Tem Funk no Aglomerado
O funk como cultura afro-periférica de resistência fortalece a comunidade, gera renda e salva vidas. Militante do cenário do funk em Belo Horizonte, Maíra Neiva defende o movimento como identidade de um povo
Por Petra Fantini
Publicado em 15/05/2018
Advogada popular, Maíra Neiva é uma das figuras que atuam no fortalecimento da cena do funk no Aglomerado da Serra. Originária do “asfalto”, como são chamadas as localidades fora dos morros e periferias da cidade, Maíra mora na Serra há 25 anos. Ela veio do movimento sindical antes de entrar no Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e então se dedicar ao Baile Funk da Serra.
Realizado todo domingo, o Baile enche as ruas da comunidade com até 5 mil pessoas a cada edição. O evento ganhou essa proporção após o assassinato do jovem Gabriel Soares Mendes, de apenas 14 anos, durante uma ação da polícia em 9 de julho de 2017 para coibir o barulho da música. A partir de então, o Baile ganhou conotação política, de resistência e lazer da juventude periférica.
Maíra esclarece que o movimento é puxado pelos próprios moradores, e que ela apenas ajuda como pode. Auxílio jurídico, elaboração de propostas em mesas de negociação com autoridades públicas, vendas de produtos, divulgação e contato com outros movimentos são algumas áreas em que ela atua. “Mas no Baile sou mais uma funkeira. É a cultura que me representa e com a qual me reconheço”, declara Maíra.
Como é o movimento do Baile na Serra?
A gente entende o funk como uma cultura política de resistência afro-periférica, não só como guardiã de algumas expressões da sociedade antes da colonização mas também como um discurso de liberdade. Mas é um discurso que choca porque é de liberdade plena, principalmente do corpo. E a gente entende que tem que ser reconhecido.
Há uma criminalização dessa cultura, e essa criminalização não parte só do Estado e dos conservadores mas também permeia a esquerda. Como se fosse uma cultura selvagem, violenta, agressiva, que deve ser combatida. E na verdade a gente entende que é um elemento importante de identidade.
Como se dá a organização?
A gente vem construindo um diálogo com a Polícia Militar e com a Prefeitura de Belo Horizonte no sentido de entender que são comunidades com outra cultura, portanto a legislação não pode ser a mesma para regulamentar os eventos. A cultura também não pode ficar guetizada no morro, ela tem que ser compartilhada com a cidade. O baile tem que ser respeitado porque não cabe à Polícia fazer juízo moral, ético e estético, é um direito à livre manifestação cultural.
A gente conseguiu regularizar o baile através de uma mesa de diálogo que foi mediada pela Gabinetona das (vereadoras) Áurea (Carolina) e Cida (Falabella), e a partir daí começou a criar uma estrutura para o Baile da Serra. E essa é uma estrutura toda paga pelos moradores, eles comercializam os produtos e têm girado muito a microeconomia local. Cada um participa para remunerar seus artistas e também dar a estrutura de som.
O baile não tem vínculo com estrutura do comércio de drogas – eu não uso a palavra tráfico –, ele é independente e vem dinamizando a economia, provocando uma emancipação estética, cultural também, porque cria uma identidade muito forte com a comunidade, principalmente os jovens afrodescendentes. A gente percebeu que o baile mexe com a auto estima da comunidade.
Não é uma unanimidade, mas a gente tenta um diálogo principalmente com as religiões, porque geralmente os cultos acontecem no mesmo horário do baile. A gente tenta praticar a tolerância, tanto é que a gente termina o baile às 23h porque é no domingo à noite, sabendo que muita gente trabalha no dia seguinte. No ano passado a prefeitura convidou a gente duas vezes, para tocar no Centro de Referência da Juventude (CRJ) e depois debaixo do viaduto (Santa Tereza).
É uma questão de identidade?
As outras periferias se identificaram com o espaço de afirmação dessa cultura e começaram a frequentar aqui também, no Aglomerado da Serra, e o baile tem ficado muito lotado. Aí a gente começou a ter um outro tipo de problema, que era como gente vai montar uma estrutura para tanta gente em becos e vielas.
Para isso, a gente adotou uma modalidade de baile itinerante também, para dinamizar a movimentação da economia interna e também essa questão cultural e de identidade coletiva das comunidades. Cada vila tem uma identidade própria, então o baile entendeu que tinha que passar pelas seis (Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora Aparecida, Maçorla, Santana do Cafezal, Nossa Senhora de Fátima e Novo São Lucas) para não excluir ninguém.
Além disso, a identificação das outras periferias com o baile acabou criando a necessidade dele periodicamente ir para o asfalto. Toda sexta-feira ele tem ido ao centro de Belo Horizonte, mas em um espaço fechado. E depois que ele termina na Serra ele vai para a região da Pampulha (na madrugada de segunda-feira). A construção (da identidade) é através dos jovens de periferia nas redes sociais.
Quando o baile ficou desse tamanho?
Foi com a morte do Gabriel. Não ficou desse tamanho mas foi ganhando notoriedade. Antes ele era tratado apenas como uma reunião de adolescentes, e depois ele ganhou uma conotação política. Mas a gente também tem que considerar que a Serra é um grande celeiro de artistas, então o funk mineiro é muito devido à construção na Serra. Ele já tinha uma popularidade.
(Ultimamente tinha) muita gente pedindo para se apresentar no baile, então a gente resolveu organizar essas apresentações. O Baile liberou um link para os candidatos se inscreverem, teve uma pré-seleção com os produtores do baile e alguns artistas e foram selecionados alguns adolescentes. Vai ter uma série de cursos, a gente fez parcerias com o Amigos do Funk, de São Paulo, alguns departamentos da UFMG e também com um dos editores do Kondzilla.
Eles vão vir aqui tocar com a molecada, daí a gente ajudar na profissionalização desses artistas. A gente entende o funk não só como movimento cultural, político, de resistência e afirmação, mas também como trabalho, fonte de renda que deve ser reconhecida.
Lá no começo, quando você falou de uma estrutura diferente para o funk, uma legislação diferente de outros projetos culturais…
Basicamente assim, a gente tinha dois problemas: o econômico, porque a estrutura exigida era caríssima, sem sentido. A prefeitura acabou alterando a legislação, mas se exigia para eventos pequenos uma estrutura de proporções muito maiores. Agora para evento de baixo impacto, de até 2500 pessoas, a estrutura é mais simplificada.
Há também a questão da legislação específica, porque às vezes você tem que colocar uma estrutura no passeio de tantos em tantos metros. E que passeio você tem na favela? Não tem esse espaçamento. Então é uma legislação elaborada para a lógica do asfalto, que é uma lógica planejada, eurocêntrica. Não sabem entender que aquilo que aparenta ser um caos (no morro) na verdade é um caos harmonioso. É uma outra forma de pensar. Tanto é que a gente não tem registro de ocorrência (policial) no baile.
Você falou que não chama de tráfico de drogas, chama de comércio de drogas. Por quê?
Porque o que torna o tráfico crime é uma opção de criminalizar essa droga especificamente. É uma política capitalista com um recorte bem racial.
Qual é a diferença, você acha, do baile que é feito na favela e quando ele chega ao asfalto?
Tem uma higienização muito grande. E retira muito do conteúdo e do sentido. Principalmente porque o atual momento do funk, que é o funk com temática sexual, questiona muito as questões dos limites das liberdades dos corpos. Uma linguagem que pode parecer violenta muitas vezes é invertida, tem um significado justamente ao contrário, e não é compreendida.
Aí o asfalto faz uma crítica pesada a esse aspecto, dentre vários outros. Eu já cheguei a ouvir que favelado não pode cantar sobre consumo, como se a condição de pobre impedisse ele de sonhar com as coisas que a classe média sonha. Geralmente quando chega no asfalto ele (o baile) chega higienizado. É muito comum, por exemplo, o funk ter duas letras. Uma para chegar ao asfalto e uma que toca na favela (o chamado “proibidão”).
Esse momento sexual do funk, por que vocè acha que ele ocorre agora?
Bom, isso é uma hipótese, mas eu tenho pensado que principalmente depois do estouro recente do funk, com o ápice naqueles rolezinhos de 2013, parece que ele sempre tem uma temática que dialoga com o momento. Por exemplo, naquele momento dos rolezinhos. Aumentou o poder aquisitivo das favelas, mas ainda manteve a segregação. Então muito do conteúdo do funk ostentação naquele momento era “eu consumo para você me enxergar. Eu consumo para me afirmar, para falar que eu posso ser igual a você”.
Daí o movimento dos rolezinhos no espaço de consumo, que também é totalmente fora da lógica urbana. Porque o shopping é o sonho capitalista, a Disneylandia. E esses meninos eram excluídos, mesmo eles tendo acesso a muitos bens que eles não tinham antes.
E, curiosamente, a gente está num momento de conservadorismo muito grande, muito violento, com um aumento assustador nos índices de violência contra a população LGBT e mulheres, e o funk vem falar de liberdade do corpo… Acho significativo, não? Mas é uma hipótese.
Você acha que as críticas da esquerda, quando fala de mulheres sendo objetificadas, têm validade ou vêm de um preconceito?
Eu acredito que seja preconceito. Até porque a vertente do feminismo que faz essa crítica é a mesma que também faz uma exclusão das prostitutas. Então eu acho que é um feminismo extremamente puritano, que não está enfrentando a questão central que é o sexo. Está colocando outros tabus sobre o sexo, como se não fosse o suficiente. Muitas vezes elas interpretam (errado) algumas letras, o fato de falar explicitamente sobre o órgão sexual, sem fazer referência direta nenhuma à mulher com algo violento.
Há também uma interpretação do mundo dessas mulheres como se fosse idêntico ao mundo que elas vivem no asfalto. Sendo que são relações de gênero totalmente diferentes, são outros recortes e com outras opressões que vão se intercruzar. E a solução que elas (as feministas) deram foi a criminalização, alegando que era a incitação de um crime. Poxa, justamente uma das pautas centrais do movimento de mulheres negras é o encarceramento de jovens negros. E não abriram espaço para as mulheres negras e periféricas se manifestarem. Como se elas tivessem que ser salvas, como se elas não conseguissem se defender. Então falta compreensão.
Eu não estou falando que não há machismo, há. Muito. Mas, por exemplo, elas não falam isso sobre o rap. E as relações de gênero no rap são pesadíssimas, mas como isso não aparece na letra isso não é problematizado. Então querem falar em nome dessas mulheres, sendo que elas têm capacidade, elas fazem isso. Inclusive o funk com temática sexual começa com mulheres, com as Tigresas lá nos anos 90.
Uma coisa interessante que eu tenho observado é o “sentar”, que tem sido central nas músicas sexuais. “Ela vai sentar”, é muito focado na mulher.
Porque a mulher é a principal personagem do funk, se você tirar as mulheres vira um rap.
Nesse momento em que teve a morte da Marielle, e agora da Matheusa, o funk vem como um movimento de resistência né, mais ainda.
E olha só, quem abriu as portas do funk para o asfalto foi a comunidade LGBT. Onde você tem artistas trans? No funk. Elas começam no funk. Então o funk tem uma tolerância inimaginável.
As parcelas mais excluídas da sociedade geralmente vão para o funk, a mulher, a pessoa negra, o LGBT. Até mesmo fora dos padrões de corpo, a Jojo Toddynho por exemplo.
Sim, sim! A MC Carol. E essas mulheres assumiram sua sexualidade.
E como o funk se coloca nesse cenário do Brasil, com a morte de tantos ativistas periféricos?
Então, no primeiro baile depois da morte da Marielle houve uma homenagem. A vereadora Áurea Carolina até fez uma fala, a Moara (Correa Saboia), que foi presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) também fez. A gente tenta fazer essa conexão, como a exclusão não tem um aspecto só da cultura funk, mas também territorial, geopolítico.
A gente tenta dar centralidade para esse debate, mas o rap tem mais sucesso nisso do que a gente. Mas quem curte rap geralmente curte funk, tem esse diálogo que auxilia.
Você acha que dentro da favela tem crescido o conservadorismo também, principalmente da Igreja evangélica, que está muito presente na periferia?
Eu acho que a gente tem que entender que a sociedade inteira é conservadora. E isso vai refletir nas favelas. Às vezes, não que você tenha querido dizer isso, mas às vezes algumas colocações desse tipo implicam que a favela é o lugar do conservadorismo. E não é. Isso está acontecendo na sociedade brasileira como um todo, vai acontecer na periferia também. É inevitável. Por isso eu não acho que a melhor maneira seja atacar os neopentecostais. A gente tem que criar um espaço de diálogo.
Mas eles tentaram impedir o crescimento do baile, por exemplo? Teve algum movimento dos moradores contra?
Não, não teve. E geralmente nossos bailes são do lado da igreja. Nós temos o acordo de esperar terminar o culto, desligar o som e ligar o nosso. Não vou falar que todo mundo acha uma maravilha não, mas não há nenhum movimento de combate. Até porque eles também têm consciência do desenvolvimento microeconômico.
E são famílias gigantes que moram ali, então você vai ter uma família que tem funkeiro e neopentecostal. Isso é inevitável, tem sempre. Muitos MCs do funk entram no palco fazendo uma oração neopentecostal. Essa visão binária é muito característica do asfalto, “um tem que derrotar o outro”. E não tem como, porque todo mundo vive ali, o que que vai fazer?
O comércio de drogas, você disse que não tem no baile, mas tem algum acordo com os traficantes?
A gente tem que entender que o tráfico é um poder dentro da comunidade. Então tem que dialogar. O que a gente tenta dialogar: “olha, o baile está legalizado, a gente pediu a presença da polícia. Por favor, armas não, não faça comércio aqui”, e é isso que a gente pode fazer. A gente também não pode chegar para eles e proibir, se a polícia não conseguiu a gente vai conseguir? “Não pode vender aqui”, não tem como. Dentro do baile não vende, mas o baile acontece dentro da comunidade. A comunidade continua com o seu cotidiano, o baile não para a comunidade. Ela continua funcionando da mesma forma.
Até porque o baile não é em um espaço fechado, é na rua.
É na rua, é de graça. Então não tem como a gente fazer esse controle, o que a gente pede é para entender que aquilo é importante para a comunidade, que não pode ter nenhum tipo de abuso porque a comunidade inteira vai sofrer com opressão lá dentro. Não é interessante para ninguém fazer essa ligação.