Pitanga, um capoeirista mental
Um bate-papo sobre orgulho e preconceito com um dos maiores atores brasileiros
Por Lucas Simões
Antonio Pitanga, 78, tem uma certeza absoluta, mesmo que a expressão seja “dificilmente usada hoje”: ainda é um capoeirista mental. O conceito nem ele sabe ao certo quando apareceu, mas o acompanha desde menino.
“Moleque, descobri que não podia entrar no cinema por ser negro e ficava da porta ouvindo. Talvez seja por aí. Esse baiano aqui entendeu muito cedo as razões para ter consciência política, sendo bisneto de uma escrava e sabendo que as condições não eram muito favoráveis. Por isso, sempre me armei mentalmente e me preparei para embates intelectuais, nunca confrontos braçais”, destaca um dos maiores atores e intelectuais brasileiros em atividade, que participou da 12ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, encerrada na última segunda-feira (27).
“É curioso e importante”, como o próprio ator pontua, que o documentário que conta sua trajetória, o elogiado “Pitanga”, dirigido pela filha Camila Pitanga e Beto Brant, seja exibido na praça pública da cidade histórica, erguida literalmente pelos braços de escravos. “É como se fosse um convite para que ninguém seja excluído, que nunca mais ninguém seja excluído, percebe?”, diz o ator, “eterno aprendiz de mim mesmo”.
O filme “Pitanga” tem o mérito de não se limitar a homenagear a carreira dessa lenda do Cinema Novo, que já foi dirigido por mestres como Glauber Rocha e Cacá Diegues. E nem a uma cronologia dos seus personagens mais impactantes, nos seus mais de 70 trabalhos para cinema, teatro e televisão. Mas, sim, expor uma penca de ensinamentos ancestrais de Antonio Pitanga, enquanto ele papeia despretensiosamente com Maria Bethânia no quintal de casa, sua primeira namorada aos 16 anos. Ou no encontro com o amigo Chico Buarque, sem enfeites ou pompas.
“Quando eu sento para falar com meus amigos, eu não faço entrevistas. A gente conversa. Eu fui conversar com eles e uma câmara estava gravando. Muita gente me disse que viu seus ídolos desproduzidos na tela e isso é ótimo. Insistiram muito para eu fazer o filme e, quando eu topei, tinha que ser daquele jeito Waly Salomão: façam em vida, não esperem eu morrer para me homenagear. E foi o que aconteceu. Não há um roteiro, eu simplesmente conduzo a história por vários lados diferentes, abrindo janelas e portas para quem quiser participar dessa troca. Por que é uma troca. O tempo todo quero aprender também”, diz Pitanga.
Pelourinho
13 de junho de 1939, Salvador. Antonio Luiz Sampaio já nasceu aprendendo. Molequinho ainda, ouvia no minúsculo quintal do barracão onde nasceu, no Pelourinho, a história da escravidão de sua bisavó e os ensinamentos de sua mãe contra uma sociedade opressora.
“Minha mãe tinha essa visão de não ser atrelada a nenhum tipo de machismo, de não depender de homem. E sem nenhuma formação intelectual. Era uma mulher do povo, uma neta de escravos, com uma dificuldade muito grande de se movimentar nesse universo. Foi com ela que aprendi que, ao invés de pertencer a um movimento negro, eu seria um negro em movimento. Eu descobri que meu quintal era o centro do mundo. E o cinema entra exatamente aí”, diz.
A fortaleza intelectual de Pitanga deságua em sua genialidade cinematográfica nas telonas e fora delas. Em 1960, se tornou Antonio Pitanga ao pedir para fazer o teste do personagem que carrega até hoje no sobrenome emblemático, mas que nada tinha a ver com o seu perfil esmirrado, de baixa estatura, o oposto do que pedia o diretor Trigueirinho Netto.
“Eu insisti e no meio daqueles homens fortes cotados para o papel, ganhei por alguma diferença. Por ser um ator e me assumir desde então como ator, talvez tenha sido isso”, lembra. Anos mais tarde, foi categórico com José Wilker ao dizer que estaria no elenco da badalada novela “Corpo Santo”, sucesso da Rede Manchete em 1987, reunindo atores como Christiane Torloni, Chico Diaz e Ângela Vieira.
“A coisa começou assim. Nunca tinha feito papel de escravo, mas tinha saído da Globo e fui contratado pela Manchete. Eles só tinham uma novela, e só tinha eu (para fazer o escravo) e fiz. Depois, eu falei com o Zé Wilker, que tinha chegado de Pernambuco e era meu diretor na época: ‘eu tô nessa novela aí do Reginaldo Faria’. E ele me disse: ‘não, você não tá, não’. O Zé Wilker, meu amigo, heim, me disse não. Mas a novela atrasou e o Zé me chama para conversar e diz: ‘puta que pariu, você é foda, heim, meu irmão. Você vai fazer essa novela. Te querem para fazer essa novela’. Cheguei em casa, fui ver os personagens. Eu faria o Patrício, 35 anos, um namorador, ex-professor de educação física. E fiz um dos melhores papéis da Manchete na época. Eu nunca cheguei para nenhum diretor de TV ou cinema ou teatro perguntando: ‘tem papel para negro?’ Se eu dissesse isso, estaria dando para ele a resposta do não. É o que me diriam, incluindo o Wilker, meu grande amigo. Eu sempre lutei por personagens e papéis, independentemente de qualquer coisa”, diz.
Como o crítico de cinema Marcelo Miranda assertivamente traduziu, “ninguém melhor do que o próprio Pitanga para dar aulas sobre si mesmo”. Num longo papo descontraído, o ator falou abertamente sobre tudo e mais um pouco – daquele jeito despojado e filosófico, natural de um exímio contador de histórias. Nesta entrevista, ela comenta desde a infância, a amizade com Glauber Rocha, até os projetos recentes, incluindo o aguardado longa “Revolta dos Malês”. Também fala das suas viagens de autoconhecimento à África, suas opiniões sobre a televisão, representatividade negra nas artes e o preço da fama, tecendo uma comparação entre Simonal e Fábio Assunção.
Com vocês, Antonio Pitanga, por ele mesmo.
Infância na Bahia
Eu nasci no início da Segunda Guerra Mundial, em 1939, e vim de uma família muito pobre, mas uma pobreza com dignidade. A gente ia lá no açougue, tinha osso, pé de galinha, pescoço, sobra de carne. Naquela época, eles não cobravam da gente, davam os restos. E com sorte vinha umas carninhas agarradas nos ossos. O café da manhã era banana da terra, batata doce. Poucas vezes eu comi pão na minha infância. Tinha fruta pão. A gente passava uma manteguinha de lata ali, tudo simples, mas uma pobreza com dignidade. A escola pública da época era maravilhosa, tanto que, depois que cresci, tive que ir para a particular. A pública era para quem tinha o QI (quem indica), os ricos iam para a escola pública. E isso me marcou.
Contador de histórias
Muito jovem eu entendi que tinha a virtude de fazedor de amigos. De várias classes sociais. Isso não era problema na amizade. Meus amigos ricos tinham que ir para casa às 16h, chegar certinho, tomar banho às 17h em ponto, cear e jantar. Mas eu tinha o mundo. Eu tinha a chegada da noite, tudo o que eu via eu contava para eles. Ó, ontem eu vi o Zepelin passando, um cometa, teve briga no bar… No dia seguinte, eu era o contador de histórias da turma. Os olhos dos meus amigos brilhavam porque eu tinha algo que eles não tinham: a vivência do cair da noite e da madrugada.
Sartre e orelhas de livro
Eu vivi uma juventude de cabeça muito arejada nos meus 18, 19 anos. Não estávamos olhando para o nosso próprio umbigo. Pensávamos num contexto social amplo, queríamos uma democracia de verdade, não de mentira, como era na época. Nós víamos tudo: teatro, artes plástica, dança, capoeira, todo mundo frequentava diversos núcleos de arte do jeito que dava. E lembro que meus amigos, os primeiros inclinados para o cinema, aquela turma toda de Glauber Rocha, Roberto Pires, Luis Carlos Maciel, eles me ajudaram a criar consciência própria. Existia uma vontade gigante de ter consciência. Eu e meus amigos nos reuníamos de segunda à sexta-feira numa livraria na rua Chile, em Salvador. E rolavam altos papos. Éramos leitores de orelha, líamos a orelha do livro porque não tínhamos dinheiro para comprar. Então era assim. A gente lia Dostoiévski e Sartre só de orelha e discutia um tempão, plantávamos nosso conhecimento. Até que um belo dia o Jean-Paul Sartre chega em carne e osso ao Brasil. Desembarca na Bahia em 1958, e o reitor da nossa universidade (Escola de Artes da Universidade Federal da Bahia) chama a gente para debater ao vivo com ele. Não é inacreditável?
Glauber Rocha
Ele foi de uma presença muito forte na minha vida. Quando eu vou fazer “Bahia de Todos os Santos” (em 1960), não conhecia o Glauber. Ele era jornalista da área de cultura, tinha feito “Pátio” e “A Cruz na Praça”, dois curtas. A história conhecida é que eles queriam um negão forte, mas eu forcei a barra. Pedi para fazer o teste para o Pitanga, fiz, e o diretor falou: é você. E na hora do meu teste, o Glauber tinha ido ver o Trigueirinho Netto (diretor) para fazer uma entrevista. Ele me viu e perguntou quem era. Chegou até mim e falou: “você é bom, hein? Quer ser ator?”. Eu podia ter dito que eu já era ator. Mas eu disse: “quero sim”. E ele me falou que eu tinha que fazer teatro e aquela coisa toda. Mas eu rebati dizendo: “Glauber, isso é para elite. Teatro é feito à tarde, eu sou trabalhador, não tenho nem o que comer, preciso trabalhar de dia”. Aí ele me levou na casa dele, me apresentou a irmã Nancy Rocha e a Tia Lúcia, sua mãe, e disse que o almoço estava garantido na pensão da Tia Lúcia. Foi aí que decidi: “vou fazer isso, vou ser um ator”. Eu virei irmão do Glauber. Foi muito importante para mim, porque ele não só me inseriu na família dele como também no seio de amigos: Cacá Diegues, Joaquim Pedro. O Glauber é um revolucionário, foi o primeiro a botar em prática a coisa de uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, literalmente. E estive ali, ao lado dele, vivendo tudo aquilo.
África
Eu vivi dois anos na África porque queria entender de onde eu vim. Você se diz africano e resume a coisa toda a um continente que tem 54 países com muitas diferenças. E de vários países vieram o carregamento humano, de escravos, para o Brasil. Eu precisava saber de que África tinha vindo. Fui em dezenas de países, com várias línguas diferentes. Eu falava francês para sobreviver em alguns deles. Mas muita gente me olhava e perguntava de onde tinha vindo esse negro aqui? O que é que ele falava? Ainda bem que eu levei um berimbau, porque toda vez que eu desesperava e não sabia o que fazer ou falar, tocava o berimbau. Descobri que a minha região é Daomé, na Nigéria. É o pessoal mais forte da Bahia, que fala iorubá, toca berimbau na boca, pratica o candomblé, enfim. Essa viagem só me fez reforçar a idolatria por Luiz Gama. O Brasil precisa entender a trajetória desse homem, uma criança nascida livre, mas tornada escrava, que advogou sem diploma para livrar centenas de milhares de negros da escravidão. O ação de Gama é muito pela união do povo negro, um povo que representa mais de 50% do Brasil, mas ainda continua ocupando espaços de minoria. Ou seja, as lutas passadas ainda seguem firmes hoje.
Revolta dos Malês
Esse filme, que estou fazendo, nasceu também da minha viagem à África, mas era um desejo de pelo oito anos já, mais ou menos o tempo que estou perseguindo essa história. Estou começando a captar, tem a produção do Flávio Tambeline e já temos um elenco de frente. Vamos ter Lázaro Ramos, Taís Araújo, Camila Pitanga, Rocco Pitanga, Patrícia Pillar, João Miguel, Seu Jorge. Temos um número de atores e atrizes, principalmente negros, porque quero contar a história de um movimento de negros. Mas não de negros coitadinhos. Para quem não sabe, Malês eram assim chamados os integrantes de um grupo grande de negros que vieram de regiões como Togo, Mali, Senegal e Nigéria. Chegaram um pouquinho antes de Dom João VI, que desembarcou aqui em 1808. Muitos muçulmanos e islamitas, e criam um movimento para tomar o poder contra o processo de escravidão, perseguição e racismo. O primeiro movimento foi entre 1811 e 1813, mas eu vou contar no filme o de 1835, que considero mais importante. Estrategicamente, a tentativa de tomar o poder fracassou. Eles perderam a batalha, assim como Napoleão perdeu a guerra. Mas havia uma estratégia e um pensamento social para tomar o poder, principalmente vindo dos mais jovens. Foi o maior levante contra a opressão no Brasil. É como Tom Jobim dizia, “o Brazil não conhece o Brasil”, e muito da vontade do filme veio desse pensamento que até hoje persiste.
Personagens negros
Eu acredito que se você é um ator, você é um ator e ponto. Você pode fazer Shakespeare, Otelo, Dias Gomes, Nelson Rodrigues, Ariano Suassuna. Esse pra mim é o xis do problema e uma demonstração que a conta não fecha. Por que nós, negros, somos mais de 50% da população. Então a matemática deveria ser favorável a nós, mas não é. Na minha época tínhamos Ruth Souza, Zezé Motta, Léa Garcia, Grande Otelo, Abdias Nascimento. Você tinha um manancial de atores que de uma maneira ou de outra, mesmo que em pequenas participações, estavam ali. Agora, se não recebemos da sociedade o reconhecimento pela nossa capacidade ao longo do tempo, então estamos seguindo o desenho do colonizador. E sua referência padronizada é o personagem alto, loiro e branco. Ele não é mulher e nem negro. Timidamente, temos hoje um time maravilhoso com Lázaro Ramos, Camila Pitanga, Taís Araújo, Sheron Menezes, Juliana Alves. Mas, na maioria das vezes, os enredos não favorecem oportunidade. Você tem um Tarcísio Meira, avô, um Tony Ramos, filho, e um Bruno Gagliasso, neto. Você tem o patriarcado conduzindo, o patriarcal branco, o homem branco. Aí você pega uma novela que tem um negro e ele está sozinho. Dificilmente tem uma família, como eu fiz na novela “A Próxima Vítima”. Eu acho que a gente ainda fica dependendo que o branco nos dê a oportunidade. E não é para ser assim.
De Simonal a Fábio Assunção
O sucesso incomoda. O sucesso traz inveja e uma série de preconceitos que vem à tona quando você fraqueja como ser humano, como é o caso do Fábio Assunção, agora. Acredito que ele tenha bebido a mais, passado do ponto, agredido algumas pessoas, mas a linguagem que você vê filmada através de um celular e jogada nas redes é de uma tristeza enorme. Simonal era um grande amigo e viveu algo parecido. Eu e Jorge Ben morávamos na mesma rua no Rio de Janeiro, na Paula Freitas, entre 1963 e 1964. A gente frequentava o Beco das Garrafas aos domingos, onde surgiu a bossa nova, o jazz. O Simonal já era o Simonal e o Jorge Ben estava começando a furar o olho da bossa nova e se firmar como compositor e cantor com temas afros. Então, eu te falo de um Simonal com uma generosidade muito grande que não se conta no filme da Elis. No primeiro show organizado por (João, ex-marido de Elis) Bôscoli e (o produtor Luís Carlos) Miele para lançar Elis Regina no Beco das Garrafas, apareceu o Simonal lá da rua. A Elis estava dentro da boate, e ele começou a cantar ainda da rua, antes de entrar: “se você quer ser minha namorada, ai que linda namorada você poderia ser”. Eu estou dizendo isso porque conheci Simonal jogando bola, era o cara que botava o Maracanãzinho inteiro para gritar. Foi injusto com o Simonal como é com o Fábio. A comunidade negra não abraçou o Simonal, aceitou e assinou embaixo esse tipo de perseguição, essa armação para cima dele. Foi de uma crueldade muito grande o que fizeram com ele e, para mim, Simonal é uma dívida grande a ser paga pela sociedade brasileira, como reconhecimento do talento e evolução da música brasileira por sua causa.
(O repórter viajou a convite do CineOP)