Os Carolinos Centenários

Irmandade Os Carolinos, entre as três mais antigas de reinado e congado de BH, abre exposição e realiza cortejo no Centro da cidade, neste sábado (09/12), para comemorar seus cem anos


por Lucas Simões

Fotos: Patrick Arley

A data ninguém esquece: outubro de 1917. Na ainda região rural de Contagem, quase divisa com Esmeraldas, zona metropolitana da Capital, nascia a Irmandade Os Carolinos, atualmente a terceira mais antigas celebração de congado e reinado de Belo Horizonte. Criada pelo descendente de escravos Francisco Carolino, o famoso Chico Calu, Os Carolinos acabaram se firmando no bairro Aparecida. Neste sábado (09/12), comemoram o centenário com cortejo, no Centro de BH, e a abertura da exposição “Reinado de Chico Calu”, no Museu Inimá de Paula, também no Centro, com um apanhado de objetos e fotografias que remontam à sua história de resistência e devoção.

Os descendentes de Chico Calu preservam a tradição afro-mineira de homenagear Nossa Senhora do Rosário, além de venerar os demais santos do panteão congadeiro. E, hoje, lutam para ter a irmandade reconhecida como Patrimônio Imaterial de Belo Horizonte.

Nas memórias de Nilson Pereira da Silva, atual Capitão-mor da irmandade, ainda estão as ruas sem asfalto do bairro Aparecida da primeira metade do século passado. “O filho do Chico Calu, o Luiz Carolino, foi quem trouxe a guarda para o bairro Aparecida. Naquela época, uns vinte anos depois da fundação em Contagem, as pessoas foram para lá. A avenida Américo Vespúcio era um rio. Ainda era uma região rural, de bichos e natureza. Depois, foi virando cidade”, diz Nilson. Hoje, a batalha da comunidade é pela despoluição de um rio que corta suas terras.

Ao longo dos anos, a Irmandade Os Carolinos se dedica a uma cultura de devoção que vai além das festas coloridas, preenchidas por tambores bem marcados e estandartes vistosos. Para além das festividades, o ano inteiro dos Carolinos é marcado por afazeres, preparativos e rituais. “Nós cumprimos um calendário anual. A maioria das pessoas vê as festas, mas não os preparativos, as devoções e tudo mais”, diz Nilson.

Parte desta história vem contada na coletânea de 30 fotografias assinadas por Netum Lima e pelo antropólogo Patrick Arley, que acompanha há cinco anos a Irmandade. Todas as fotografias foram imprensas em tecido, em formatos e tamanhos similares aos dos grandes estandartes carregados pela Irmandade nas festas, mas sem a intenção de “exotizar” a manifestação cultural.

“Foi um trabalho coletivo. A ideia era que as fotos tivessem similaridade com os estandartes. E todos eles passaram por intervenções de artistas plásticos e das próprias pessoas da guarda. Além disso, são fotos que não trazem essa coisa exotizante, folclorizada sobre uma cultura. É uma estética própria de cultura afro-brasileira”, diz Patrick.

Além das fotografias, vários objetos da Irmandade estarão expostos, como roupas, acessórios e altares religiosos. Antes da abertura da exposição, às 9h deste sábado, a Irmandade Os Carolinos realiza um cortejo inédito no centro da cidade, saindo da Igreja São José até o Museu Inimá de Paula, na rua da Bahia.

“Em geral, a gente vê muitas manifestações de guarda e congado nos bairros periféricos e (nos municípios da) Grande BH. Mas são manifestações negras invisibilizadas. Você não vê isso no centro da cidade. A história oficial de Belo Horizonte é de uma cidade branca, fazendo 120 anos agora de um projeto modernista não inclusivo. Um cortejo desses, no centro, dá outra visibilidade”, diz Patrick.

A exposição Reinado de Chico Calu – Repertórios Sagrados da Irmandade Os Carolinos” fica aberta até o dia 28 de janeiro, no Museu Inimá de Paula (rua da Bahia, 1201, centro), com entrada gratuita.

 

Texto de Pedro Kalil para a exposição e publicado exclusivamente por O Beltrano:

1.

O que as imagens querem não é o mesmo que a mensagem que elas comunicam ou o efeito que produzem, não é sequer o mesmo que elas dizem querer. Como as pessoas, as imagens podem não saber o que querem, devem ser ajudadas a lembrá-lo através do diálogo com outros. – W. J. T. Mitchell

Muitas vezes diante de imagens nos perguntamos o que elas querem nos dizer ou mesmo nos interrogamos da intenção daquele fotógrafo, pintor, escultor. Outras vezes nos aplicamos a entender uma espécie de “mensagem” que poderia estar cifrada ou não, como se estivéssemos nos comportando como detetives em buscas de signos ou índices de outras coisas. Algumas vezes justificamos as imagens através daquilo que elas nos fazem sentir, atribuindo a elas uma espécie de sentimento que seria despertado através de nosso olhar, sendo a gama possível bastante ampla: da tristeza à felicidade, da esperança à desolação. De vez em quando buscamos justificá-las pelos seus aspectos mais puros como a luz, as cores, os contrastes e ângulos. Enfim, sentimos certa necessidade de compreender racionalmente essas imagens, mesmo quando dizemos simplesmente dos nossos sentimentos, e sempre através de nosso olhar, como quem busca fugir do medo diante da Medusa.

Não que as imagens nos petrifiquem ou que tenhamos que olhar de soslaio ou em um reflexo para que elas não nos ataque, ou, ainda, que tenhamos que nos colocar numa posição de dissintonia para que seja possível uma relação outra diante das imagens. Mitchell destaca duas posições possíveis para a relação com a imagem: o outro e a memória. Nesse sentido, o que ele pretende alocar nas imagens é uma espécie de vida mesma, que podemos dialogar e que é possível ativar uma espécie memorial que faça com que as imagens nos digam aquilo que poderia estar esquecidas até para elas mesmas.

Aqui estão apresentadas as fotografias que Patrick Arley realizou durante festa-grande da Guarda de Moçambique e Congo Nossa Senhora do Rosário Sagrado Coração de Jesus – Irmandade Os Carolinos. Diante delas, antes de pensar no que representam ou o que querem representar, pois, nos coloco a questão: como conversar com elas? O que essas imagens querem se lembrar?

2.

O léxico e as expressões que Júlia Moysés escolhe para o texto que abre a edição da Revista Marimbondo sobre a Irmandade Os Carolinos nos ajuda a conversar: limite; fato e recriação; memória; lacunas; espaços vazios; desenrolar dos descendentes; história e identidades construídas e desconstruídas; múltiplas vozes; relembramentos que se complementam; harmonia e contradição; narrativa polifônica. Não são palavras escolhidas ao acaso e que um olhar atento nos sugere que algo não é, de forma alguma, disruptivo, mas legado, transportado e repassado. Não se trata de uma herança no sentido estrito do termo, mas de viver essa herança não como algo do outro que chegou até a mim, mas como algo que é, também, meu. O movimento nunca parece ser reto, linear; antes, é um movimento que vai e volta, continuamente, que aponta, ao mesmo tempo, para direções múltiplas e por vezes opostas. Nesse sentido, a própria noção do limite é outra: é um limite que é marcado, justamente, quando ele deixa de se circunscrever.

Se os movimentos da Irmandade Os Carolinos nos indicam linhas de temporalidades que se direcionam para vários pontos ao mesmo tempo, nas fotos de Patrick Arley temos não um centramento em um objeto representado, mas um deslocamento que varia entre a moldura e seu excesso, como quem, constantemente, desafia o lugar seguro de uma linha de fuga. As imagens em conjunto apresentam não só o “olhar pela janela” tão próprio da arte ocidental, como argumenta Hans Belting, mas deslocam o olhar para o que não está no centro da imagem e, também, para aquilo que transcende a ela: a cidade como fundo se colocando em contraste aos mastros; os planos distintos da terra, dos Carolinos e o pássaro no céu; o movimento em contrafluxo das crianças em roda e as fitas que enfeitam a festa; e assim por diante. Nesse sentido, podemos dizer que as imagens querem que se construa uma memória que não é particular, própria, neoliberal, mas de um conjunto de pessoas, lugares, movimentos e olhares.

3.

Se chamo atenção para as imagens fotográficas de Patrick Arley, não é esquecendo dos outros objetos que compõe a exposição: altares, andores, mastros, bandeiras, instrumentos, cruzeiro e plantas que criam uma reprodução do terreiro da Irmandade Os Carolinos. Um conjunto de objetos que criam uma imagem daquilo que é sagrado e que se comunica com o espaço em que se retomam a religiosidade e sua celebração.

Esse conjunto de objetos, de alguma forma, determinam o tipo de movimento explorado acima. No livro Percursos do Sagrado, são os as pessoas das Irmandades do Rosário de Belo Horizonte e entorno que constroem as descrições de seus próprios grupos e suas imagens. Assim, o objetivo desse livro “foi de alinhavar, através da poética, do emaranhado de cores, dos depoimentos e narrativas de majestades e capitães, dos dizeres de cozinheiras e dançantes, dos saberes e dos cantares, das lembranças e das lacunas do esquecimento, um mapa afetivo e territorial dos percursos sagrados desenhados pelos gestos rituais e pela memória”. Abaixo, destaco alguns que são sugestivos para o que estamos tentando elaborar.

Sobre a bandeira mastro, nos fala Geraldo Antônio da Silva, da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário do Bairro Alto dos Pinheiros: “o levantamento de bandeira é a ligação da terra com os céus”. Neide Assis, da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário e Sagrado Coração de Jesus – Irmandade Os Carolinos, fala sobre os capitães: “sou bisneta de Chico Kalu. Eu comecei desde pequenininha, aí na época nossa guarda tinha o reco-reco. Com sete anos eu fui coroada, eu fui bandeirada, com o tempo eu já saí, fui rainha do povo, devido ao meu avô ter morrido, a minha tia me confirmou como capitã. Capitã e quebra-galho de outras coisas”. A respeito da gunga, Elizângela Aparecida Santana, da Guarda de Moçambique de Nossa Senhora do Rosário do Bairro Alto dos Pinheiros afirma: “Você não bate a gunga de qualquer forma. Ela tem um momento certo, tem que ser em sintonia. O capitão, quando vai começar, ele acabou de se fardar, ele chama a sua ancestralidade batendo a gunga”.

Percebe-se por essas poucas falas que colhemos os movimentos duplicados e múltiplos que se entrelaçam nas narrativas dos congados e dos congadeiros, nas fotografias de Patrick e nos próprios objetos que são colocados à vista na exposição. Ancestralidade, ligação do céu com a terra, e movimento são partes integrantes de toda a imagética que envolve o congado. Chris Marker e Alan Resnais, em filme sobre o Museu do Homem, em Paris, diz sobre os objetos africanos ali expostos: “Um objeto está morto quando o olhar vivo que se colocava sobre ele desapareceu”. Talvez, o que esse conjunto de imagens e objetos-imagens da exposição sobre Os Carolinos, queiram de nós é que eles sejam vistos, já que são vida e retorno, presença e passado e, portanto, futuro.

4.

Existem duas entradas para a sede da Guarda de Moçambique e Congo Nossa Senhora do Rosário Sagrado Coração de Jesus – Irmandade Os Carolinos: uma pela rua Amiro Rodrigues Campos e outra, através de uma escada, que sai na rua Mariana Barcelos, ambas consideradas “sem saída”. Indo pela rua Amiro Rodrigues Campos, antes de chegar no terreiro central recém-reformado, se contorna um córrego não canalizado. No dia da festa é ali que se fincam os mastros com suas bandeiras. É possível entrar e sair de forma circular, ou, dizendo de outra forma, é possível entrar por um caminho e sair pelo outro e vice-versa, ou, ainda, é possível dar a volta fazendo um movimento circular.

Esse movimento circular que pode ser realizado onde a própria sede está encravada nos remete já ao próprio movimento dos corpos congadeiros quando em festa. O ato de rodar, de ir e vir, não é aleatório e muito menos não predicado. Entretanto aqui estamos diante de um outro tipo de memória a ser despertada, uma memória inscrita no corpo, muito mais do que no papel. É algo que Daiana Taylor vai distinguir: o arquivo e o repertório. Enquanto aquele é o que se tomou como a memória ocidental, tida por estável (museus, livros, monumentos), a outra foi tida como diminuta, já que inconfiável e instável. Esse repertório parece ser a memória primordial dos congadeiros, que passam sua história através principalmente da oralidade, mas que também vai sendo talhada nos corpos enquanto dançam, cantam, rezam, e tocam seus instrumentos, passando de geração a geração.

É assim que Leda Maria Martins vai pensar a respeito de uma outra construção temporal, que não é teleológica ou linear, mas espiralar. A espiral, ao mesmo tempo que aponta o movimento de ida para um centro, indica também esse movimento de saída. Não é uma ilusão de ótica, mas de um movimento que só se faz completo quando é duplo. Se é possível rodar em volta da sede da Irmandade Os Carolinos, nos parece sugestivo o movimento que o próprio congado entrega em sua postura corporal, em suas histórias, em suas performances e imagens. Se o repertório é tido como instável o movimento de lembrar e esquecer não se dá de forma uniformizada, como em substituição, mas nos indica que “assim como não há uma reminiscência total, absoluta e eterna, o esquecimento também é da ordem da incompletude”.

5.

“Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se detentor”

Talvez só haja imagem a pensar radicalmente para além do princípio de imitação. – Didi-Huberman.

Quando digo que o congado e suas imagens são passadas de geração a geração, de uma forma não estável a partir de um repertório, não estamos dizendo que a geração subsequente seja uma geração da pura cópia, da mimeses enquanto imitatio. Em um processo que não é da ordem da dialética, mas das linhas plurais, a instabilidade se revela em um processo que é retomada e criação, ou recriação, não de reprodução. Diferente da tradição ocidental católica de reprodução de rituais que são passíveis de uma repetição intermitente, a retomada da ancestralidade congadeira não pode ser encaixada numa simples tradição europeia e por isso é necessário perceber a fenda aberta no olhar que as imagens aqui constroem.

Tanto nos objetos do congado, quanto nas imagens de Patrick Arley, não temos simplesmente um processo de registro e reprodução, está além da reprodutibilidade técnica. Os olhares nas fotografias, por exemplo, direcionam o olhar para a lente ao mesmo tempo em que se desviam, olham de esguelha, como uma outra mirada estrábica, olhando o presente e o passado, o Brasil e a África, os ritos africanos e os santos católicos, a festa e o louvor, a presença e a ausência, a memória e o esquecimento. Nesse sentido, a partir do olhar que estão presentes nas fotos e nos objetos da exposição, é possível subsumir a mirada que jogamos para essas imagens e objetos: não é um olhar da estabilidade da imitação, mas do que desperta um outro tipo de pensar, um pensar de certa forma radical, que aponta para a forte presença da névoa que não se evapora de nossos olhares. E é para essa fitada enevoada que essas imagens respondem e querem que aprendamos a piscar, limpar, coçar, os olhos antes de ser possível de dar a olhar aquilo que, não necessariamente, conseguíamos ver.