Reformas sem chefe de Estado


Por João Gualberto Jr.

Lula Marques/ AGPT

O Senado aprovou a reforma trabalhista, aquela que teve um terço dos destaques redigido nos departamentos jurídicos das associações patronais quando da tramitação na Câmara. Está certo, os patrões sabem bem o que é o melhor para o trabalhador, e isso desde os tempos áureos do Pelourinho e do Cais do Valongo, época boa em que ainda não se havia criado o maior e mais cruel empecilho à empregabilidade no Brasil, o pagamento de salário.

Pois os senadores velaram e sepultaram com folga a CLT de Vargas, e praticamente com o dobro de votos favoráveis à proposta governista frente os contrários. Outra vez, grita aos ouvidos o enigma da esfinge: como um presidente sem voto, com aprovação popular na casa da nulidade e denunciado formalmente por corrupção pelo Ministério Público tem sido capaz de reescrever a história? Como Temer, sem qualquer legitimidade da sociedade, propõe e consegue alterar regras essenciais, promovendo mudanças que impactam profundamente a vida de todo o corpo social que o rejeita?

Algumas especulações. A primeira e mais complexa brota exatamente dessa relação de rejeição, que melhor seria traduzida por indiferença, que, por sua vez, traduz-se em ignorância. Uma presidente eleita num processo eivado de irregularidades, espertezas e tramoias contábeis é derrubada. O substituto, com sua gangue, pinta o sete e pode acabar derrubado também. Em sua órbita própria, a sociedade dá de ombros, segue seu giro gravitacional. Ela ignora a política, e de forma esclarecida e consciente: apesar de pagar impostos (a contragosto), o povo prima por odiar e negar a política, os políticos e suas instituições. Segundo a lei, somos obrigados a votar, e os índices de abstenção chegam a 25%.

A rejeição à política, nós sabemos, é um velho projeto pedagógico de preservação de status quo no Brasil. Nossa Carta declara que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, eis uma tradução de democracia. Contudo, uma vez que esse povo abdica do exercício do poder, e a considerar a sábia máxima de que o poder não deixa vácuo, ora, alguém o exerce no lugar do povo que prefere se ausentar da praça. Também sabemos quem são os que governam o Brasil e governam Temer, inclusive.

Não nos esqueçamos: o usurpador foi alçado ao comando da República para fazer o serviço sujo numa manobra patrocinada pelos donos do poder, a quem interessa toda essa sujeira. De toda forma, seria ingênuo inferir que os sucessos de governabilidade atual devem-se exclusivamente à sintonia ideológica. Não mesmo. As práticas típicas do parlamentarismo, outra vez, dão mostras de que imperam no sistema presidencialista brasileiro.

Com o delay de um ano, o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso disse à imprensa entender que foi a lógica parlamentarista de voto de censura, ou algo do tipo, que sustentou o impeachment de Dilma Rousseff. A Justiça tarda, e também falha. Por que Dilma caiu? Porque perdeu o Congresso e a governabilidade. Foi o mesmo com Collor. Pedaladas e Fiat Elbas são meros pretextos, formalidades que o sistema requer. Ora, ora, a um chefe do Executivo que não conta sequer com um terço da Câmara só resta mesmo voltar para casa. Assim se dá com um primeiro ministro que perde a maioria: ele é destituído, seu gabinete é dissolvido e novas eleições legislativas ocorrem. Mas, isso, no sistema parlamentarista.

Pois, se Dilma foi censurada e deposta pelo Parlamento apesar de ser presidente com voto, agora, Temer, sem voto, ainda controla do Legislativo. Deu prova disso sobre a reforma trabalhista e dará outa vez na CCJ da Câmara, que apreciará e rejeitará a acusação de Rodrigo Janot conta ele. Se Dilma era a chefe de Estado que perdeu as condições de governar, Temer é chefe de governo. O Brasil não tem chefe de Estado: o presidente não tem o aval do sufrágio que delega, é descolado da população, que o rejeita e ignora, e sequer tem condição moral de ocupar o posto, já que é o primeiro da história denunciado por corrupção durante o exercício da função. A Presidência da República do Brasil, sem estadista, encontra-se desprovida de símbolo e de sentido.

Mas Temer governa. Como? Porque tem a expertise da linguagem e da empatia com o grupo que controla o Congresso. O centrão, esse agrupamento amorfo, de parlamentares anônimos sem bandeiras, estados ou ideologias, são os donos do Parlamento. A única linguagem que eles compreendem, a mais palpável e grosseira, é a do dinheiro. São prostitutos: pagou, fazem o que se quer.

O chefe do centrão era Cunha, que foi muito hábil em, primeiro, comprar todo o bloco via financiamento por caixa 2, e, depois, eleger-se presidente da Câmara impulsionado por ele. Por fim, o ex-chefe de quadrilha da Câmara mobilizou o baixo clero para derrubar Dilma, sua inimiga particular.

Essa foi uma condição rara em que o centrão permitiu-se ter um líder, usar uma cara. Mas acabou. Filho deformado e bastardo de um sistema eleitoral podre, o centrão é a garantia de governabilidade no Brasil contemporâneo. Não há governo sem ele, e Temer e asseclas conhecem bem o modus: compram votos, executam emendas, loteiam cargos, pagam o michê, gozam do poder.

Assim, alheia à sociedade, a macropolítica vive de si, por si e para si, mas sustentada pelo contribuinte, um ignorante esclarecido. E o assustador é que os quadrilheiros governam e são governados com desfaçatez enquanto se prescinde de liderança de chefe de Estado. Em nome de quem o poder é exercido e os regramentos sociais são deformados, reforma após reforma, ceifada após ceifada, nossas instituições vão muito bem, obrigado.

Política

João Gualberto Jr.

Jornalista, economista e cientista político.