A ONG que empodera transexuais

Transvest oferece cursos gratuitos de pré-vestibular e supletivo para população travesti e transexual de BH. Apesar das dificuldades financeiras, projeto se mantem ativo e quer se expandir.


Por Paulo Roberto Netto

“Você já imaginou se fosse como eu?”, questiona Paulo Santos, 27, sentado em uma almofada da sala 1143 do edifício Arcangelo Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Paulo se define como um “homem trans, direto e franco”. São quase sete da noite e os resquícios da última aula de biologia ainda estão no quadro branco enquanto ele explica como é ser transexual na capital mineira.

“Nós temos uma liberdade enorme, mas moramos numa prisão criada por pessoas que subjugam sem saber o que somos, o que fazemos e o que buscamos para nossas vidas”, diz. Paulo é um dos mais de cem alunos matriculados no Transvest – ONG que oferece cursos supletivo, pré-vestibular e de línguas estrangeiras a travestis e transexuais de Belo Horizonte. O espaço, no entanto, não se assemelha à rigidez das salas de aula tradicionais. Nas paredes, grafites e pinturas tornam o ambiente menos austero. “Aqui somos uma família”, explica Paulo.

Criado há dois anos, o projeto reúne diariamente alunos e alunas que carregam histórias de dificuldades nas ruas da capital, nos pontos de prostituição (uma das únicas alternativas de trabalho para travestis) ou nas clínicas de dependência, como no caso de Paulo, que se juntou ao Transvest em março deste ano.

Aos dez anos, ele chegou à Belo Horizonte com a mãe, que passava por problemas de saúde. O fim da infância e o início da adolescência na capital mineira foram marcados por grandes felicidades, conta Paulo, e algumas turbulências. “Eu sempre fui muito contra as regras da sociedade, e aprontei muito por causa dessa atitude”.

Na última década, Paulo se envolveu com drogas, passou por clínicas de reabilitação e tratamento psiquiátrico. Nesse período, também teve um filho. “Tive oportunidades de crescimento, mas tive que me submeter a ser alguém que não era para a sociedade me aceitar”, conta o rapaz. “Isso foi um dos fatores que mexeu comigo”.

Em crise, o jovem cogitou sair de casa. “Só queria fugir daqui e ir para bem longe. Deixei um bilhete para minha mãe debaixo do portão. Disse que ia embora, mas voltaria para dar um abraço nela e no meu filho”. O plano não se concretizou: naquele mesmo dia, Paulo conheceu o Transvest.

“As pessoas não toleram mulher de pau e homem de boceta”

Em um restaurante no segundo andar do Maletta, o professor de literatura Eduardo “Dudu” Salabert encontra alguns minutos de folga entre uma aula e outra para falar sobre o Transvest. Segundo ele, histórias como a de Paulo motivaram a criação da ONG.

“O triste é que os alunos não chegam aqui desumanizados. A maioria apresenta perfil depressivo, suicida, e têm vergonha de sua identidade de gênero”, diz. “Em uma sociedade em que as pessoas não toleram mulher de pau e homem de boceta, nós temos um trabalho importante de humanização”.

Salabert atua há mais de uma década em um dos colégios particulares mais prestigiados de Belo Horizonte, onde tem a responsabilidade de fazer entrar os filhos bem nascidos nas melhores universidades. O Transvest foi, segundo ele, uma via de “democratizar” a prática pedagógica. “A educação é a melhor forma de transformar a sociedade, mas eu mesmo não estava transformando nada, apenas fazia a manutenção do status quo”, conta Salabert. “Sentia necessidade de democratizar minha prática pedagógica e levá-la a grupos menos favorecidos”.

A prática se mostrou mais dura que o esperado. Não bastava apenas criar o projeto e alugar uma sala no Maletta. Era preciso aproximar o Tranvest do público travesti e transexual de Belo Horizonte, cujos traumas acabavam por afastá-los do ambiente escolar. Por isso, as paredes foram pintadas e a sala de aula ganhou almofadas e poltronas. Também foi necessário suprir as dificuldades de transporte e alimentação dos alunos e garantir acompanhamento pedagógico. Quase sem apoio financeiro (apenas uma ajuda de manutenção do governo estadual), o Transvest vive dias difíceis.

“O Alexandre Kalil nos procurou no ano passado para conhecer o Transvest, mas estava em campanha, faltando semanas para a eleição. Outros deputados também nos procuraram. Não aceitamos. Pedimos que eles nos procurassem depois da campanha”, conta Salabert. “Somos uma ONG, buscamos parcerias, mas não queremos ser trampolim político para ninguém”.

As parcerias são poucas. O Governo de Minas fornece lanche diário aos alunos e o Instituto de Cidadania dos Empregados do BDMG (Indec) colabora com uma ajuda fixa mensal. Mesmo assim, as contas não fecham e o Transvest chega ao fim de cada mês com um déficit de R$ 3 mil, coberto pelos professores voluntários.

Apesar do vermelho, o projeto busca ampliar sua atuação. No início deste ano, foi realizada a segunda edição de arrecadação online para obter R$ 50 mil, que seriam destinados à construção de um abrigo para travestis e transexuais que vivem nas ruas. “Queremos abrir um espaço pedagógico que tenha espaço para uma renda alternativa, como bar, restaurante ou ateliê, para que o valor se transforme em renda complementar para quem trabalha ou quer deixar de trabalhar na prostituição”, explica Salabert.

Ao todo, R$ 6,8 mil foram arrecadados – pouco mais de 10% da meta – e o montante será investido para garantir que o abrigo saia do papel, afirma Salabert. Questionado se o projeto não pesa no próprio bolso, ele não hesita. “Eu tenho o privilégio de ser respeitado como uma pessoa cisgênero, de estar no campo da masculinidade, e tenho um salário privilegiado em relação aos outros professores. O que você faz com o seu privilégio? Eu pego o meu para injetar nesse projeto”.

“É muito leão que a gente tem que matar, mas a gente mata”

Luta e resistência são duas palavras gravadas na trajetória de Josiane Ribeiro, 21. Mulher trans, negra e da periferia, Josiane nasceu em Vespasiano, na Grande Belo Horizonte, e em 2010 se mudou com a mãe para o distrito de Milho Verde, em Conceição do Mato Dentro. O interior a faria virar homem, acreditava a mãe.

“Eu tinha 14 anos e tem hora que não dá para lutar. Você pega a primeira calça, corta, faz um short e vai para a rua”, conta Josiane. A transição coincidiu com o início do ensino médio. “Uma vez falei: ‘hoje eu vou de mulher, e vou me portar como tal’. Na fila da merenda, um menino colocou o pé na minha frente e eu caí em cima do prato enquanto eles gritavam ‘Vira homem’”, lembra.

A discriminação também era institucionalizada. A direção da escola não a deixava utilizar o banheiro feminino e Josiane não se sentia confortável com o masculino. “Ou eu entrava no banheiro quando não havia ninguém no pátio ou não ia, e só usava quando chegasse em casa, quase cinco horas depois”, conta. “No interior, eles não respeitam a sua identidade. Você tem que ser o que eles querem”.

Decidida a deixar Milho Verde para trás, Josiane se mudou para Belo Horizonte em 2014 e desde então enfrenta o preconceito no mercado de trabalho. “Passei em uma entrevista de emprego, mas a moça não me contratou. Ela disse: ‘Você não é homem nem mulher’”. “Em outra, a mulher fez assim com o dedo e não me contratou. Ela sequer sabia que eu era mulher trans”. O gesto foi apontar para o braço negro e tatuado de Josiane.

“Além de ser trans, eu sou negra, tatuada e da periferia. É muito leão que a gente tem que matar por dia, mas a gente mata”.

Com o sonho da estabilidade financeira, Josiane se dedica aos estudos e é assídua no Transvest. Ingressou no ano passado para o pré-vestibular e se considera integrante da família. “Enquanto todo mundo lá fora aponta nossos defeitos, o Transvest aponta nossas qualidades e nos dá a arma para lutar: a educação”.

Ano passado, Josiane foi aprovada para o curso de Turismo na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), mas perdeu o prazo de matrícula. Este ano, ainda não se decidiu qual curso vai buscar com o Enem: pensa em Ciências Biológicas, Física e até Jornalismo. “Quero dar um tiro certeiro”.

Sobre o que espera do futuro, responde que não pensa muito à frente. “São tantos sonhos, tanta coisa que quero alcançar”, conta. “Mas espero que homens e mulheres trans sejam vistos como homens e mulheres. Afinal, o que vale é o que está na minha cabeça e não no meio das pernas”.