O milagre das águas do São Francisco
Diário da viagem pelo canal de transposição
08/05/2017
Por Bruno Moreno
Há quase 40 anos, o cantor e compositor baiano Elomar Figueira Melo lançava o álbum “Na Quadrada das Águas Perdidas” (1978). Naquele ano, o mundo conheceria a fantástica música “Arrumação”, na qual o cantador, alertado por trovoadas, convoca Josefina a “plantar feijão no pó”.
Essa ainda é a dura realidade do agreste nordestino. No entanto, desde março deste ano, o solo seco de boa parte dos sertões pernambucano e paraibano, que dependia unicamente das águas de São Pedro para poder fazer brotar, passou a contar com a ajuda de São Francisco, e em breve não estará à mercê da vontade divina ou do clima.
O São Francisco que ajuda desta vez é o rio, e não o santo. Passados dez anos do início da obra, ainda não existe consenso em relação aos impactos (positivos e negativos) da transposição das águas do Velho Chico. Mas o fato é que, no último mês de março, o eixo leste do projeto da transposição foi inaugurado (o primeiro dos dois eixos previstos). Pela novidade, ainda são poucos os que já utilizam efetivamente a água transposta, que a maioria só vê passar.
A inauguração foi feita duas vezes. A primeira por Michel Temer (PMDB), que está presidente da República. Em uma cerimônia esvaziada e restrita às elites política e econômica locais, ele afirmou que o mérito da obra era do povo brasileiro. Uma semana depois, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003/2010) e Dilma Rousseff (2011/2016), ambos do PT, lotaram a cidade de Monteiro (PB) para a chamada “Inauguração Popular”, numa festa apoteótica.
Por onde quer que se ande na região abrangida pelo canal, Lula é idolatrado. No momento em que o agreste atravessa uma das piores secas já vistas, que já dura sete anos, a obra é vista como um milagre, mesmo que a água ainda não esteja sendo devidamente distribuída.
A obra conecta o reservatório de Itaparica, em Floresta (PE), à calha do rio Paraíba, em Monteiro (PB), percorrendo 220 quilômetros. Dali, a água segue até o açude de Boqueirão, que abastece 19 cidades, incluindo Campina Grande (PB), com 408 mil habitantes e maior polo industrial e tecnológico da Paraíba. Sem as águas do São Francisco, a cidade ameaçava entrar em colapso hídrico, já que o Boqueirão estava virtualmente seco.
A promessa de desenvolvimento social e econômico, lastreado na segurança hídrica, é o principal argumento em defesa da transposição, que custou mais de R$ 8 bilhões e atenderá a mais de 12 milhões de pessoas.
Ambientalistas criticam a obra. Afirmam que o São Francisco deveria ter sido recuperado antes da transposição, e que haveria soluções mais simples, eficientes e baratas, como a revegetação do sertão, recuperação de nascentes e cursos d’água e o uso intensivo de cisternas e açudes.
Para entender a magnitude da intervenção, O Beltrano percorreu todo o trecho do canal, em uma viagem de oito dias e um total de 2.228 quilômetros rodados (a maioria em estradas de terra), partindo e retornando de Recife (PE).
Nos próximos dias, por meio de textos, vídeos, fotos e mapas, narrarei essa jornada, ora solitária, ora cheia de prosas, com temperatura média de 35º durante o dia, acompanhada de paisagens lindas, mesmo que áridas.
Pernoitei em seis cidades, almocei em apenas dois dos dias, tomei café e água na casa das pessoas, conheci figuras folcloricas, me perdi em encruzilhadas, atravessei atoleiros, escutei muita música, fiquei em silêncio, me queimei no sol, conheci almas bondosas e não cruzei com nenhuma alma sebosa.
O trecho começa aqui. Bora?
Primeiro dia – Ansiedade
Antes de sair de casa para embarcar, comecei a ficar tenso. Não com a viagem, ou com o que encontraria, mas pela falta de um elemento fundamental: o drone.
Comprei o equipamento pela internet, mas por um problema de endereço ele foi reenviado ao remetente. Assim que descobri o problema, liguei para o site, para o vendedor e para os Correios, na tentativa de ainda conseguir pegar o drone em Belo Horizonte. Mas não deu certo. O feriado da sexta-feira da paixão quebrou minhas pernas e tornou ainda mais difícil encontrar uma solução. Liguei novamente para o vendedor e pedi para ele reenviar por Sedex10.
Mas aí teríamos um problema. Meu voo para o Recife estava marcado para as 11h de terça-feira (19/4), e a encomenda só chegaria naquele mesmo dia, até às 10h. Da minha casa até o aeroporto de Confins, nesse horário, são gastos uns 50 minutos, com trânsito bom.
Não queria fazer a viagem sem o drone, já que as imagens aéreas seriam fundamentais para a reportagem. Pensei em várias possibilidades: atrasar o embarque e pegar outro avião; buscar o drone no aeroporto; embarcar e pedir para alguém enviar por Sedex pra alguma cidade de Pernambuco, ou pedir para o vendedor enviar direto para a casa de algum conhecido, no Recife.
Seria (e foi) tenso, mas resolvi arriscar receber em casa. A partir das 9h00 de terça-feira (19/4), fiquei na porta, com tudo pronto, aguardando ansioso. A cada barulho de kombi eu achava que eram os Correios chegando. Às 9h47, faltando 13 minutos para o horário limite da entrega, o pacote chegou, mas não de kombi.
Chamei um carro pelo aplicativo, fiz check-in pela internet e, às 10h39, cheguei ao balcão para tentar despachar bagagens. Claro que não consegui, mas o funcionário disse que se me deixassem entrar com tudo no avião e colocar nos bagageiros superiores. Tudo bem.
Com um mochilão nas costas, a caixa do drone nas mãos e uma mochila cheia de equipamentos, corri loucamente, passei pelo raio-x, deixei lá uma faca que tinha trazido (era para ter sido despachada!), e mantive a esperança. Nesse novo aeroporto de Confins, o portão é longe, mas muito longe. Corri o tanto que aguentei, depois andei rápido. Me arrependi de não ter feito mais academia.
Vi no monitor que o meu voo já estava encerrado. Corri ainda mais, e os funcionários da Latam, quando me viram correndo desesperadamente, fizeram de tudo para eu embarcar (ao contrário do que aconteceu no Recife, na volta. Sarcástico e com sorriso maroto no rosto, o funcionário da Latam ficou me dando lição de moral, falando que deveria ter chegado antes, e que seria injusto que eu passasse na frente de 170 passageiros).
Em Confins, os funcionários se comunicaram via rádio para que a porta do avião não fosse fechada. Fui o último a entrar, suado, bufando, e meio incrédulo de que aquilo tinha dado certo. Ali começava, de fato, a Expedição à Transposição do São Francisco.
Possante
Ao chegar no Recife, às 13h30, fui direto para a concessionária, onde retirei a Toro Volcano Diesel 4×4, gentilmente cedida pela Fiat Automóveis. Passei em uma loja de conveniência, comprei água e alguns salgadinhos, coloquei no GPS do carro a cidade de Garanhuns como destino, e toquei rumo ao agreste.
Como viajava sozinho, decidi não dirigir à noite, e cheguei quase escurecendo (no Nordeste, 17h já é noite) como planejado. Já com hotel reservado, finalmente abri a caixa do drone. Coloquei tudo pra carregar, baterias e controle. Estudei o manual. Sai para jantar e logo depois dormi para sair cedo no dia seguinte. No relato de amanhã eu me encontro com o rio São Francisco.