pela posse do luxuoso apartamento na Avenue Foch, o endereço mais chique e caro de Paris, e pelo maior escândalo de corrupção já acontecido na história do país, das contas CC5 do Banestado, pelas quais foram enviados para o exterior os bilhões de propina pagas durante o programa de privatizações do governo tucano.

Sim, meus caros, o Brasil é um país de dois pesos e duas medidas. Para o Banestado, também investigado pelo juiz Sérgio Moro, não houve resultado ou condenação. FHC pode desfrutar de sua confortável fazenda em Buritis e do luxuoso apartamento de Paris. Para Lula, a condenação, sem provas, por um pequeno apartamento na decadente Guarujá, e mais processo pelo sítio dos pedalinhos.

Que fique a lição: governo de esquerda só deve negociar e fazer concessões junto às forças progressistas, republicanas e democráticas, seja no Congresso, junto aos partidos e à sociedade civil organizada. Não se dorme com o inimigo, nem se negocia princípios. Não se cria um monstro que pode te engolir.