Pensamento conservador ganha força e dá as caras no mundo

O pensamento conservador está a todo vapor pelo mundo e o custo pode ser alto


Por Rafael Mendonça

Matéria publicada no especial Caminhos da Esquerda, de Caros Amigos

A história da humanidade é marcada por momentos dos mais terríveis, de todo tipo de abuso contra minorias, mesmo quando as minorias eram maiorias. Durante a história moderna foram diversas lutas encampadas e grandes guerras feitas pelo homem com o mote da defesa da liberdade. Mesmo que essa liberdade estivesse quase sempre embalada para esconder outros motivos, era a tal liberdade o carro-chefe das nobres causas. Com o fim da Segunda Guerra os interesses em transformar o mundo em um lugar que respeitasse mais o ser humano, independente de suas convicções, se intensificaram, se tornaram “oficiais” para os Estados, que até alguns anos antes tinham no império britânico e os cavalos do exército alemão como referência. Criou-se em 1948 a Declaração dos Direitos Universais. O que foram as revoltas por melhores condições de trabalho durante a Revolução Industrial, o que eram as batalhas das sufragistas na virada do século 19 para o 20, se tornaram pensamento e influência para toda uma geração. Pensadores, ativistas e verdadeiros guerreiros, especialmente no dito mundo Ocidental, entraram em cena para que negros, mulheres e todas as minorias pudessem, ao menos em teoria, viver em um mundo mais igualitário.

Passamos pelo que chamamos de revolução dos direitos civis nos EUA, pelas décadas de 1960 e 1970 e, de certa forma, as coisas foram evoluindo. Resolvidas nunca. E é aí que começamos a pensar onde foi que erramos enquanto sociedade? Onde perdemos a mão e essa virada ao conservadorismo se tornou algo que antes estava como uma pulga atrás da orelha e hoje é algo palpável, bem mais denso e pior que muito nevoeiro.

Na madrugada do dia 9 de novembro de 2016 o mundo assistiu atônito a virada do candidato Donald Trump para cima da favoritíssima Hillary Clinton. Com seu discurso de cowboy do século 19 arrebatou estados chave na intrincada eleição estadunidense e se tornou o 45º presidente do primo rico do norte. Sua eleição teve efeitos imediatos. Foi como se abrissem as portas do hospício e toda a sorte de preconceituosos e fanáticos em geral saíssem às ruas. Nas redes sociais foram demonstrações e mais demonstrações desse comportamento. 

Aqui no Brasil não ficamos atrás: basta observar dois aspectos. Um é a forma como sempre foram tratados negros, pobres, LGBTs pelo poder vigente e a sociedade. Violência policial e a forma como boa parte de nossa elite trata seus empregados, principalmente domésticos, por exemplo, deixam isso bem evidente. A outra são movimentos organizados que até os anos 2000 ficavam relegados à margem da sociedade e nos anos seguintes tiveram muito crescimento. As facilidades de comunicação com a popularização da internet, facilitadores, inclusive, na própria divulgação da esquerda, são alguns dos vários fatores que ajudaram a disseminação de ideias conservadoras por aqui.

A conversa é ampla e a onda conservadora é um fenômeno mundial, mas que apresenta articularidades que tornam quase impossíveis uma generalização. São centenas de maripozinhas girando em volta de uma lâmpada reacionária. “Estamos assistindo um processo de fortalecimento do pensamento conservador, ou do pensamento ultraconservador. A gente vê uma radicalização do processo, que tem diferentes causas. Por exemplo, na Áustria, com boa renda per capita, estabilidade econômica completa, ainda assim vemos um movimento de extrema-direita, mais ligado ao risco da União Europeia, à imigração e a uma visão de uma sociedade bastante homogênea. No Brasil temos uma sociedade com sérios problemas econômicos e políticos, mas o ponto de intersecção seriam os setores sociais que se veem ameaçados por essas mudanças progressistas e que optam por projetos políticos conservadores”, afirma Leonardo Avritzer, professor titular do departamento de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Se antes da crise de 2008 o mundo vivia, de certa forma, em uma era de bonança econômica — em que os ricos ficavam mais ricos e no qual sobrava uma beirada para a classe média mundial —, quando a bolha estourou, o que restou foram as contas e a miséria para a população da classe média para baixo pagar, e conviver. O deputado Paulo Teixeira, do PT de São Paulo, explica. “A crise de 2008 nos EUA foi a crise da desregulamentação do capital, mas na hora de pagar a crise não foram os ricos que pagaram, foram os pobres. Foram 60 milhões de empregos no mundo que sumiram. E os ricos não só não pagaram, como ficaram mais ricos”, afirma.

Um cenário de crise é o ambiente perfeito para que a frustração germine. Ainda que no Brasil a coisa tenha demorado um pouco para degringolar, a crise também veio. Mas no resto do mundo foi como um tsunami. E isso engrossou um caldo que nunca deixou de existir. Com a falência econômica, a insatisfação da população tem que ser canalizada para algum lugar. Se na Espanha e Grécia isso resultou na criação do Podemos e do Syriza, respectivamente, em um movimento contrário ao crescimento conservador, no leste europeu e França, por exemplo, resultou em um crescimento dos movimentos e partidos de extrema-direita. Cada um com suas particularidades. Problemas econômicos, refugiados, imigrantes e terrorismo, fizeram parte do pacote europeu.

“O sistema globalizado, a sua institucionalidade da democracia tradicional, está muito questionado, ele não incorpora as insatisfações da população de muitos países. Vai se distanciando das populações que estão nas franjas mais marginalizadas do mundo globalizado e se comunica a um sentimento conservador de alguns segmentos da sociedade que confl ui a um tribalismo retrógrado”, afirma o deputado Chico Alencar do PSol do Rio de Janeiro.

Esse caldo de insatisfação fez florescer uma gama enorme de políticos de direita que galgaram seus lugares nos parlamentos europeus. Criando uma resposta a todos os movimentos de inclusão social, esse é um ponto de convergência para vários países que assistem a essa onda. “Se os movimentos progressistas estão se empoderando, no mundo inteiro se fortalecem, eu me fecho no meu círculo da sociedade do espetáculo e das manifestações personalistas performáticas”, explica Chico Alencar.

O Trump é fruto disso, dentro das peculiaridades estadunidenses. Uma nação que só na virada de 2008 para 2009 perdeu 2,6 milhões de empregos e com tantas diferenças com suas costas progressistas e sua América profunda. “Acredito que a falta de oportunidade criou os non-college-educated whites (homens brancos sem educação superior), enquanto os EUA tiveram uma forte base industrial, especialmente na região dos Grandes Lagos. Essa turma, apesar de não ter faculdade, sempre foram fortemente incluídos pela economia americana, principalmente automobilística. E existe uma segmentação nos EUA muito importante que é entre as pessoas com alto nível de escolaridade — que estão principalmente nas grandes cidades e que estão acostumados com a diversidade —, e uma população rural muito forte e conservadora”, afirma Avritzer.

Quintal

Na América Latina a coisa se torna ainda mais complexa e, por que não, esdrúxula. Com um pouco de conhecimento histórico sabemos que aqui sempre foi considerado pelo “coirmão” do norte como seu quintal. São tantas e tantas ingerências que nem com a liberação dos documentos da Agência Central de Inteligência estadunidense, a CIA, conseguimos ter a real dimensão do tamanho das ações já realizadas. Mas o que aconteceu, provavelmente durante um período de distração do governo Bush? Vários países elegeram governos progressistas no período. Hugo Cháves, Evo Morales, Rafael Correa, Mujica, Cristina Kirchner, Bachelet e, claro, Lula, vieram nessa safra. Mas coincidentemente com a volta de um democrata ao governo estadunidense a coisa começou a escorrer pelos dedos. “Após quase duas décadas de mudanças, o cenário parece inclinar-se novamente na direção oposta: há evidentes sinais de esgotamento do ‘consenso nacional popular’ que vingou até pouco tempo e o pêndulo latino-americano agora, inclina-se, novamente, na direção conservadora. Este movimento conta também com importante apoio da população, razão pela qual os processos eleitorais, que até bem pouco tempo apenas confi rmavam a posição soberana da ‘esquerda’, expressam a emergência de governos conservadores mais ou menos afi nados com o antigo ideário neoliberal”, afi rma Eliane Tavares em seu texto na apresentação das Jornadas Bolivarianas, realizadas em abril na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Cada país tem suas particularidades e, portanto, é impossível fazer uma leitura única e coesa sobre como as coisas foram acontecendo. Há uns anos, a Agência Pública publicou uma matéria sobre uma empresa sérvia que fora contratada para desestabilizar o então governo Chavez, aqui no Brasil estamos vendo o processo de expurgo de qualquer ideia mais progressista. Isso sem falar na entrega de riquezas já consolidadas, o pré-sal brasileiro, e as que ainda estão na alça de mira, gás boliviano, petróleo venezuelano etc. De certa forma todos esses países passam por momentos de instabilidade. Mesmo que a Venezuela seja um cenário muito mais complexo. E a Argentina também é um caso à parte, pois lá a mudança de rumo foi feita pelo voto. Depois de anos de campanha pesada nos meios de comunicação contra a gestão de Cristina Kirchner e de sérios problemas na economia, foi eleito, em 2015, o ultraneoliberal Mauricio Macri. E lá, como aqui, o “gestor” não teve nenhum pudor ou parcimônia de destruir direitos e aumentar o arrocho nas classes mais pobres, causando efeitos drásticos no país.

“A América Latina se move em bloco. Há séculos fornece demonstrações cabais disso, a despeito das inúmeras especifi cidades de uma região tão rica e diversa. A eleição de Macri, em 2015, parece ter aberto caminho para o deslocamento, a partir da Argentina, de uma hegemonia da esquerda, ou centro-esquerda, no continente sul-americano, para o estabelecimento de governos fortemente identifi cados com os campos da direita. A ascensão de Temer é decisiva nesse sentido, devido ao papel que o Brasil desempenha frente aos vizinhos. Isso só foi possível, dentre outros fatores, graças a uma forte aliança entre a direita de orientação econômica neoliberal com conservadores de toda espécie, saudosos dos regimes militares e neopentecostais, por exemplo num cenário de crise econômica, aumento do desemprego e descrença nas instituições, a direita surge como uma alternativa que se vende como técnica na economia, mas, ao mesmo tempo, guardiã de valores atacados pela esquerda. Não deixa de ser sintomática a campanha pelo ‘No’ na Colômbia ter se apropriado até de elementos que dizem respeito à identidade, que não por acaso chamam de ‘ideologia’, de ‘gênero’”, reflete o historiador Murilo Cleto.

O Brasil durante os anos Lula e principalmente durante a gestão do chanceler Celso Amorim se tornou um player internacional que não poderia ser deixado de fora das rodas de negociação. E apesar do esforço de José Serra, atual ministro de Relações Exteriores, para destruir isso, muito do que ficou veio dessa época. Por isso as mudanças aqui surtem efeito em outros países da América Latina e afetam tão fortemente o resto do continente.

Antipolítica

Apesar da frase de Leon Wieseltier, “não há nenhuma análise econômica que possa abrandar a intolerância”, é impossível não relacionar as duas coisas. A economia tem papel fundamental nesse fortalecimento conservador. Existe um forte teor de negação de políticas neoliberais em vários países, mas com um viés conservador. Muitos atribuem a essa negação o resultado da eleição na Inglaterra que descambou no Brexit. Ela se mistura a valores democráticos que não são compartilhados por alguns e a negação da política, esta com muitas facetas e particularidades e até complexos paradoxos como mostra o professor Avritzer: “O Trump tem uma posição política sobre tudo, imigrantes, mulheres, proteção econômica. O Trump não é um conservador clássico, pois ele mescla elementos do pensamento conservador de esquerda e de direita. Ele mescla um protecionismo econômico muito forte, que em geral já foi associado a um pensamento de esquerda, com uma visão de supremacia racial branca que sempre foi associada à direita. Ele mescla essas duas coisas e na verdade não dá pra dizer que ele é antipolítico, ele é fortemente político”, afirma.

Ao desqualificar a política e transformar o “fazer política” em vilão, as pessoas que mais precisam do Estado passaram a repudiá-lo. No Brasil se formou uma maré antipolítica que abarcou em uma só voz o descontentamento das pessoas com uma série de fatores econômicos e sociais, que sempre foram de complexas soluções. Nesse momento se perdia o apoio da massa de pessoas das classes menos abastadas. Com a famosa foto da decepção de Aécio em seu apartamento nas eleições de 2014, começou o movimento que tornaria as vontades da elite brasileira em prioridade também para quem as deveria repudiar, que culminaria com o enorme apoio popular ao golpe contra a presidenta Dilma.

A tentativa de surfar na vitória de Trump de demagogos como Bolsonaro e a família Le Pen, na França, não é um ato impensado. Com o crescimento e disseminação dessas vontades toscas essas pessoas conseguem falar com mais gente. Conseguem ter acesso a ainda mais pessoas que negam a política. Quantos de nós não temos tios, primos e outros parentes, que até três, quatro anos atrás não se importava com nada e hoje são aquele poço de ódio em grupos de família no WhatsApp. “E com isso os bufões, populistas e demagogos vão ganhando espaço e conquistando mentes e corações. Todo suposto líder é meio exótico, de um Berlusconi ao Le Pen, todos são meio histriônicos pra se destacar. Os projetos coletivos fi cam obscurecidos e tem uma fragmentação maior que exalta sempre o indivíduo e dá margem ao aviltamento dos personalismos”, acredita Chico Alencar.

A chanceler alemã Angela Merkel disse em entrevista recente que: “A Alemanha e os EUA são conectados por valores de democracia, liberdade e respeito pela lei e dignidade do homem, independente de sua origem, cor da pele, religião, sexo, orientação sexual ou visões políticas. E tendo como base esses valores eu pretendo trabalhar próximo ao presidente Trump”. O fato da própria direita mais neoliberal estar questionando e criticando o presidente eleito dos EUA é um motivo de refl exão. Seria apenas o fato de Trump ser um bronco? Ou suas ideias de protecionismo e antiglobalização estariam incomodando algo que afete a ordem mundial? Impossível não lembrar aqui das teorias da conspiração (que chamamos de teorias, pois faltam provas, mas na verdade são bem factíveis), que envolvem o Clube de Bilderberg e seus planos infalíveis para implementar seus ideais neoliberais. Em que situação estamos metidos nessa briga de cachorro grande e em que ponto a população se coloca para ir contra esses ideias neoliberais?

Essas são perguntas que mesmo os especialistas gastarão muito tempo tentando responder. ”Quem desdenha quer comprar o discurso da direita. É ela, a direita, fazendo política pra ela própria usufruir”, afi rma Paulo Teixeira. Especulações à parte, o fato é que esse crescimento é uma realidade. Ataques a escolas ocupadas se tornam notícia frequente, por exemplo. E as esquerdas se colocam na defensiva depois de um período de bonança. “É difícil ter uma visão de médio prazo do que pode acontecer. Esses movimentos são sequência de um amplo momento hegemônico da esquerda no Brasil. Evidentemente que essas derrotas (impeachment e eleições municipais), foram derrotas da esquerda como um todo e elas nos levam a pensar as diferentes propostas de esquerda e uma possível união. A questão mais importante colocada hoje é de diferentes grupos de esquerda não acharem que a derrota do PT vai imediatamente colocar água no seu moinho e eles vão reconstruir imediatamente o mesmo tipo de hegemonia política que o PT construiu de forma muito fácil. Isso não acontecerá. No segundo turno do Rio isso fi cou muito claro: o quanto é difícil ter essa penetração nos setores populares que o PT teve. O Freixo não conseguiu essa penetração. É importante entender que se a hegemonia petista levou a um conjunto de práticas extremamente problemáticas, ainda não existe outro modelo. Mas é necessário que se crie um modelo alternativo que não coloque as forças de esquerda uma contra a outra e possibilite um tipo de arranjo”, afirma o professor Avritzer.