Torcidas progressistas

Um raio x das torcidas que acreditam que futebol e política se misturam, sim, e que querem transformar o estádio em um lugar para todos


Por Mateus Marotta Silva

 

Apaixonados pelo futebol, torcedores estão se organizando também para derrotar o racismo, a homofobia e o machismo, e para fazer coro contra a elitização do esporte. Ainda são minoria e estão longe de vencer os gritos de guerra preconceituosos, a violência gratuita e os elevados preços dos ingressos. Mas as torcidas antifascistas e progressistas são um fenômeno que cresce nas redes sociais e nos estádios de Minas Gerais.

América, Atlético e Cruzeiro, principais times da capital mineira, possuem suas torcidas organizadas antifascistas e progressistas que lutam por transformações. Mas que por vezes se confundem com outras torcidas que utilizam símbolos políticos quase que exclusivamente por provocação e rivalidade. A bandeira do Cruzeiro, que traz a estampa do argentino Ernesto Che Guevara, por exemplo, gerou a absurda reação da torcida do Atlético pela bandeira com a imagem do militar e ex-presidente boliviano René Barrientos, assassino de Che.

A imagem do líder da Revolução Cubana em azul começou a ser levantada por cruzeirenses em 1991, por uniões em torno da torcida CGE (Comando Guerreiro do Eldorado). Lideranças da torcida afirmam na época que a imagem de Che foi escolhida para representar a periferia do lado oeste de Belo Horizonte. Mas o símbolo ganhou força depois que o Atlético perdeu a final da Conmebol para o Rosário Central, em 1995, pelo fato de o argentino Che Guevara ter nascido justamente na cidade de Rosário. Como resposta, um grupo de atleticanos começou a usar a bandeira do ditador Barrientos.

Mas, longe dessa despolitização, os coletivos progressistas no futebol são convictos das causas que defendem e unificados em diferentes pautas contra o conservadorismo. “Já fazíamos parte da Seita Verde e vimos a necessidade de espalhar nossas ideias políticas para a torcida americana, tendo em vista o avanço dos reacionários em nosso país, incluindo o futebol”, disse João Victor Lopes, membro do núcleo América Antifa, da Seita Verde.

Reprodução/Facebook.

Formada por anticapitalistas, a torcida Resistência Azul Popular (R.A.P), do Cruzeiro, foi criada em 2015 com um protesto contra a Minas Arena, gestora do Mineirão, junto com os barraqueiros do estádio. O estatuto da R.A.P. afirma que “Temos como objetivo não ser um coletivo separado do povo, compreendendo sua pluralidade, temos nossos princípios e pautas. Contra qualquer tipo de opressão, autônomo, apartidário (mas não contra partido) e horizontal. Somos contra a crescente elitização do futebol que segrega quem sempre esteve ao lado do Cruzeiro, um estatuto que cria um Cruzeiro centralizado, arbitrário que impede novas pessoas para debater e gerir o Cruzeiro e os preconceitos que no ambiente do futebol estavam sendo reproduzidos. Isso somado com nossa maior paixão que é acompanhar os jogos do Cruzeiro”.

O respeito e o fim da homofobia são uma das pautas defendidas por torcidas progressistas. Em 2 de julho deste ano, Atlético e Cruzeiro se enfrentaram no Estádio Independência pelo Campeonato Brasileiro, mas o que chamou a atenção antes da partida foram mais exemplos de homofobia. Faixas na entrada do bairro Horto provocavam os cruzeirenses com a frase “Sejam bem-vindas”, com as cores do arco-íris, símbolo dos movimentos LGBTI, misturadas às cinco estrelas, símbolo do Cruzeiro.

A torcida Galo Marx, com 4.330 curtidas no Facebook, repudiou a atitude em um post com 405 compartilhamentos até o fechamento desta reportagem. Procurada pelo O Beltrano, a torcida Galo Marx não concedeu entrevista, alegando estarem passando por uma reestruturação.

Mas, atos homofóbicos são repudiados pelos movimentos progressistas mesmo antes do ocorrido em julho. “Lutamos para que o futebol não tenha opressão, como racismo, machismo, lgbtfobia, xenofobia, fascismo e qualquer outro tipo de preconceito”, afirma a R.A.P. Essa linha é seguida também pela torcida América Antifa. “Somos uma torcida antifascista, contrária ao sexismo, homofobia e racismo”, disse João Victor Lopes, membro da torcida americana desde 2014.

Combater a homofobia, o sexismo e o machismo também são pautas do coletivo feminista Grupa, da torcida do Atlético. “Nascemos protestando contra o machismo, e não iremos deixar passar homofobia e nem racismo também. O futebol se pauta muito nesses temas, chamando de rivalidade aquilo que é exercício de preconceito. Dá para torcer e praticar a rivalidade sem excluir“, afirmam as participantes do coletivo.

Reprodução/Facebook.

Segundo o coletivo Grupa, as mulheres são agredidas e ofendidas nos estádios por olhares e perguntas irônicas, “como pedir a escalação de 78 ou para explicar a regra de impedimento” (as integrantes do Grupa pediram para que as respostas, mesmo as opinativas, fossem atribuídas ao coletivo). “A maior dificuldade é que cansa. Muitas vezes estamos exaustas de nos sentir excluídas ou ofendidas por ações machistas, e quando nos posicionamos, somos atacadas pessoalmente. Nos cansamos de nos expor e as coisas continuarem acontecendo. Nos cansamos de afirmar o que está errado e, mesmo com a nossa coragem, ouvirmos que somos ‘vitimistas’. A maior dificuldade é que muita gente acha que um posicionamento político de minoria é apenas ‘mimimi’, sem perceber a importância que temos na transformação do mundo”.

Além das arquibancadas, o machismo também está nos próprios clubes. “Lutamos por igualdade na distribuição do material esportivo para venda. É muito comum não oferecerem a nós a quantidade de produtos que são oferecidos aos homens. O argumento principal é de que a torcida masculina é maior. Pois sim, mas se não tiverem reconhecimento e investimento na torcida feminina, de que forma ela irá crescer?”, questiona o Grupa.

Reprodução/Facebook.

Na entrada do setor amarelo, perto das barracas de bebidas e comidas, apelidado de “Esquina da R.A.P”, o grupo celeste se sente no caminho certo, mas sabe que ainda falta muito. “Sabemos dos passos que temos que dar, que às vezes parecem pequenos para quem vê de fora, mas são passos juntos com o povo, o que é melhor que dar mil sem o povo”, diz um dos membros do grupo, que também pede para que as respostas sejam atribuídas ao coletivo.

Uma das dificuldades encontradas para impedir atitudes preconceituosas nos estádios é a falta de apoio dos clubes e ações efetivas das federações de futebol do país. “(Os clubes devem) realizar campanhas ativas contra essas práticas (preconceituosas), incentivar que o torcedor denuncie quem estiver realizando essas ações para que seja retirado do estádio e responsabilizado pela conduta”, diz outro membro da R.AP.

A atuação das torcidas antifascistas e progressistas já mostram alguns resultados. O coletivo Grupa, por exemplo, surgiu como manifesto contra o desfile de apresentação dos novos uniformes do Atlético para a temporada 2016. “Com alto teor machista, uniu diversas mulheres que sentiram desrespeitadas com aquilo”, alega o coletivo, que comemora o avanço no desfile de 2017. “Esse ano já colhemos resultados. O Galo nos escutou e fez um desfile com maior diversidade, sem sexualizar as modelos e apresentando coleção feminina”.

O coletivo Grupa também é importante para mulheres que não se sentem seguras de ir aos estádios, se unindo para ocupar as arquibancadas. “Procuramos assistir juntas, mas não temos necessariamente uma predileção de portão. Sempre divulgamos antes no twitter onde vamos nos encontrar e em quais portões estaremos concentradas”, afirmam. “A Grupa enfrenta o machismo se unindo. Como vamos juntas, criamos um ambiente mais seguro e acolhedor. Muitas pessoas já vieram nos dizer que ‘abriram a cabeça’ por falas nossas. Então, buscamos ser muito assertivas nas nossas afirmações”.

Reprodução/Facebook.

A torcida América Antifa também apoia as mulheres no futebol e elogia o fato do clube manter um time feminino. “Acho que está mais do que provado que política e futebol se misturam sim, e por isso os times devem dar o exemplo. Nos orgulhamos do América ter um time feminino. Algo que alguns clubes não valorizam e que deviam passar a valorizar”.

No Cruzeiro, a participação da ONG AZMina levou o clube a ganhar troféu na França. O time mineiro fez uma parceria com a instituição sem fins lucrativos para o Dia Internacional da Mulher deste ano que resultou na campanha #VamosMudarOsNúmeros, vencedora do Prêmio Leão de Bronze, categoria Meios de Comunicação, no Festival Internacional de Criatividade de Cannes. Os jogadores entraram em campo contra o Murici-AL, pela Copa do Brasil, com camisas usando os números dos jogadores para alertar a violência contra a mulher.

Mesmo com o prêmio, a torcida R.A.P não se sente satisfeita com as atitudes do clube para vencer os preconceitos. “Recentemente o Cruzeiro fez uma campanha sensacional no dia internacional da mulher, chegando a ganhar um prêmio internacional. Ao mesmo tempo, o Cruzeiro engrossou a fila dos clubes que não fizeram nada no dia do orgulho LGBTTTQI. Internacional e Flamengo postaram em suas redes oficias mensagens de apoio à diversidade sexual. Em relação ao racismo, o Cruzeiro não foge da média e realiza campanhas pontualmente quando um jogador é hostilizado”, critica.

Para encurtar essa distância entre torcida, respeito e clube, a R.A.P defende maior participação dos torcedores nas direções dos clubes. Além disso, a torcida questiona a crescente elitização no futebol. “Somos contra o futebol de negócios que elitiza o esporte através do mercado, se apropriando do futebol e mudando suas características para gerar lucro. Temos um trabalho constante de estudos e ações contra o Minas Arena. Apoiamos o Cruzeiro democrático e popular: lutamos para que o torcedor possa participar das decisões do clube e para isso estamos montando um seminário com a presença do ‘Povo do Clube’, movimento da torcida do Internacional de Porto Alegre, que conseguiu que sócios torcedores pudessem votar e participar do conselho. Queremos também criar esse movimento no Cruzeiro”, defende a R.A.P.

Reprodução/Facebook.

O seminário ocorrerá em 19 de agosto, no Centro de Referência da Juventude, na capital mineira. “Não existe democratização sem popularização. Democracia só para quem tem dinheiro tem outro nome, plutocracia. O princípio da ideia da democratização é para voltar a festa popular que existia no Mineirão. O Cruzeiro tem em sua origem trabalhadores imigrantes, principalmente da construção civil, que com o tempo foi agregando também os trabalhadores brasileiros e sua torcida sempre foi maior nas regiões periféricas de BH e nas cidades da região metropolitana”, diz um trecho do convite para o seminário no Facebook.

“O futebol retrata a cultura machista brasileira. É um ambiente de afirmação masculina, ‘coisa de macho’”, afirma o coletivo Grupa sobre a participação feminina no futebol. Elas também cobram mais decisões em prol do público feminino. “Conseguir entrar, ser respeitadas, nos sentirmos seguras, que nossas opiniões façam diferença, que os produtos e ações do clube também nos levem em consideração. Isso tudo impacta no nosso espaço dentro da sociedade”.

João Victor diz que o posicionamento político dentro dos estádios ainda não é entendido ou aceito por todos. “Existem pessoas contrárias à associação da imagem do clube ou da torcida a temas políticos. Mas procuramos sempre nos explicar educadamente. A vantagem é que alcançamos muitas pessoas e, pelo menos, fazemos algumas delas refletirem sobre temas que consideramos importante. Quem sabe não estamos plantando a semente da mudança na cabeça de algumas delas?”.

“Alcançar muitas pessoas”. Este é o objetivo é partilhado pela torcida R.A.P e pelo coletivo Grupa. “Pautamos nossas ações em busca de um ambiente melhor para todas e todos, principalmente no campo e na arquibancada. Falamos isto porque vemos que quando a bandeirinha é mulher, ela sofre xingamentos referentes ao seu gênero, e a torcedora também. A maravilha de um coletivo é que ele te abriga. Muitas pessoas que entram, acabam encontrando um ambiente forte de sonoridade e uma rede de apoio. Recebemos muitas mensagens positivas”, afirma o Grupa.

A R.A.P., fora de campo, participa de panfletagens, reuniões e protestos políticos. “Já realizamos reuniões e exibições de filmes nas sedes das organizadas, estivemos ombro a ombro no caso do assassinato do Eros (segundo a Polícia Civil, o torcedor morreu eletrocutado em 26 de outubro de 2016 quando o Cruzeiro enfrentou o Grêmio) com a Pavilhão Independente, e temos contatos para realizar atividades com outros comandos. Fizemos rodas de debate sobre os efeitos da Copa numa escola ocupada. Uma vez por mês escolhemos o ‘jogo da RAP’, que vamos panfletando e levamos faixas de protesto para a entrada do Mineirão. Já realizamos uma campanha para levar os haitianos num jogo do Cruzeiro, e com isso trabalhamos a questão da xenofobia. Levantamos o debate da Minas Arena,contra a elitização do futebol. Fizemos um protesto em frente a sede do Cruzeiro contra o Perrella (Zezé Perrella, senador pelo PSDB-MG e ex-presidente do Cruzeiro) para mostrar o quanto é fechado e arbitrário o Conselho Deliberativo do Cruzeiro”.

Foto: Rafael Mendonça

Os protestos também acontecem mirando a política nacional, como aqueles contra o presidente Michel Temer, alçado ao posto após o golpe sofrido pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT-RS). “É bom ressaltar que nossa torcida é apartidária, mas sempre lutaremos contra qualquer governo que queira retirar direitos e conquistas do povo, e o Michel Temer é um desses presidentes. Não vamos lutar para que um partido x ou y chegue ao poder, mas não vamos ficar parados vendo esse governo assaltar o povo. Já levamos faixas para o Mineirão contra o Temer e estivemos presentes nos atos da Greve Geral”, posiciona a torcida R.A.P. Formada por comunistas, anarquistas e esquerdistas, a América Antifa vai na mesma linha. “Não reconhecemos o governo ilegítimo de Michel Temer, que foi estabelecido por meio de um golpe parlamentar”.

As divergências entre os movimentos são nítidas apenas no amor por cada clube, mas americanos, atleticanos e cruzeirenses estão unidos por um futebol e uma sociedade mais justa. “Enfatizamos, diariamente, que o lugar da mulher é onde ela bem quiser, seja em casa, na rua ou no estádio. A nossa luta é por representatividade e reconhecimento”, afirma o coletivo Grupa. “Sabemos que a revolução virá das arquibancadas”, finaliza a R.A.P.

Mais sobre os movimentos:

Grupa, R.A.P e América Antifa possuem páginas no Facebook que podem ser acessadas através da rede social. Entre em contato para mais informações e fazer parte de um destes movimentos.

Grupa: https://www.facebook.com/grupacam/ e https://twitter.com/grupacam

“Um grupo criado por mulheres que amam o Clube Atlético Mineiro, que desejam frequentar os espaços reais e virtuais do futebol sem preconceitos, e para isso se posicionam contra o machismo, racismo, homofobia e elitização do futebol. Esse nome é uma brincadeira. Estávamos sendo ironizadas no twitter, sendo chamadas de ‘panelinha’ e ‘grupinho’. Uma amiga, então, respondeu que, na verdade, éramos uma ‘grupinha’”. http://grupa.com.br.

América Antifa: https://www.facebook.com/americaantifa/

América Antifa existe desde 2016 e é o núcleo antifascista originado da torcida Seita Verde. Se encontram em frente ao Bar da Sandrinha antes dos jogos e durante a partida se concentram no meio da arquibancada da Pitangui (Portão 3).

R.A.P: https://www.facebook.com/resistenciaazulpopular/

A R.A.P tem grupos no WhatsApp e realizam reuniões nas primeiras sextas-feiras de cada mês. Cada integrante também realiza tarefas.

Galo Marx: https://www.facebook.com/GaloMarx/

“Lutamos arduamente contra todas as mazelas do capitalismo, dentro e fora dos estádios. Nossa torcida não é de meros espectadores de partidas de futebol e da luta de classes, somos expressão do que há de mais ativo nas arquibancadas e na luta contra o capitalismo. Nossa bandeira abriga todo@s @s lutador@s explorad@s e oprimid@s que encontram no Galo um alento, não apenas para torcer, mas, sobretudo, para lutar por nossa causa”.