Quando viver é um fardo
O relato de uma jovem no mês da campanha Setembro Amarelo, de prevenção do suicídio; no Brasil, 32 pessoas se matam por dia
Por Mateus Marotta
Maio de 2016, noite em Belo Horizonte. Chorando em seu quarto, uma menina de 18 anos, cheia de marcas de mutilações pelo corpo e desgastada pelas crises, se embebeda de remédio, não para se curar, mas para tirar a própria vida.
Ela havia deixado uma carta de despedida que nunca foi lida. Bianca, nome fictício para preservar sua identidade, não conseguiu êxito na sua segunda tentativa de suicídio e queimou a carta antes de alguém lê-la.
Não foi apenas a carta de Bianca que não foi lida. Por muito tempo, os problemas que ela enfrentava também foram invisíveis para a família e amigos, que não sabiam lidar com o seu sofrimento. “Minha última tentativa de suicídio foi após uma visita da minha mãe. Eu estava muito mal, mas ela não percebia”, disse a jovem, diagnosticada com transtorno de ansiedade após a segunda tentativa de suicídio.
Bianca enfrentava conflitos internos em relação ao seu corpo. “O que me prejudicou bastante foi a minha não aceitação corporal. Eu me sentia gorda ao extremo, me sentia feia, achava meu cabelo feio. Com o passar do tempo, isso virou uma obsessão. Eu me sentia desconfortável para sair à rua e acabei me isolando. Fui levada ao hospital algumas vezes com ataque de pânico, por medo de coisas bobas, como atravessar a catraca do ônibus”, lembra.
Outro obstáculo que contribuíu para o agravamento do quadro da estudante foi a pressão de estudar e trabalhar, que gerou desgaste físico e psicológico, como ela mesma diz. “Com o tempo eu acabei não conseguindo lidar com tudo isso. Mas ao ver que todo mundo ao meu redor dava conta, eu ultrapassava o meu limite para conseguir”.
Ultrapassar os limites eram dolorosos para Bianca, que só queria ficar deitada em paz, sem falar com ninguém e enterrada em seus medos e frustrações, se auto mutilando com frequência para transferir a dor psicológica para o corpo e aliviar a mente da ansiedade e tristeza. “No início não era frequente. Mas, com o passar do tempo, comecei a me machucar cada vez mais e de forma mais agressiva. Cheguei a ficar com dificuldade para andar por causa dos ferimentos. Na maioria das vezes eu me cortava com lâminas, mas também já me queimei, me arranhei, me mordi… cheguei a me esfregar em parede de chapisco”, relata.
As marcas de Bianca pelo corpo eram também feridas abertas para julgamentos. “No início foi bem complicado. Ouvi frases como ‘você tem que se amar mais’, ‘você está deixando a doença te consumir’, ‘vá para igreja’…”, conta Bianca.
Hoje com 20 anos, as marcas no corpo fazem parte do passado de Bianca, que superou as tempestades com medicação, terapia, alimentação, exercícios físicos e conversas. “Falar sobre o que estava acontecendo com as pessoas que realmente me importam diminui o fardo”, diz. “Hoje, muitas pessoas me procuram para falar sobre o que sentem. Eu acabo falando o que eu gostaria de ter ouvido. Normalmente essas pessoas tem baixa autoestima e pouca confiança. Tento passar um pouco disso para elas, tento ajudar como posso”, afirma.
“Não faço muitos planos, não sei lidar muito bem com o excesso de futuro”, diz Bianca em meio a risos, ao comentar que pelo menos um caminho ela já sabe qual seguir após o cursinho. “Quero o fim da desigualdade de classes (risos), e quero também me formar em psicologia. Tive certeza disso após começar a terapia. Tenho certeza que posso ajudar outras pessoas que passam pelo o que eu passei”.
Sorridente, ela deixa claro que hoje sente prazer em viver. “Hoje em dia eu me sinto ótima. Sou uma pessoa muito diferente, aprendi a dar valor as coisas simples, ter mais contato com as pessoas. Ainda tomo a medicação e faço terapia, mas já não tenho mais sintomas. Me sinto recuperada. Também faço atividade física, corro por prazer e estudo muito. Isso me ajuda”, afirma.
Setembro Amarelo
Bianca tem um presente feliz, longe do fim, pois ela quer viver muitos anos. Mas essa não é a realidade de superação de muitas outras pessoas que morrem precocemente.
No Brasil, 32 pessoas morrem por dia em decorrência do suicídio. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), nove em cada 10 casos podem ser evitados. No Brasil, desde 2014 é realizada a Campanha Setembro Amarelo, de prevenção do suicídio.
Neste domingo (10/09), Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, aconteceu a caminhada do Setembro Amarelo, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. O evento foi organizado pela Associação Mineira de Psiquiatria (AMP) e pela Faculdade de Medicina da UFMG, em parceria com o Exército Brasileiro e o Centro de Valorização da Vida (CVV).
“A campanha mostra a existência do suicídio é uma questão muito grave. O suicídio está vinculado com doenças de transtorno mental e é possível ser evitado”, afirma o médico Paulo Roberto Repsold, diretor da AMP. “Todos somos vulneráveis a doenças do tipo. O uso de drogas também pode contribuir com quadros desesperadores. A campanha alerta para estes fatores e para a prevenção, além de colaborar para diminuir o preconceito com o tema”.
Repsold explica que a melhor maneira de evitar o suicídio é ter o diagnóstico certo do paciente e tratá-lo de forma eficaz. “Temos que ficar atentos com pessoas que falam sobre morte, tristeza, e identificar qual a situação da pessoa. Precisamos atuar precocemente e com o diagnóstico certo podemos ajudar e prevenir o suicídio”, disse.
Aliado ao tratamento profissional, Repsold aponta outras atividades necessárias para a prevenção do suicídio. “O esporte, o lazer, a alimentação saudável e a família são fortes aliados no tratamento, pois tudo isso aumenta a resistência da pessoa, tornando benigno o curso da doença. Apoio psicossocial e emocional são importantes. Já uma pessoa que não tem uma vida saudável, e nem o apoio da família, terá mais dificuldade” afirma o doutor.
CVV – Centro de Valorização da Vida
“Serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio”, essa é a proposta do CVV para ajudar pessoas em condições vulneráveis ao suicídio. Atuante desde 1962, o CVV realiza mais de um milhão de atendimentos anuais, por meio de aproximadamente dois mil voluntários em 18 estados, mais o Distrito Federal, através de chat no próprio site, Skype, telefone, e-mail ou presencialmente.
Saiba mais:
CVV: http://www.cvv.org.br/index.php
Setembro Amarelo: http://www.setembroamarelo.org.br/