Ricardo


Por Artênius Daniel

Publicado em 04/05/2018

Reprodução/ Instagram https://www.instagram.com/henzo_triadi_clowns

Um homem conhecido apenas como Ricardo. Mas pode chamar também de Tatuagem. Pega nada. São Paulo, fim do mundo, 30 de abril de 2018. Bom dia. A vista é da hora, mas o bagulho é tenso Jão. Centrão louco mano, cidade louca, prédio é mato. Ricardo. Acordou cedo na noia de ter se esquecido de alimentar os gatos.

Putz!

Vai que um se desespera de fome e se joga lá de cima? Nove vidas é pra quem tem. Tá faltando é rato na ocupação, tá ligado? Levantou-se, encheu as tigelas, molhou todas as plantas do apartamento e chegou à janela. Avenida Rio Branco, a torre da igreja, manhã de segunda-feira. Porra, é no centro de tudo mano. Tem tudo, farmácia 24 horas, Subway, o bagulho é louco, é tudo. Não é ali do lado que Caetano compôs a música da Ipiranga com a São João? Música chata da porra mano, mas representa. Estilo centrão, fortalece. Foi até à cozinha, meteu foi o suplemento de uma vez.

O dia começa é rachando.

Albumina, Whey, Colágeno Hidrolisado. É a bomba rapaz, é pra dobrar mesmo.

No apartamento, o nome de uma das filhas rabiscado na parede. Treta com a ex-mulher, morando sozinho, vida louca, aquela parada de Deus e das linhas tortas. Ricardo se vestiu e desceu as escadas. Na ocupação ele tem função. Coordena o nono andar e ajuda no corre geral.

Todo mundo o conhece. “O Tatuagem é suave. Aquilo ali só tem tamanho”, cochicham. O prédio tem gente de todo canto. Muita mulher, muita criança, maluco da África, da Bolívia, da rua, da zona sul, da zona leste e também ele.

Ricardo.

Um homem conhecido apenas como Ricardo. Saiu da ocupação e foi buscar o Rauan em casa, ali perto, para irem até à 25 de Março. “Bora neguim, amanhã é feriado mas hoje cê rala filhão”. Se deixar, vagabundo zoa mesmo. Rauan e Ricardo são carregadores. Trampam na carga e descarga dos caminhões de importados na maior região comercial do país. Mermão, é caixa pra caralho. Sapato, pen drive, guarda chuva, capa de celular, caixa de som, batom, guardanapo, tudo vindo de fora. Caralho, será que maluco não produz mais nada no Brasil não? A 25 está menos cheia nesse dia, fluindo.

Muita gente na praia né? Feriado emendado mano. Dia do trabalhador. Melhor pro trabalho de quem ficou. Mas o problema é que o china mandou parar o caminhão na logo na subida. Vish. Foda mano, descarregar na ladeira. Embaçado. Mas Deus ajuda. Correria, fé, disposição, tem gente que não arruma é nada. Botar a mão pra cima mesmo, tá ligado? No meio das caixas, Ricardo pensou em quem é que monta tanta coisa assim lá do outro lado do mundo. Já ouviu falar que é tudo escravo, chicote e a porra toda. Rapaz, será? No final do trampo, ele e Rauan receberam do china o do dia, em dinheiro, sem recibo sem nada. Ricardo não paga Previdência. Na volta pra casa, o friozinho apertou. Ricardo pôs blusa. Passar ali na Roosvelt, trombar os moleques, fumar uma bomba, né não?

Opa, tá lá a galera do street mano! Porra, que alegria mano! Muita gente patinando, fim da tarde, clima bonzão.

Ricardo é viciado no roller, pratica há vários anos e, sempre que pode, ajuda geral a desenvolver. Gosta mesmo é de achar um aluno de rua, explicar os movimentos com calma: “Pega a visão, olha, esquerda e direita. Cruzou. Esquerda e direita.” Ensina com sorrisão e tudo.

São Paulo é cidade de aprender.

Todo dia. Impossível viver em um lugar desse e não aprender nada. Voltou andando para a ocupação. Amanhã é feriado, descansar, dar aquela brisada. Ricardo não é de sair. É do trabalho pra casa. De vez em quando patinar na Paulista quando fecha.

Porra, tá astral a paulista quando fecha né mano?

Já de noite, quando atravessou o Largo do Paissandu, antes de entrar no prédio, Ricardo pensou no futuro. Havia vendido a moto há algum tempo, guardou uma grana, mas e agora? Tinha as filhas, tinha o corre do trampo e tinha a reponsa da ocupação também. É gente pra caralho, que precisa de apoio uns dos outros, incluindo o dele. A vida ali é assim. Se geral não tá dentro, não tem ninguém dentro.

A prefeitura já prometeu casa pra mais de milhão de vez. A tal da fila e pá. Nada. Maior caô essa fila. Foda também acreditar em político mano. Nós por nós. Ricardo subiu para o apartamento e quase espremeu um dos gatos na parede quando abriu a porta. “O que cê tá fazendo aí maluco? Vai, pula pra lá”. No sofá, rolou o Instagram com a televisão ligada. Hoje tem novela mas não tem jogo. Amanhã feriado mano. Só brisar. Talvez deslizar no parque. Vibe boa.

Reprodução/ Instagram https://www.instagram.com/henzo_triadi_clowns

Ricardo adormeceu em um sonho curto, mas que durou horas. Daqueles que confundem o tempo da cabeça com o do relógio. Sonhou com a mãe. Não sonhava com ela tinha uma cara já. Acordou com o som da primeira explosão. O susto cortou o sonho ao meio. Foi à cozinha tomar um copo d’água, imaginou que era barulho da rua, transformador estourado, coisa da Eletropaulo de novo. Demorou alguns minutos para ouvir gente gritando dentro do prédio. “Sai. É fogo. Sai. Desce”. Ricardo rompeu pela porta, no sobressalto, e da escadaria já viu a fumaça. Tinha muito mais gente gritando. Pensou no pessoal todo do nove.

Caralho! É descer todo mundo. Bateu nas portas do andar, gritou, acordou quem ainda dormia. Geral de pijama no corredor. Logo as escadas começaram a encher de gente, carregando tudo o que podiam. Onde seria o fogo? Se for em um andar mais abaixo, será que tem jeito de passar? Uma família não quis sair. “Não é nada não menino, incêndio em um apartamento só. Já acaba” Ricardo se desesperou. Era o responsável, não podia deixar.

“Sai. Vai pegar fogo. Quer morrer? Desce porra! Desce!”.

No correr das escadas, acompanhando as primeiras famílias, descobriu que o fogo era no quinto. Uma luta para atravessar. O corpo já estava quente, o peito acelerado, a fumaça ardendo os olhos. Embaixo, na rua, já havia muita gente que conseguiu sair. Alguns voltavam para pegar documentos, dinheiro, o que fosse. Na calçada, Ricardo conversou com o antigo porteiro, Gerivaldo, que estava assustado. Os dois fizeram as contas.

Porra, ainda tinha muita família no prédio.

Ricardo resolveu entrar de novo. Na ocupação a regra é assim: ou tá todo mundo dentro ou não tem ninguém dentro. Na segunda viagem, o fogo já chegava também ao sexto. Estapeou as portas em todos os andares e tentou arrombar algumas no medo que alguém estivesse dormindo ou não estivesse entendendo o que acontecia. Carregou sacolas, cobertores, televisão, vaso de planta, ajudou adultos e crianças, ensinou os menores a não respirarem a fumaça. Quando chegou novamente embaixo, olhou para cima e o incêndio já era enorme.

“Eu vou de novo”, disse. “Cuidado Tatuagem”, alguém alertou.

Estava seguro. Era forte. Trabalhava carregando coisas todos os dias. Agora ia carregar todo mundo pra fora dali. Subiu as escadas na terceira viagem pensando na Selma e nos gêmeos. Eles não estavam lá embaixo. A adrenalina tirou de Ricardo qualquer medo, como se fosse apenas uma manobra nova do roller, sem risco de queda.

Não achou Selma, mas encontrou quatro crianças de outro andar.

O prédio ardia. Sorriu para elas. Uma mulher remoeu em um grito de “misericórdia” quando Ricardo chegou à rua carregando, sozinho, todas as quatro nos braços. Ofegava. Agora a rua já estava cheia de gente. Bombeiros, imprensa, curiosos. A ocupação estava mesmo pegando fogo. O centrão era brasa, as famílias em pânico. Doideira mano. Cena de filme. É a desgraça. Não dava para tirar mais ninguém. Dava?

Ricardo olhou para cima e, pela primeira vez, chorou como os outros já choravam. Se deu conta que também ele ia perder, naquela noite, tudo o que tinha. A casa, os móveis, onde estavam os gatos? Nove vidas é pra quem tem. Ficou em pé, paralisado por alguns poucos minutos, tentando ver se o fogo já tinha chegado ao nono. Foi quando lembrou-se novamente da Selma e dos gêmeos. Pensou se deveria voltar. Ninguém mais estava voltando. O calor já rachava.

Cara, mas e a Selma? E os gêmeos? Não demorou para decidir. A última viagem de Ricardo foi solitária, como grande parte dos dias que viveu ali.

As paredes já eram labaredas, as quais atravessou de uma vez. Era como se todo o seu corpo, suas ideias e lembranças queimassem juntas. Os guarda-chuvas e pen drives do china, a comida dos gatos, os moleques da Roosvelt, a moto que vendeu, o centrão. A noite já era imensa. Salvou crianças, salvou idosos, mas não havia salvado ainda a Selma nem os gêmeos. Onde estavam? Ia continuar subindo mais e mais. Porém, quando chegou ao oitavo, o fogo não deixou continuar. Tentou voltar novamente ao sétimo e também não pôde. Estava preso. Ricardo chegou à janela e acenou para quem estava lá embaixo. Conseguiriam tirá-lo? Ricardo esperou aqueles minutos com fé, lembrando que, mais cedo, naquela mesma noite, havia sonhado com a mãe. Não aguentava mais o calor e já tinha parte do corpo para fora.

Foi quando o sargento Diego e outros bombeiros apareceram no prédio da frente. Foi jogada uma corda, a qual Ricardo enrolou em torno do próprio corpo. Nesse momento, as câmeras da televisão já o filmavam. Ficaria famoso. Ricardo. Um homem conhecido apenas como Ricardo. Apesar da distância, ele e o sargento se olharam nos olhos, com a calma de que estavam acertando os passos ensaiados para aquele momento sua vida. Em poucos segundos seria puxado para fora do oitavo. E então ele poderia ajudar o sargento e os dois juntos iriam salvar a Selma e os gêmeos. Tudo certo. Ele ia continuar tirando as pessoas de lá. Na ocupação era assim. Ou geral tá dentro ou não tem ninguém dentro. Ele deixou de ver o prédio. Olhava apenas para frente. Ricardo fechou os olhos, dizendo pra si mesmo que iria dar tudo certo. Desse jeito, sem ver o que acontecia, esperou o puxão da corda.

Ricardo. Um homem conhecido apenas como Ricardo.