Reencontro com o passado
Por João Gualberto
Milhares de pessoas passam a madrugada na fila que contorna o quarteirão. O sacrifício é por uma vaga de trabalho: porteiro, auxiliar de serviços gerais, motorista, vigia de loja, operador de telemarketing. Muitos ali têm curso superior, mas, como engrossam o contingente de 13,8 milhões de brasileiros desempregados, se veem na necessidade de batalhar por uma oportunidade mais modesta, e chegam a suprimir do currículo o curso superior para aumentar a chance de contratação.
Obter renda é imperativo porque as dívidas se acumulam em casa. Segundo a Serasa Experian, 61 milhões de brasileiros estão inadimplentes. Este é o maior número registrado pela empresa de análise de crédito desde que o índice começou a ser apurado, em 2012. O que torna o quadro ainda mais grave é que cada negativado deve, em média, a quatro credores diferentes.
Como não há emprego, e as cobranças não falham, o jeito é ir para a rua tentar arranjar algum no peito e na raça. As calçadas do Centro de Belo Horizonte, em um ano ou menos, se encheram de camelôs – e também de moradores, com seus cobertores, papelões e carrinhos de supermercado. Nunca houve tantos ambulantes na área central desde que Fernando Pimentel, ainda prefeito, emplacou sua política de revitalização do hipercentro guardando-os nos shoppings populares. Segundo o governo municipal, são 1.137 sobrevivendo do comércio nas ruas atualmente. Eles receberam nesta semana o ultimato da gestão Alexandre Kalil: o Código de Posturas não permite camelôs, e eles precisariam negociar a realocação para algum centro popular de compras.
Houve resistência, passeata dos trabalhadores pelas ruas, piquetes, e veio a resposta do poder público. O Choque da PM entrou em ação com a parcimônia costumeira: violência, spray de pimenta e balas de borracha que resultaram em 14 feridos. Os fiscais da Prefeitura estão nas ruas para coibir a volta dos camelôs.
Diversamente, uma faixa dos trabalhadores segue em expansão no Brasil, a de crianças, especialmente nas zonas rurais. Segundo técnicos do IBGE que analisam o fenômeno, desde 2013, vêm sendo registrado aumento na quantidade de meninos e meninas, entre 5 e 9 anos, trabalhando. Eram quase 80 mil nessa condição em 2015, e os especialistas acreditam que se mantenha a tendência de crescimento em razão da conjuntura.
Já no outro extremo da especialização, pesquisadores universitários veem somente uma saída para a crise político-econômica do país: o aeroporto. O Ministério de Ciência e Tecnologia foi extinto; os programas de fomento à pesquisa científica, sejam atrelados a órgãos federais ou estaduais, vêm sofrendo cortes orçamentários drásticos; e as bolsas de pós-graduação não sofrem reajuste desde 2013. Para as cabeças estudiosas e dedicadas por vocação e gosto pelo progresso da ciência, a alternativa é o exílio em instituições estrangeiras, para onde carreiam suas descobertas e patentes. Apenas em 2015, de acordo com a Capes e o CNPq, foram 50 mil pesquisadores a dar “bye, bye, Brazil”.
E um dois destinos preferenciais dos brasileiros, não só cientistas, é Portugal. Já são quase 100 mil na “terrinha”. Não parece muito, mas já formam um grupo de imigrantes suficientemente grande para aquecer o mercado imobiliário por lá. Dá para lembrar ‘Terra Estrangeira’, o filme de Walter Salles Jr., com a Fernanda Torres, um dos marcos da retomada do cinema nacional, rodado na época do governo Collor. Claro que há outros destinos escolhidos pelos compatriotas que fogem da crise, como Estados Unidos e Canadá. Fato é que, nos últimos anos, cresceu em 40% a quantidade de brasileiros que passam pela alfândega declarando a intenção de não voltar tão cedo.
E na política doméstica? Bem, temos um governo não-eleito com grande chance de padecer do mal da “sarneyzação”, isto é, de se arrastar até o fim do mandato sem governar de fato, apenas cruzando a linha de chegada como um “walking dead”. Contra esse quadro, a oposição brada, dos plenários e das ruas, “Diretas, já!”. Até a camiseta com a Graúna do Henfil foi ressuscitada.
Por vezes, brota a impressão de que estamos voltando no tempo, andando para trás. Ou, na verdade, estamos, como projeto de nação, apenas retornando ao lugar e ao papel sempre reservado para nós?
É assustador como os poucos progressos perceptíveis das últimas décadas se corroeram em tão curto tempo. Destruir é bem mais fácil do que construir. E reconstruir será custoso demais em um cenário de crises híbridas.
Duas constatações. Uma, o modelo lulista de desenvolvimento via inclusão de novos consumidores no mercado de crédito evaporou. Nem o ingresso em cursos de graduação via crédito estudantil se sustentou, visto a enorme evasão nas faculdades privadas. Como pagar mensalidade sem emprego? E, duas, o discurso do “rumo certo”, do país “de volta aos trilhos”, é piada triste. Há poucas expectativas e indicadores positivos a se agarrar, e, quando surgem, não dizem qualquer respeito ao governo ou à atividade política, mas, ao contrário, se dão apesar deles.
“Muda, Brasil!”, senão os brasileiros é que se mudarão. Ou, como diz um adesivo de carro, “JK: procura-se outro”. O passado nos espera.
Política
João Gualberto
João Gualberto
Jornalista, economista e cientista político.