Três décadas de hip hop em BH - PARTE 2
Uma história de 33 anos que tinha que ser contada. Rappers, DJs, dançarinos e grafiteiros direto das alterosas
Por Roger Deff
Depois dos primeiros passos (leia aqui) vieram a consolidação e a ampliação, os pioneiros da história continuam contando essa saga mineira pelas mãos de Roger Deff. Aproveitem…
A primeira rádio a tocar rap em Belo Horizonte foi a Liberdade FM, entre 1986 e 1987. O programa onde os raps eram veiculados se chamava Mega Mix e era apresentado por José Luiz de Carvalho, o DJ Joseph. “Alguns dos raps que ele apresentava eram feitos por MCs que tocavam nas festas dele, ao vivo. As músicas eram gravadas em fitas que ele veiculava no programa”, relata o DJ a Coisa.
Joseph diz que o Mega Mix surgiu de uma ideia da produção da rádio de colocar no ar um programa com músicas alternativas. “O cara falou comigo que não queria Madonna ou outros sucessos. O DJ Blau morava nos Estados Unidos e me mandava muita música. O hip hop estava em alta por lá, e eu tinha muita coisa exclusiva para tocar. Aí surgiu o Mega Mix. O programa ia ao ar às sextas e sábados à noite, com uma hora de duração”, lembra Joseph.
O primeiro grupo de rap da cidade surgiria de uma turma mais ligada ao funk e ao soul, sem uma conexão estreita com a cultura recém-chegada ao Brasil. Joseph, que fez parte da formação do grupo, conta um pouco dessa história.
“O Alibabáticos era um grupo de dança que ganhava prêmios em todas as competições, e eu fazia as montagens das músicas pra eles dançarem. O Néviton Marques teve a ideia de cantar além de dançar, fazer um rap também, já que o negócio estava na moda. Aí veio a ideia de fazermos um grupo que reunisse o Marcelo e o Néviton, dos Alibabáticos, o Walber, do Stop Listen, e eu, do Dup Som, e esse foi o primeiro grupo de rap de Belo Horizonte. Eu já fazia uns raps e o Walber também. Então, juntamos tudo e nasceu o União Rap Funk, por volta de 1985 ou 1986”, diz.
As músicas feitas pelo União Rap Funk chegaram aos ouvidos de muita gente através da Rádio Liberdade, alcançando também os dançarinos da Break Crazy. “Quando o União Rap Funk apareceu nas rádios, no programa do Joseph, aquilo foi surpreendente pra gente (…) nenhum de nós conhecia os caras, e lá estavam eles, fazendo rap. Aquele era o primeiro grupo de rap de que se tinha notícia por aqui”, conta Roger Ferreira, o DJ Roger Dee, da primeira geração do hip hop de BH e uma referência do movimento na cidade.
Néviton Marques de Lima, vocalista do União Rap Funk, conta como se deu seu envolvimento com a cultura. Assim como tantos outros jovens da época, ele se aproximou por conta da moda, da música e da dança.
“Eu ouvia Prince, One Way… Esses sons que eram mais funk. Nesta época eu decidi que o nosso grupo de dança, o Alibabáticos, dançaria músicas cantadas por nós mesmos. A primeira música que fiz chamava-se “Big Ali Beat”, e foi justamente nesta onda, naquela empolgação com o inglês, que nós começamos”, lembra Néviton. “Como éramos um grupo de dança funk, unimos a ideia de fazer rap e dançar funk. Procurei o Joseph e ele começou a produzir as bases. Na época não era produzir, era pegar os instrumentais dos nossos discos e fazer letra por cima. Então, surgiu a ideia de montar o grupo (de rap). Começamos eu, Joseph, meu irmão e o Walber, mas quem ficou mesmo fomos eu, o Joseph e o Marcelo. A música que mais bateu foi a ‘União Rap Funk’, e decidimos que este seria o nome do grupo.”
Aqueles jovens alcançaram um grau de popularidade inesperado. Roger Dee conta que “eles faziam um trabalho totalmente ligado ao hip hop e nem tinham noção do que era aquilo. Nem todo mundo sabia que o break, o rap e os outros elementos eram partes integrantes de uma mesma cultura. Aí, chegamos pros caras e falamos sobre o hip hop. Eles tinham até um DJ, o Joseph, que foi o primeiro cara a fazer scratch em Belo Horizonte”.
O primeiro scratch
Hoje não há quem não saiba que o scratch é o efeito sonoro produzido pelos DJs ao girar o disco de vinil nos sentidos horário e anti-horário. Mas isso não era nada obvio nos anos 80, não sem imagens que permitissem essa noção.
Em Belo Horizonte não se tem notícia de alguém que tenha utilizado a técnica do scratch antes do DJ Joseph, que também fazia rap e foi apresentador do primeiro programa de rádio do gênero. Para o DJ a Coisa “Joseph foi o cara que popularizou o scratch. Eu ouvia o programa dele, o Mega Mix, e demorei pra distinguir o que eram as intervenções dele sobre as músicas dos discos”, conta.
O próprio Joseph relata como foi difícil entender, na época, do que se tratava. “Em 1981 tinha saído um single do Grandmaster Flash que chamava-se ‘The Adventures of Grandmaster Flash on The Wheels of Steel’. Era um monte de pedacinhos de música, um medley. Mas esse medley tinha uns barulhos que me incomodavam. Fiquei tentando entender o que era aquilo. Naquela época, fui o único que ficou correndo atrás para saber o que era. Para descobrir o que era aquilo ouvia de novo, e de novo… Tive comprar outro disco, porque ferrei o LP de tanto ouvir. E aquele barulho era o tal do scratch”, conta o DJ Joseph.
A história dá a dimensão da falta de referências visuais sobre a cultura que, até então, era completa novidade por aqui.
“Em 1983 começou a tocar outra música no rádio, do Malcolm Mclaren. Era um disco de sons world music e no meio havia uma música com DJs usando o toca-discos como percussão. A música era ‘Buffalo Gals’. Eu percebi que era um som indo e voltando porque o refrão dizia ‘looking like a robot’ e a voz dava essa ideia de volta. Eu pensei que era um gravador de rolo. Tentei fazer com esse equipamento e não deu”, recorda. Só algum tempo depois a informação chegou, de forma inesperada.
“Quando eu peguei a capa do disco, havia a explicação de que eram DJs de Nova Iorque que usavam os toca-discos indo e voltando e vi o desenho na mão em cima do disco. Pensei comigo: como pode ser tão óbvio e ninguém notou?”, lembra.
“Comecei a treinar durante a semana. Naquele fim de semana, mostrei o scratch pra galera e aí apareceu aquele monte de DJs no baile do Novo Aarão Reis interessados em aprender”, diz. Quanto ao pioneirismo na técnica do scratch em BH, Joseph pondera com cautela. “Como nunca tinha visto ninguém fazer scratch, e ninguém conta nada antes disso, a minha história parece ter sido a primeira aqui em Belo Horizonte,” diz.
Empolgado, ele lembra ainda de detalhes da façanha. “O primeiro scratch que fiz, a primeira vez que fiz um scratch, foi numa matinê, num domingo. Naquele fim de semana eu mostrei o Scratching para vários Djs que estavam no matinê do Grecar, no bairro Aarão Reis em BH, e a a música era ‘You Gotta Believe’”, recorda.
Novas gerações e continuidade da dança de rua
“A Spin Force Crew é o grupo mais antigo em atividade em Belo Horizonte, tanto que já chegou à quinta geração de b.boys (dançarinos)”, conta orgulhoso o dançarino Reynaldo Ribeiro, o Reyone.
Com 25 anos de história, a Spin Force é um dos símbolos do hip hop em Belo Horizonte, uma verdadeira instituição que agrega os 4 elementos da cultura. “Ela é uma das crews mais completas no mundo, porque tem MCs, grafiteiros e DJs, além dos b.boys”, diz Reyone. “Lembro que estávamos numa festa, a Blockout, e encontramos pessoas importantes da cultura hip hop, como o Kool Herc (considerado o pai da cultura hip hop) e o Pop Master Fabel (integrante da Rock Steady Crew) perguntou ao Dmoro se ele dançava, ele disse que não, mais era Mc da Spin Force Crew ele se surpreendeu e disse que no mundo inteiro que são poucas as crews que tem os quatro elementos, e é muito especial ouvir isso de um cara que é referência no mundo inteiro”, afirma.
Morador do Ribeiro de Abreu, Reyone começou a dançar em 1990, quando morava no Barreiro, num contexto em que as bases do hip hop já estavam mais estabelecidas no Brasil. “Meu irmão era DJ e naquela época existiam muitas festas na rua, as chamadas barraquinhas. Tinha também as casas de shows, como o Chiodi (Cidade Insdustrial) , a Vilarinho (Venda Nova), e a Stúdio 94, que ficava no Barreiro. Tanto a Chiodi quanto a Estúdio 94 eram mais próximas da minha casa. Eu também circulava muito pelo bairro Betânia e conheci o breaking com um amigo que morava lá, o Marcão, já falecido. Indo pra escola passei pelo bairro e vi os caras dançando, mas não sabia o que era. Lá tinha um coreto e era lá que os caras dançavam. O Marcão, o Charles e o Marcelo”, lembra.
Por se tratar de um segundo momento da cultura, Reyone pôde ver, além das rodas de break, vários shows de rap, que já eram bem populares naquele período.
“Todos frequentavam o Chioddi. Era uma casa que tocava vários estilos de música, entre eles o rap. Várias vezes eu vi show do Retrato Radical. Vi vários DJs como o Coisa, o Walmir e o Válber. Numa dessas vezes vi uma roda de breaking do pessoal dos bairros Cabana, Água Branca e Barreiro, entre os b.boys estavam caras como Ba e Nego”, recorda. “Me interessei muito e foi o que escolhi pra mim. Só que na década de 90 não tinha quem ensinasse, então a gente aprendia vendo. Ao longo do tempo fui aprendendo, treinando, me juntei ao pessoal do Betânia, no grupo Betânia Breakers. Conheci o Eazy, que dançava com a gente, e comecei frequentar a casa dele. A gente assistia filmes relacionados à cultura hip hop e trocava informações sobre onde rolava o hip hop. Na década de 90, era muito breaking. Tinham os rappers, como Black Soul, Retrato Radical, o Zero, do Face Oculta, lugares como o Salão Preto e Branco, onde a gente se informava sobre as rodas de breaking e onde circulavam os fanzines também”, conta Reyone.
Altos e baixos
Reyone relata que por volta de 1996 as rodas de break começaram a desaparecer e foi um momento muito difícil para a cultura. “No início da década de 90 a dança era muito forte. Tinha b.boy em todos os lugares. Mas entre 96 e 97 a coisa realmente esfriou.”
Roger Dee faz um apanhado geral dessas três décadas de hip hop, analisando as descobertas e as dificuldades. A cultura hip hop de Belo Horizonte chegou a ser referência nacional, algo que chegou ser dito pelo MC Jack, dançarino, DJ e rapper que fez parte da coletânea Hip Hop Cultura de de Rua (1988). Na matéria publicada na página 46 da revista Bizz, intitulada “Hip Hop Tupiniquim: o subúrbio Invade o centro”, Jack conta sobre o movimento além de São Paulo e diz: “nós fomos há um ano e meio em Belo Horizonte e o movimento lá tava até mais forte do que em São Paulo”. Para Roger Dee a matéria é um documento que atesta a força da cultura na capital mineira na época. “Se for pra analisar a trajetória destes 33 anos de hip hop no Brasil, acho que teve altos e baixos, e rolou muita falta de informação para uma geração que veio nos anos 90. Ela pegou uma parte do hip hop em que os demais elementos foram praticamente apagados, com um foco maior só em cima do rap, e isso aconteceu no mundo inteiro. Muita gente que acompanhou o rap nos anos 90 não fazia parte do movimento”, diz.
Houve, claro, toda uma geração de artistas que cresceu justamente na década de 90. Caso de Clodoaldo Pereira Luiz, o Clodô D’Lui, rapper integrante do grupo Fator R que também foi produtor de alguns principais eventos voltados a música rap entre 95 e 2000, além de articulador, uma vez que mantinha contato com formadores de opinião de todo o Brasil, como Rodrigo Brandão, na época apresentador do Yo MTV Rap’s, o DJ e jornalista Fábio Macari além de MCs e B.Boys das regiões Sul e Nordeste do país, e tudo isso feito através da troca constantes de cartas e da produção do fanzine MH2 Acontece que, em suas 14 edições, registrou muito do que aconteceu no cenário de BH. Foi responsável também pela criação do prêmio “Melhores do Hip Hop BH”, evento que contribuiu para a visibilidade da cultura na época. “Apesar das inúmeras críticas acredito que tudo isso ajudou a fomentar a cultura hip-hop em BH e Região Metropolitana, assim como queríamos”, afirma D’Lui.
Ele conta conta que teve contato com a música no seu bairro, Jardim Alvorada, através de um amigo e MC chamado Robson Canário, na época integrante do grupo Geração Hip Hop, mas o contato com a cultura mesmo se deu, segundo ele nos encontros do Terminal Turístico JK. “Ali sim o Hip-Hop passou a fazer sentido para mim e de uma vez por todas me ganhou de corpo e alma. Isso, se não me falha a memória, foi em meados de 1993 ou 1994”, lembra.
“As festas dos anos 90 na verdade eram verdadeiros encontros de pessoas atuantes e simpatizantes do Hip-Hop. Não tínhamos muitos recursos , tecnológicos e muito menos financeiros, porém fazíamos na raça mesmo. Fazíamos porque amávamos!”, conclui.
“O que acontece aqui…”
Para Dee, o surgimento da Família de Rua e do Duelo de MCs nos anos 2000 representou um passo importante para a retomada das bases da cultura.
“Eu acho que o marco da volta da cultura hip hop foi o surgimento do Família de Rua, em 2007, do qual eu fiz parte por um período. A gente se propôs a não levantar só a bandeira do MC, mas a bandeira dos demais elementos”, reforça, ressaltando a importância inegável do Duelo de MCs no que diz respeito a ampliar a visibilidade da cultura, agregar os quatro elementos e ocupar o espaço urbano, apresentando o hip hop para toda uma geração.
O MC Monge, integrante do Família de Rua e pesquisador da cultura, teve seu primeiro contato com o hip hop em 2000, inicialmente como grafiteiro, quando, segundo ele, o rapper Dmorô lhe explicou o que era toda aquela cultura. Sobre o Duelo de MCs, evento no qual está envolvido desde o início, ele conta que tudo começou em 2006, quando o Conspiração Subterrânea Crew, grupo do qual fazia parte, realizava encontros de Freestyle e de dança em locais como Praça Sete e outros espaços.
“A Conspiração tinha como foco reunir integrantes de todos os elementos da cultura para pensarmos o hip hop como união dessas subculturas”, relata. Em 2007, após a seletiva mineira para o Liga dos MCs Nacional, com a vitória do mineiro Simpson Souza, outros Mcs, como Vulks e Leo Cesário, sugeriram outros encontros similares. “Acontecia sexta-feira à noite, e o lugar escolhido foi a Praça da Estação, pensando no acesso de todo mundo por ônibus e metrô… Fizemos ali o primeiro duelo. Essencialmente amigos e pessoas que, na semana anterior, tinham participado da eliminatória da Liga de MCs. Logo no primeiro dia já tivemos dificuldades com a Guarda Municipal pedindo alvarás. Usamos o Skate Sound System (skate sobre o qual improvisavam pequenas caixas de sons) pra termos algum som para as batalhas.
A princípio colocávamos no carro dos amigos e depois conseguimos um som emprestado e, no final de 2007, fomos para o viaduto pra nos proteger da chuva. Depois passamos a nos organizar a partir da lógica daquele local. É legal registrar que, naquele início de Duelo, a Família de Rua não existia ainda. Vulks e e Leo puxaram, convidando amigos, mas o Família de Rua, o coletivo, surgiu a partir das demandas que foram crescendo. Fomos naturalmente identificando as pessoas mais próximas e dispostas para assumirem algumas responsabilidades. A coisa se formou inicialmente como um ‘coletivo de coletivos’, como eu e Digô representando o Conspiração, o Léo e o Castilho representando o Casa B, e PDR e Vulks representando o Rima Sambada. Então era essa lógica de vários grupos organizados num coletivo para a realização das batalhas”, conta Monge, sintetizando parte destes quase 10 anos de Duelo de MCs, evento que reúne mensalmente jovens de todas as regiões da cidade no viaduto Santa Tereza, além de ter sido o espaço que fomentou o início da carreira de MCs como Douglas Din, Vinicim, Max Souza e tantos outros.
Falar sobre a formação dessa cultura e seus inúmeros personagens é um grande desafio e muitas pessoas importantes para este contexto não foram citadas ao longo do texto, que tem como objetivo de apenas mostrar um pouco os caminhos trilhados do começo do hip hop em Belo Horizonte até aqui. Entre os vários grupos de rap, crews de grafitti, b.boys, b.girls, MCs e produtores, há ainda muitas outras histórias para serem contadas, que aconteceram nos bairros, em contextos diferentes. Das mulheres que conquistaram seu espaço na cultura, como as MCs Miss Black, Dulcineia (Justiça Rap), Bárbara Sweet, Áurea Carolina, ou jovens rappers que se tornaram grandes articuladores da cultura e organizadores de festivais, como Rômulo Silva, Negro F, Roberto Raimundo e Victor Magalhães. Ou mesmo o papel importantíssimo da Rádio Favela e de seu fundador, Misael Avelino, entre tantas outras figuras que fazem por merecer um capítulo a parte em todo este histórico.