Sob investigação
Ouvidoria apura denúncia de fraude nas aprovações da Lei de Incentivo à Cultura
Por Lucas Simões
A Ouvidoria do Estado apura uma série de denúncias relativas a irregularidades na aprovação de projetos na Lei Estadual de Incentivo à Cultura (LEIC) para 2017, principal instrumento de fomento às artes em Minas Gerais, conforme revela com exclusividade O Beltrano.
Para este ano, a LEIC recebeu 856 inscrições e aprovou 156 projetos, destinando a eles R$ 22,5 milhões. Os projetos se distribuem em nove categorias: artes cênicas, audiovisual, artes visuais, música, literatura, preservação e restauração do patrimônio material, pesquisa e documentação; centros culturais e áreas culturais integradas.
No dia 7 de maio, alguns grupos de produção cultural, entre eles o Produtores MG, o Matraca e o COMUM, protocolaram denúncia na Ouvidoria do Estado de que vários projetos aprovados pela Comissão Técnica de Análise de Projetos (CTAP), da Secretaria de Estado de Cultura, não atendiam às normas da lei.
Há cerca de dois meses, produtores das três organizações procuraram o presidente do CTAP, Felipe Rodrigues Amado Leite, para apurar suspeitas de irregularidades em projetos aprovados pela LEIC em 2016, com execução e uso dos recursos previstos para 2017. Em cinco reuniões com Felipe Amado, na Cidade Administrativa, entre fevereiro e março, os produtores analisaram uma amostragem de 20 projetos aprovados pela LEIC e constataram erros, falhas e discrepâncias técnicas, todas reunidas em relatório protocolado na Ouvidoria do Estado junto à denúncia.
A denúncia, obtida pela reportagem, cita, por exemplo, projetos de música que previam a contratação de artistas ou trabalhos sobre suas obras que não apresentavam a carta de anuência do artista, do produtor credenciado, do agente ou de procurador constituído por procuração judicial autorizando o projeto, conforme prevê o item 5.4.4 do edital.
Projetos de shows em parques e praças públicas e exibição cinematográfica ao ar livre não apresentaram as planilhas dos custos de serviços de apoio como colocação de gradis, banheiros químicos, ambulância, segurança etc, violando o item 3.6.3 do edital, que prevê descriminação de documentos e orçamentos obrigatórios relativos à equipe e projeto.
Em um trecho da denúncia, os produtores frisam que “um dos projetos aprovados estava tão mal escrito que não era possível identificar a proposta. Além disso, a planilha financeira estava com os campos de discriminação da despesa em branco”, contrariando as especificações básicas do item 3.1 do edital, que requer apresentação da Planilha Orçamentária no ato da inscrição.
A denúncia também levanta suspeita quanto ao julgamento dos avaliadores da CTAP, que teriam dado notas altas para projetos com documentações e informações incompletas ou mesmo ausentes. “Encontramos ainda projetos sem a página da equipe, outros sem assinatura dos membros da equipe (nem no currículo) e outros com um único membro na equipe. Todos esses com notas altas ou mesmo total no critério ‘Potencial de realização do empreendedor e da equipe envolvida no projeto’. (…) projetos com mais de 7 pessoas na equipe, todas de Minas Gerais, com as devidas assinaturas e currículos exemplares receberam pontuação inferior e observação de inexperiência ou equipe insuficiente. (…) identificamos um projeto com uma única pessoa na equipe que recebeu nota máxima no critério. Também há projetos aprovados com nota máxima neste critério cuja equipe é inexperiente na área de atuação”.
O presidente da CTAP, Felipe Amado, confirmou aos produtores culturais, em reunião realizada em 29 de março, na Cidade Administrativa, que “na reunião do colegiado, a comissão (da CTAP, composta por 54 membros do governo e sociedade civil) deliberou por não aprovar alguns projetos. Com essa decisão do colegiado, algumas notas (dos projetos) tiveram que ser reduzidas. E isso ocorreu em alguns pontos, como exemplaridade da ação, baseado na discussão que houve do colegiado”. Ele confirmou que “obviamente é preciso verificar caso a caso para ver como foi feito esse ajuste na nota”. Porém, o presidente da CTAP não soube responder quais critérios foram usados pela comissão da CTAP para modificar a nota dos projetos e nem como as propostas que não cumpriram os requisitos técnicos básicos da comissão de análise foram aprovadas.
Por meio da Lei da Transparência, que permite a qualquer cidadão a solicitação de documentos e informações públicas integrais ou parciais, sem violar a privacidade de instituições e pessoas, o grupo Produtores MG solicitou à CTAP a cópia digitalizada apenas dos trechos dos projetos flagrados com irregularidades, sem expor nomes ou informações pessoais dos proponentes. Porém, a CTAP, para disponibilizá-los, exigiu a assinatura de um termo de Direitos Autorais, que na prática proíbe a exibição ou compartilhamento dos documentos de forma pública.
Na denúncia, os produtores lembram desse pedido que lhes foi negado. “Quando solicitamos a cópia dos mesmos (projetos aprovados com irregularidades), que devem ser cedidas à sociedade civil por direito, assim como são disponibilizados os projetos inscritos na Lei Rouanet, elas nos foram negadas. Quando solicitamos por e-mail, ficaram condicionadas à assinatura de um termo que diz respeito aos direitos autorais e nos impede de divulgar e/ou compartilhar as informações que, repetimos, são públicas”.
Procurada por O Beltrano, a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado de Cultura não retornou o pedido de entrevista com o presidente da CTAP, Felipe Amado, mas enviou nota no dia seguinte a publicação (veja abaixo). A Ouvidoria do Estado tem até 60 dias para dar um parecer sobre as denúncias protocoladas pelos produtores culturais e encaminhar sua análise à CTAP e à Secretaria de Estado de Cultura.
Cenário
Não é de hoje que a Lei Estadual de Incentivo à Cultura causa polêmicas e controvérsias. Desde 2013, a legislação passa por um efeito chamado de “bola de neve”, fenômeno reconhecido pelo atual secretário de cultura, Ângelo Oswaldo. Na prática, os projetos vinham se avolumando ao longo dos anos por conta das dificuldades e demora na captação de patrocínio. Isso acontecia porque a LEIC permitia, até 2014, que projetos aprovados pelo Estado, mesmo sem patrocínio, pudessem captar patrocinadores até o ano seguinte, o que causou a insuficiência de recursos e o efeito “bola de neve”, chegando a cancelar o edital de 2015 por falta de verba.
Para se ter uma ideia da nebulosidade das contas relativas à Lei, em maio de 2015, projetos aprovados em 2014 já haviam consumido R$ 68 milhões do total de R$ 83 milhões previstos para 2016, prejudicando centenas de novos projetos. Por isso, o orçamento de 2016 para projetos executados em 2017 foi reduzido para apenas R$ 15 milhões dos R$ 83 milhões iniciais, tendo sido elevado, posteriormente, para R$ 22, 5 milhões.
A expectativa é que mudanças no edital da LEIC 2017 sejam divulgadas ainda este mês, quando novas regras serão publicadas no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais. Entre as novidades adiantadas ano passado pelo secretário Ângelo Oswaldo, está uma diferenciação inédita entre projetos comerciais e de cidadania, visando promover propostas de cunho artístico em detrimento de projetos de entretenimento marcadamente comerciais.
A Lei e a Comissão
A Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais possibilita às empresas dedução no Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) de parte dos patrocínios culturais. Na prática, a cada ano o Governo de Minas estabelece um valor teto para o volume total de patrocínios. Esse montante varia, anualmente, de acordo com a capacidade financeira e disposição do Estado em investir em cultura.
A responsável por avaliar todos os projetos inscritos na LEIC é a Comissão Técnica de Análise de Projetos (CTAP), da Secretaria de Estado de Cultura, que estabelece padrões técnicos e socioculturais de avaliação previstas em edital, sob pena de eliminação do projeto inscrito, em caso de descumprimento das normas (veja a relação completa dos critérios avaliativos no fim do texto).
A comissão de análise da CTAP foi composta por 54 membros em 2016, sendo metade da sociedade civil, indicado por entidades culturais representativas, e indicados pelo próprio governo. A cada ano uma nova comissão é escolhida e o número de pareceristas também pode ser alterado. Uma das novidades para 2017 é que as reuniões entre os membros da CTAP agora serão abertas a qualquer cidadão. Apesar disso, uma das principais críticas sobre o processo de recrutamento dos pareceristas da sociedade civil, sendo sua maioria artistas, é que eles recebem R$ 450 para trabalhar durante um mês e meio, em média, analisando os projetos, sendo vetada a participação de qualquer parecerista em editais. Diante disso, muitos pareceristas recusam a proposta de integrar a CTAP e, na ausência de membros da sociedade civil, o próprio governo acaba indicando avaliadores para compor a comissão.
Todos os pareceristas da CTAP avaliam os projetos a partir de três critérios principais, subdivididos em categorias:
1) Eliminatórios: prevendo a desclassificação dos projetos que não tiverem caráter prioritariamente artístico-cultural;
2) Técnicos: em uma soma de 30 pontos, os projetos são julgados nos quesitos de exemplaridade da ação (15 pontos), adequação da proposta orçamentária e viabilidade de execução (5 pontos) e detalhamento específico da planilha (5 pontos);
3) Fomento: em avaliação de 70 pontos distribuídos para a universalização do acesso do projeto ao público (10 pontos), valorização da memória e do patrimônio cultural material e imaterial do Estado de Minas Gerais (8 pontos), permanência da ação (7 pontos), fortalecimento e fomento à produção cultural (15 pontos), incentivo à formação, à capacitação e à difusão de informações (10 pontos), regionalização da produção cultural e artística mineira (10 pontos) e descentralização e circulação do projeto (10 pontos).
Secretaria de Cultura divulga nota
Um dia após O Beltrano divulgar com exclusividade investigações da Ouvidoria do Estado de Minas Gerais para apurar fraudes na Lei Estadual de Incentivo à Cultura (LEIC) para 2017, a Secretaria de Estado de Cultura (SEC) se posicionou sobre o caso. Em nota divulgada pela assessoria de imprensa na manhã desta quinta-feira (13), a SEC afirma que vai apurar o caso, mas que ainda não teve acesso ao documento protocolado no dia 7 de abril na Ouvidoria do Estado, no qual grupos da sociedade civil, entre eles, Produtores MG, Matraca e COMUM, denunciam uma série de irregularidades em projetos aprovados pela LEIC, que não seguem os padrões exigidos pela própria lei.
Na segunda-feira (10), a reportagem solicitou uma entrevista com Felipe Amado, presidente da Comissão Técnica de Análise de Projetos (CTAP), responsável por conduzir o processo de análise de todos os projetos inscritos na LEIC, mas não obteve resposta. Após a publicação da denúncia n’O Beltrano, nesta quarta-feira (12), a SEC resumiu seu posicionamento por nota à imprensa, frisando que “tão logo tenha acesso ao documento, irá analisar seu conteúdo e adotar as providências pertinentes na forma da lei”.
Abaixo, a íntegra da resposta da Secretaria de Estado de Cultura (SEC):
“A Secretaria de Estado de Cultura (SEC) informa que até o momento não recebeu, por parte da Ouvidoria Geral do Estado de Minas Gerais, nenhuma documentação referente a denúncia protocolada no dia 7 de abril, conforme informações do site O Beltrano. Tão logo tenha acesso ao documento, a SEC irá analisar seu conteúdo e adotar as providências pertinentes na forma da lei. A Secretaria de Cultura reitera seu compromisso com o princípio básico de escuta da sociedade e se coloca à disposição para quaisquer esclarecimentos que forem necessários.
Secretaria de Estado de Cultura”