Sexo explícito como ingrediente artístico

Produções independentes de cinema, como “Tomcat”, “Love” e “Um Estranho no Lago”, trazem uma nova abordagem do erotismo, com ênfase no realismo


Por Homero Gottardello

Cena do filme “Ninfomaníaca”, do diretor Lars von Trier: perturbando uma zona de tolerância social Zentropa/Divulgação

Enquanto a arte brasileira enfrenta uma nova onda de patrulhamento, o cinema internacional desafia a caretice e retoma um elemento que já foi testado em diversos outros momentos, mas que até agora não encontrou seu lugar de direito na telona: o sexo explícito. As tentativas de inseri-lo como ingrediente artístico em dramas e até mesmo em filmes de ação ainda esbarra no fator estético. Afinal, se o sexo implícito foi consagrado por personagens que vão do agente James Bond à enfermeira Hana, de “O Paciente Inglês” (“The English Patient”, de 1996, coprodução norte-americana e britânica), as imagens ginecológicas ainda causam constrangimento em boa parte da audiência. Quando a relação é homossexual, as coisas chocam ainda mais. Mas existe um corajoso grupo de diretores europeus que aposta em uma nova abordagem para este componente, com um viés mais psicanalítico e ênfase no realismo.

Os filmes “Tomcat” (“Kater”, de 2016, produção austríaca), do diretor Händl Klaus, “Love” (idem, de 2015, coprodução francesa e belga), do diretor Gaspar Noé, e “Um Estranho no Lago” (“L’inconnu du lac”, de 2013, produção francesa), do diretor Alain Guiraudie, são exemplos desta nova investida. Enquanto estes primeiro e o segundo títulos foram muito bem de público, focando as relações entre seus personagens, o terceiro também conquistou a crítica, recebendo 18 prêmios internacionais (além de ser indicado para outros 37) com uma mistura de erotismo e suspense.

“Eu não queria apenas captar um beijo ou filmar os atores nus mas, sim, passar a exata sensação daquilo que os personagens vivenciam. Algumas pessoas gostam mais de dinheiro, outras de drogas ou cinema, mas todas gostam de sexo. Então, por que não mostrar isso na tela, de uma forma direta e objetiva?”, indagou Noé, durante a conferência de imprensa do Festival de Cannes de 2015. “Love” foi o primeiro filme com cenas de sexo explícito filmadas em 3D a ser indicado para um prêmio (Queer Palm), na prestigiadíssima mostra francesa. “Não vejo esta abordagem como uma transgressão. O cinema tem seus propósitos e ‘Love’ é apenas um filme”, completou o diretor.

Já para Guiraudie, esta nova inserção do sexo explícito no cinema tem um caráter maior: “No caso de ‘Um Estranho no Lago’, foi muito importante falar sobre este microcosmo da homossexualidade, mas de uma forma humana, revelando os dois lados de uma moeda”, declarou o cineasta para um especial do Festival de Cinema de Melbourne (MIFF). “O lago é o céu e o inferno, o cenário de uma paixão perigosa que faz o contraponto entre desejo e moralidade. Na verdade, a grande questão do roteiro é ‘o quão longe alguém vai por desejo?’. Então, tínhamos que mostrar a sexualidade por trás da trama e, entre mostrá-la implícita ou explicitamente, optamos por seguir o que o script mandava. Obviamente, poderíamos ter filmado tudo e feito cortes, mas não quis me omitir”.

Cartaz de “Clip”, filme sérvio da diretora Maja Milos, que contabiliza quatro premiações e sete indicações Film House Bas Celik/Divulgação

Moralismo e escândalo

A professora universitária, crítica literária e doutora em Filosofia, Eliane Robert Moraes, reconhece que erotismo e pornografia são temas polêmicos e não apenas no cinema, mas no entendimento das pessoas. “Há uma diferenciação entre o erótico, que apenas sugere, e o pornográfico, que mostra tudo. O moralismo coloca o sexo explícito como uma coisa feia, até suja. É um conceito que varia de época para época, mas, em geral, a pornografia atenta contra o pudor e ela o faz, deliberadamente, transgredindo a moral”, pontua ela. “O intuito de produzir uma excitação é sempre confinado e, quando ele sai deste gueto, escandaliza. Isso acontece quando o cinema de arte deixa de obedecer às regras e adota elementos de um gênero menor – pornô – perturbando uma zona de tolerância social”.

Na verdade, o advento da internet deu uma nova dimensão para a pornografia. De acordo com a revista britânica “The Week”, hoje, a indústria cinematográfica fatura quase US$ 100 bilhões (o equivalente a R$ 312 bilhões), anualmente, só com filmes pornôs. Uma em cada quatro buscas realizadas na web se refere a pornografia e arquivos do gênero respondem por 35% de todos os downloads feitos, em nível mundial. Diariamente, 266 novos sites pornôs são criados e 25% dos acessos a este tipo de conteúdo é feito por mulheres. Some a isso o fato de as estrelas deste segmento serem, hoje, infinitamente mais atraentes que as de Hollywood – quando o assunto é “performance”, então, não dá nem para compará-las – e chegamos a um novo status: o de arte visual.

“Meu filme não é um amontoado de cenas de sexo explícito, mas uma abordagem profunda da história de um casal que vive e sobrevive a uma crise. É uma história sobre culpa e perdão”, argumentou o diretor Händl Klaus, em entrevista ao Prêmio Teddy do Festival Internacional de Berlim (Berlinale). “Foi muito difícil encontrar elenco para os personagens principais, porque, inicialmente, eu tinha pensado em um casal convencional. Os atores liam o texto, gostavam do script, mas não se dispunham a fazer as cenas de nudez. Mas elas eram absolutamente necessárias, porque é uma abordagem muito íntima da relação. Então meu produtor – Antonin Svoboda – sugeriu atores ou atrizes do mesmo sexo”.

Da mesma forma que, no século 19, a Madame Bovary de Flaubert escandalizou a sociedade, retratando uma mulher adúltera, dentro de um clássico da literatura, o sexo explícito agora aparece onde não é esperado. “A pornografia no sexshop ou na videolocadora não tem poder de transgressão. A prostituta, na zona, é legal, mas ela não pode estar na porta da escola, porque nossos filhos, nossas famílias, não devem ser importunados”, avalia a professora Eliane Robert Moraes. “O Marquês de Sade, por exemplo, não foi um autor escandaloso apenas por escrever obras obscenas. O escândalo, no caso dele, foi misturar filosofia com pornografia, foi colocar Rousseau lá no meio, foi botar Lucrécio, Diderot, Montesquieu lá no meio. Foi trazer a discussão filosófica para o meio de orgias, das mais imorais”.

Bom, a melhor maneira de o leitor formar sua opinião sobre este assunto é, obviamente, assistindo alguns filmes. Então, listamos abaixo as produções mais comentadas e premiadas, nos últimos anos, que podem ser baixadas em sites especializados, sem maior dificuldade. Vale a pena conferir.

– “Tomcat” (“Kater”, 2016 – Áustria), do diretor Händl Klaus

– “O Auge Humano” (“El Auge del Humano”, 2016 – coprodução Argentina/Brasil/Portugal), de Eduardo Williams

– “Na Vertical” (“Rester Vertical”, 2016 – França), de Alain Guiraudie

– “Love” (idem, 2015 – coprodução França/Bélgica), de Gaspar Noé

– “Dakkar” (idem, 2015 – França), de Maud Alpi

– “Muito Amadas” (“Much Loved”, 2015 – coprodução França/Marrocos)

– “The Sex Temple” (“Sextemplet”, 2015 – Suécia), de Johan Palmgren

– “Um Estranho no Lago” (“L’inconnu du lac”, 2013 – França), de Alain Guiraudie

– “Ninfomaníaca 1 e 2” (“Nymphomaniac Vol. I e II”, 2013 – coprodução Dinamarca/Alemanha/Bélgica/Reino Unido/França), de Lars von Trier

– “Clip” (“Klip”, 2012 – Sérvia), de Maja Milos

– “Desire” (“Q”, 2011 – França), de Laurent Bouhnik

– “Asshole” (“Gandu”, 2010 – Índia), de Qaushiq Mukherjee