Protagonistas ribeirinhas
As mulheres retratadas da 12ª Edição do Cinema no Rio São Francisco
Naquela quarta-feira de agosto, o vento da noite começou a refrescar o calor do Norte de Minas, em Matias Cardoso, cidade de quase 10 mil habitantes e nenhuma sala de cinema. O telão inflável já estava pronto na Praça Cônego Maurício, onde fica uma das igrejas mais antigas do Brasil. De mansinho, Regina Barbosa, 49 anos, chega toda arrumada, ao lado do sobrinho, da irmã e da filha para o último dia do Cinema no Rio São Francisco.
Aquele não era um momento qualquer. Em instantes, ela se veria na tela, no documentário sobre sua cidade, falando das dores e das delícias de ser mulher. “Tô que me tremo aqui de ansiedade”, disse sorrindo, enquanto observava as pessoas tomando os assentos.
O projeto, realizado por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, completou doze anos. Passou também por Januária, Manga, Pedra de Maria da Cruz, São Francisco e Itacarambi entre os dias 17 e 23 de agosto. Sua missão é levar cinema nacional gratuito para as comunidades ribeirinhas do rio São Francisco. De acordo com o produtor executivo Rangel Moreira, neste ano, cerca de 9 mil pessoas assistiram aos filmes nas ruas. “Depois de tantos anos, construímos com a gente dessas cidades uma intimidade. O telão já é esperado, já faz parte do calendário das comunidades”, conta.
Em cada parada, um curta-metragem, um documentário, uma animação e um longa-metragem são assistidos ao ar livre. A curadoria é feita ao longo do ano anterior, tempo em que Inácio Neces, idealizador do projeto, e Rangel recebem sugestões e avaliam cada uma. “Procuramos trazer tanto assuntos que tenham afinidade com a cultura ribeirinha, como temas atuais. Esse ano, por exemplo, eu fiz questão de passar a animação ‘A Fábula da Corrupção’ em todas as cidades, porque retrata de uma forma simples e lúdica algo muito presente entre nós, brasileiros”, diz Inácio.
Antes da sequência de filmes, o público assiste aos vídeos produzidos por Inácio e sua equipe em cada cidade, além de uma apresentação musical local. “Essa é uma oportunidade das pessoas se verem nas telas, olharem para o lugar onde moram e a cultura que diz tanto sobre o Brasil inteiro. Isso mostra a elas como são importantes”, diz Neves. Esse material é captado e editado algumas semanas antes, quando a equipe percorre os destinos em busca de imagens e personagens que retratem a vida ao redor do rio. “Estamos falando de lugares que muitas vezes são esquecidos. Essa é a nossa chance de também fazer um registro dessas memórias”, explica. Veja os filmes criados pela equipe aqui: https://vimeo.com/zenoliafilmes
As ribeirinhas
Dessa vez, o recorte da mulher ribeirinha fez com que Inácio chegasse até a comunidade quilombola de Praia, ao lado de Matias Cardoso, onde encontrou Regina se preparando para um festejo.
“O que eu ensino para minha filha todos os dias é que a gente tem que saber de onde viemos. Somos quilombolas, temos essa raiz, e é importante demais que a gente saiba buscar isso, conhecer a nossa história e se valorizar enquanto mulher negra”, disse ela às câmeras. Na plateia, de mãos dadas com a filha, ela se vê no mesmo telão em que mais tarde passaria os filmes “O Menino e o Espelho”, do diretor Guilherme Fiúza, e “Fábula da Corrupção”, dirigido por Lisandro Santos.
Outras histórias de força tomaram as ruas e praças que o Cinema no Rio São Francisco percorreu. Em Itacarambi, Roseli contou a saga da mulher pescadora. Em Manga, Brenda falou como é ser vaqueira em um universo machista. Em Pedra de Maria da Cruz, Vanilde discorreu sobre o poder da autoestima. Na cidade de São Francisco, Maria contou sobre a coragem de correr atrás dos próprios desejos, mesmo parecendo que já é tarde. Em Januária, Nildete falou da batalha por sua independência, desde pequena. Muitas outras tiveram suas vozes escutadas nos espaços lotados do projeto.
Na plateia, as reações iam das lágrimas às gargalhadas. “Em tantos anos de projeto, eu nunca tinha visto as pessoas aplaudirem algo antes do fim, como aconteceram nos documentários das cidades. As histórias emocionaram, causaram uma identificação instantânea nas pessoas”, diz Rangel.
O rio que seca
A ideia de viajar pelas bordas do Rio São Francisco com filmes teve início durante uma festa de criança, quando Inácio Neves olhou para um escorregador inflável e pensou que poderia inflar também uma tela de cinema. “Fiquei imaginando o tanto de rua que eu poderia ocupar com esse ‘cinema-móvel’, chegando em lugares impossíveis”, brinca.
Pouco tempo depois de procurar o fornecedor do brinquedo, em São Paulo, ele estava com o objeto principal de suas futuras aventuras em mãos. “Como eu sempre tive uma relação muito forte com o Rio São Francisco, por causa de uma viagem que fiz na minha juventude, decidi que aquele seria o destino”, conta Inácio, lembrando de quando tinha vinte e poucos anos e viajou de Pirapora a Sobradinho no barco a vapor, junto de uma turma de amigos. Desde então, lá se vai mais de uma década acompanhando o curso das águas, inflando e desinflando a telona nas cidades ribeirinhas.
Até o ano de 2013, o projeto fazia todo o percurso de barco. Mas a dinâmica começou a mudar com a redução do nível das águas. “Hoje em dia, grande parte do Rio São Francisco não é mais navegável”, lamenta Inácio. A triste realidade do rio pode ser vista por qualquer pessoa que passa pelo cais de Pedra de Maria da Cruz, de onde se vê com frequência um grupo de meninos jogando futebol em uma pequena ilha de areia formada dentro do rio. “O tempo de existência do projeto é um tempo muito curto pra gente acompanhar uma mudança tão drástica como essa, de um rio secando significativamente em um espaço de tempo de pouco mais de 10 anos”, afirma Rangel.
Nos depoimentos colhidos durante a estadia da equipe em cada cidade, o lamento sertanejo fala da seca e do desmatamento nas margens do São Francisco. “Se o rio está indo embora, o que vai ser dessa gente que vive por ele? Se matam o rio, matam as pessoas daqui também, aos pouquinhos”, desabafou Mirian Nascimento, moradora de Pedra de Maria da Cruz.
Depois de oito dias de viagem por seis cidades do sertão mineiro, a sessão em Matias Cardoso fechou mais um ciclo do Cinema no Rio São Francisco. Na plateia, Regina e a família iam para casa com sorrisos no rostos. “O cinema é arte, que nem a dança, que eu gosto tanto. Olha só pra essa cidade, todo mundo veio pra cá. Todo mundo se juntou aqui, se divertiu, riu e chorou… por causa de uma tela de cinema”, disse.