Tiro, bomba e escola

Nem governo, nem interventores. No Rio, ninguém se preocupa com o impacto da violência sobre as crianças


 Por Ana Cristina D’Ângelo

Do Rio de Janeiro

Publicado em 20/06/2018

Rio de Janeiro – Familiares de presos e vítimas da violência protestam durante seminário A Segurança Pública como Direito Fundamental, no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Estado violência

Deixem-me querer

Estado violência

Deixem-me pensar

Estado violência

Deixem-me sentir

Estado violência

Deixem-me em paz

(Titãs, Estado Violência)

O impacto do permanente estado de violência que assola o Rio de Janeiro na vida e educação de crianças e adolescentes só se torna visível quando a mídia aponta os dias em que as escolas deixaram de funcionar em razão de tiroteios e ou operações policiais. É importante o número, mas os veículos de comunicação param por aí. Pouco se fala sobre como a violência mexe com esses pequenos cidadãos em formação. Sobre o quanto o imaginário e as esperanças ficam comprometidos com o estado de guerra e de intervenção militar. Para um menino da favela, o medo é do policial. Para um menino do asfalto, o medo é do bandido. Esses dois mundos estão sob o regime do medo, acordam com barulho de tiro e granada, mas oferecem direitos e acolhimentos totalmente diferentes, como insiste em manter essa nossa sociedade injusta.

Nós, da classe média, podemos até correr um certo dia, com filho no colo, de um tiroteio ou bomba nas proximidades, mas é dar a volta no quarteirão e chegar ao conforto do condomínio com porteiro, câmera etc. Mas, e os meninos da favela na escola envolta numa operação policial às 17 horas? Senhor interventor, as crianças precisam voltar pra casa, comer, tomar banho, dormir, brincar. Por que operações policiais às cinco horas da tarde? Seria uma boa pergunta se as perguntas fossem livres nas entrevistas coletivas dos guardiães da segurança.

A sociedade quer números e dados, mas precisa de um retrato sensível dessa infância e adolescência sob a égide da violência. E que o poder público tenha sensibilidade para com essas histórias e que utilizem-nas para nortear suas ações de segurança pública – um termo inventado porque a priori não se tem exatamente um planejamento do que fazer no Rio de Janeiro nem no Brasil neste momento.

Em 2017, 165.804 alunos ficaram sem aula por causa da violência no Rio, 467 escolas foram fechadas e 400 unidades estão em locais considerados perigosos, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

Rio de Janeiro – Protesto na praia de Copacabana lembra morte há um ano da menina Maria Eduarda, e de outras 46 crianças vítimas da violência nos últimos 11 anos (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Outro material importante de consulta é a pesquisa “Educação em Alvo – Os Efeitos da Violência Armada nas Salas de Aula”, desenvolvido pelo aplicativo Fogo Cruzado, em parceria com a DAPP/FGV (Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas). Apenas em 2017, confrontos interromperam aulas em 99 dos 107 dias letivos. Isto é, apenas em oito dias do primeiro semestre de 2017 todas as escolas e creches da rede municipal de Educação funcionaram. Isso é assustador!

A pesquisa “Educação em Alvo” indica que a zona norte da cidade é o local com maior incidência de troca de tiros, com destaque para as áreas dos complexos do Alemão (218 registros) e da Maré (119 registros). No Alemão, segundo os últimos dados disponíveis do ISP (Instituto de Segurança Pública), 21 pessoas foram mortas entre julho de 2016 e maio de 2017. Na Maré, 122 pessoas perderam a vida de maneira violenta no mesmo período.

Rio de Janeiro – Mães e familiares de jovens negros mortos por policiais protestam contra a violência com ativistas da Anistia Internacional em frente à Igreja da Candelária (Fernando Frazão/Agência Brasil)

A intervenção militar no Rio de Janeiro já passou de três meses. O que foi feito para se proteger crianças e adolescentes nas áreas de risco e garantir que tenham acesso adequado à educação e ao ir e vir da escola?

De acordo com o laboratório de dados Fogo Cruzado, no período de 16 de fevereiro a 15 de maio houve 2.309 tiroteios/disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio de Janeiro. O município do Rio registrou a maior incidência de violência armada, com 1.387 notificações. Fontes do Fogo Cruzado informam que o MP tem dificuldades para fazer a fiscalização na rede municipal – Grande Rio – por falta de dados e organização dos órgãos públicos de educação. A SME foi procurada por mim mas não se manifestou.

Outro aspecto grotesco sobre educação e violência na cidade do Rio de Janeiro é o tratamento dado pela imprensa hegemônica. Nas situações de confrontos em favelas, numa mesma região, os jornais destacam as consequências para escolas particulares e praticamente ignoram as escolas públicas e as crianças e adolescentes que moram na favela onde se deu o episódio de violência. Se buscarmos, por exemplo, notícias sobre tiroteios e operações policiais na comunidade do Santa Marta, em Botafogo, veremos completa distinção, nas matérias da mídia hegemônica, no tratamento dos impactos da violência entre alunos da rede pública (EDIs e escolas públicas da região, que são muitas) e alunos da rede privada (colégios Santo Inácio e Escola Alemã, vizinhos do Santa Marta). Muitas matérias apontam as consequências e ouvem as fontes das escolas privadas – diretores, professores e alunos – enquanto os alunos das escolas públicas – que muitas vezes não conseguem nem voltar para casa em dias de tiroteio – são tratados como estatísticas ligeiras. It´s a long, long, long way.